Foi há mais de 65 anos. Não havia estradas nessa altura. O que de melhor se encontrava eram os caminhos dos rodados dos carros de bois.
A Cabeça Boa, em tempos recuados, festejara o seu orago, S. Brás, em Fevereiro. Mas como chovia sempre e era má época para a vinda dos de fora, o santo passou a ter a sua festa num Domingo de Agosto.
Vinham emigrantes do Brasil e compravam amêndoa coberta às doceiras de Moncorvo. Para os que não podiam vir, os familiares mandavam pelos outros uma encomenda de amêndoa que lá lhes ia ter, mesmo que vivessem nos pontos mais longínquos do outro lado do Atlântico.
Também não havia luz eléctrica. Toda a iluminação vinha dos candeeiros petromax, colocados um no coreto , outro na entrada da igreja e mais um ou dois em pontos estratégicos. E ainda havia os gasómetros das doceiras. Além disso, o largo não era grande.
As doceiras de Moncorvo saíam bem cedinho, tocando o burro ou o macho carregado de cestos com amêndoa, económicos, súplicas , muita mais tralha, e, as que não tinham esses utilíssimos animais, iam a pé com uma ou duas arrobas de amêndoa à cabeça.
Era uma caminhada tremenda: uma odisseia de suor, dor e cansaço. A certa altura, a subida pela fragada quase a pique era tão dura, que tinham de ir de gatas ,e a descida era de cu encostado à pedra lisa e escorregadia.
Com muito custo, lá chegavam e armavam a mesa de pau. Salvava-se a alvura da toalha de linho e as amêndoas de bicos, lindas como flores.
Pelas 10 horas da manhã chegava o padre, rotundo, escarranchado na sua mula de pêlo raso e luzidio.
Os mordomos e as beatas já o esperavam. O sino repicava enquanto ele se paramentava e começava a missa. A meio, num púlpito armado adrede no pequeno adro, pregava o sermão ,ameaçando sempre com as penas do inferno aqueles que já tinham o seu inferno neste mundo.
Depois era a hora do almoço, longo, bem comido e bem bebido. Por volta das 4 h da tarde saía a procissão, precedida de uma salva de foguetes. Só que a banda de música estava atrasada. “É sempre a mesma coisa. Eu bem avisei que não fossem buscar a música a Carviçais. Atão não temos a da Lousa, aqui tão perto?” “ Pois, mas os mordomos estão zangados com o mestre da banda” . “Qual zangados? São nossos vizinhos ,mas levam mais caro”. “Ssch! Olhai pró padre. Já está de má cara.” “Se fosse só o padre…Olhai para aqueles castelos de nuvens tão negras! Vem aí uma trovoada ..
As pessoas amontoavam-se na igreja: as mães com os
filhos de anjinho ao colo até empurravam os andores, os mordomos berravam entre
os trovões: “ Suas filhas da mãe, se lixais os santos, levais porrada”. “ Ah,
Zé, tira as fitas das notas aos santos , que aqui há filhos de muitas mães
…”(·Por aqui se vê que são sempre as mulheres a pagar as favas). Elas
rezingavam: “Tirastes a festa do santo do dia dele, porque chovia, e ele agora
vinga-se”.
Ora, uns minutos antes de a trovoada desabar, estava
uma camioneta velha, ronceira, desconjuntada ( o que não admira, por aqueles
caminhos do demo ) ao fundo da encosta a despejar uma vintena de músicos. Com
os instrumentos nas mãos, era quase impossível subir a fragada. A meio, foram
apanhados pela trovoada. Tentaram abrigar-se nos rebordos das fragas, mas nem
tempo tiveram . Ficaram encharcados , eles e os instrumentos. Lá cima, na igreja, as beatas esqueciam S. Brás para invocarem Santa Bárbara, “bendita, que no cèu estais escrita, com papel e água benta, pr´arramar esta tormenta” . E arramou. Num virar de mão. Então, ainda todas nervalhosas, as beatas urgiam: “Está a escampar. Está a escampar. Deitem já os foguetes e saia a procissão”. O mordomo-chefe : “Não , senhor. Aqui, quem dá ordens sou eu. Nada de foguetes. Procissão, só com música”. Mas as beatas eram muitas, e ninguém conseguia aguentar aquelas vozes esganiçadas e alteradas, e neste “ Sai ... Não sai ... “ os foguetes foram mesmo para o ar. Os anjinhos , de asas a pingar atrás dos andores, estes secos mas sem as fitas das notas e com as flores às três pancadas , começaram a avançar.
Por entre o fragaredo, os músicos ouviram os foguetes a estralejar, orientaram-se, e pouco depois começaram a aparecer : um da esquerda, outro da direita, mais um daquele canto, outro com o bombo roto... Sujos de terra, sacudindo-se como ursos molhados, despejaram a água de dentro dos instrumentos e lá formaram as suas quatro filas. Mas as gaitas chiavam de roufenhas, e eles nem o compasso acertavam , pois as pautas estavam ensopadas.
Ao fim da procissão o sol brilhou num céu muito azul, e dizia a minha avó que nunca tinha visto um pôr-de-sol como aquele: sobre uns leves fiapos de nuvens rosadas havia raios de luz que pareciam o resplendor de ouro do Anjo São Gabriel.
A arrematação, o bailarico e a venda da amêndoa coberta : um verdadeiro milagre!
Texto publicado (20/06/2010)no blogue da A.A.A.C.C.M.
Foto do Arquivo F.M.
Reedição de posts desde o início do blogue
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Jose Antonio Costa Marrana ... é como se tivesse estado lá.... ou estive mesmo?...
ResponderEliminarBoa noite. Aconteceu passar por aqui, e vi seu nome. Faça o favor de me contactar no Face B. José Alito, ou Almendra. Gostava de lhe perguntar algo sobre a minha avò, a Aida Cavalheiro (Carancas) Obrigado desde jà. Antò José Almendra
EliminarBelo texto!
ResponderEliminarBelíssimo texto!
ResponderEliminarQue sorte a nossa a autora ter tão boa memória! Eu também não estive lá,mas é tão viva a descrição,que não é difícil imaginarmo-nos naquele ambiente.Memória prodigiosa e talento de sobra produzem este belo texto.
ResponderEliminarUma moncorvense
Maria Fernanda escreveu: "Muito real a descrição da Festa de São Brás, parece que a gente está vendo. E as amendôas de Moncorvo? Huuumm que delícia!"
ResponderEliminarAntónio Espírito Santo escreveu: "econômicos, súplicas.....e as habituais ...delícias ...da Júlia."
ResponderEliminarQue maravilha! Agora, já a esta hora e...dou com este texto,e que hei-dizer, que está muito bem escrito?Não chega;dgo que gostei e muito obrigado por tanto poder de descrição, de verdadeiro visualismo.Bonito!
ResponderEliminarCom um beijinho para a Julinha,
Tininha
Querida Júlia:
ResponderEliminarMas que maravilha de texto! Tu és única.
Bj. Olga Prata
A Cabeça Boa, festeja o seu orago, S. Brás,como sempre dia 3 em Fevereiro . Este ano também festejou. Mas como era 6ª feira e o padre Vitor este a trabalhar até às 17.30, só depois se fez a procissão, de dia e depois a missa, já de noite.
ResponderEliminarObrigada aos meus comentadores e um grande abraço para todos.
ResponderEliminarUm beijinho para a Tininha, que tem andado muito arredada destas lides.
Eu também ainda ando muito desasada ...
Júlia
Caríssimo Anónimo:
ResponderEliminarMuito agradecida pelo seu oportuno esclarecimento. Muito me apraz saber que, em Cabeça Boa, a festa de S.Brás se realiza hoje, como outrora, no seu dia, 3 de Fevereiro.
Há uns 68 ou 69 anos, alguém deve ter tido a ideia de a mudar para Agosto. Creio agora que terá sido por pouco tempo - talvez apenas nesse ano, pois a trovoada não terá deixado saudades ... - É que da crónica também se depreende que no povo havia quem não estivesse de acordo com a alteração da data.
Ora, o povo e a tradição têm muita força, não é verdade?
Um abraço
Júlia
Júlia Ribeiro...e da Lousa...não há nada?!!!!!
EliminarJúlia Ribeiro...e da Lousa...não há nada?!!!!!
EliminarHistória
ResponderEliminarA freguesia de Cabeça Boa fica situada no extremo Ocidente do Concelho de Torre de Moncorvo, sendo bastante extensa, está rodeada de serras, como a da Lousa, mas ficando sobranceira ao Vale da Vilariça por um lado, e ao Rio Douro, por outro. A existência de população no vasto território desta freguesia é talvez mesmo de épocas pré-históricas, devido aos inúmeros vestígios arqueológicos que por ali apareceram. Exemplo disso, são as sepulturas em granito, representação de porcos e varrões no Olival dos Berrões, em Cabanas de Baixo, ou as do Olival da Raza, sítio da Zambulheira, bem como os restos dos muros de granito, caliça e tijolos no sitio do Castelo. Cabeça Boa foi decerto um povoado fortificado da época castreja, posteriormente romanizado, já que aí foram encontradas algumas moedas romanas.
As ruas arranjadas, as casas renovadas e a tendência para procurar a Vilariça estão a transformar a freguesia, provocando um aspecto diferente e desenvolvimento entre a parte montanhosa mais abandonada e as margens da Ribeira da Vilariça e do Rio Sabor que se encontram muito mais renovadas. Nesta região abundam as lendas de mouros e mouras, havendo uma de grande interesse para a freguesia, pois explica a origem metamórfica dos termos Cabeça de Mouro e Cabeça Boa.
http://www.torredemoncorvo.pt/cabeca-boa
Venham mais lições de História a venham também as lendas. Estou a gostar muito do que por aqui leio.
ResponderEliminarObrigado ao Sr.Lelo, à contadora e a quem escreveu a História da Cabeça Boa.
João Bento
Olá querida Julinha!
ResponderEliminarSó hoje li a sua "festa" por me encontrar ausente no fim de semana.
Petromax,económicos,súplicas...e garrafinhas de licor de canela
Beijinhos e rápidas melhoras.Irene
Dra. Júlia,
ResponderEliminarSaudo o seu regresso, prova que Graças a Deus correu tudo bem.
O seu texto é uma delícia, pelo prazer da sua leitura, e também pelas lembranças da doçaria tradicional, que nos deixa de água na boca.
Desejo a sua total recuperação
Manuel Sengo
Olá Julia!
ResponderEliminarJá estas recuperada da cirurgia? As articulações estão melhores?
Leio e releio estas histórias, nos teus e livros e no Blog. Vou encaminhando o endereço do Blog a amigos e sei que também estão a apreciar muito.
Já me trouxeram muitas amêndoas cobertas, eu também já ai fui e trouxe para muita gente. Espetacular!
Beijos
São Paulo- Brasil
Wanda
Maravilhoso menina Júlia!.. Nunca estive nessa romaria, mas consegui estar. Obrigada pelo seu dom da partilha. Linda senhora...!
ResponderEliminarCabeça Boa. Historia de garoto...
ResponderEliminarNos anos 60, o meu pai, Joâo Almendra (pedreiro), nâo tinha trabalho em Moncorvo, e, a convite do presidente da junta da Lousa, que desejava um artista para se encarregar das obras de construçâo da casa do povo, dos correios, e mais alguma coisa, jà nâo me lembro bem, sei que meu pai asseitou a proposta, e ai' vai a familota toda "emigrada' para a Lousa.
Na Lousa nâo havia ainda electricidade nas ruas. Entâo, depois de eu fazer os meus deveres da escola, e até à noite,
ia para a varanda e cantava tudo o que eu sabia como cançôes daquela época.
De regresso dos campos, as pessoas, (que eu nâo via, mas pressentia a presença) sentavam-se na praça a descansar
antes de regressarem aos seus lares.
Para mim, foi o principio de "actuaçôes em palco". Jà tinha-mos participado, entre alunos da escola de Moncorvo, a um teatro, no cine-teatro, mas ali na Lousa, tinha um sabor particular, pois era eu a "vedeta".
Muita gentinha ali se juntava para me ouvir cantar. .
E entâo, acontece que de vez em quando vinha-mos a Moncorvo. Umas vezes "na carreira" onmibus da época,
ou de "camioneta".
Esta ùltima, creio que nâo devia ser muito "legal", pois quando os motoristas se cruzavam, e trocavam as
impressôes do dia, là ia um "choufer" voltar para tràz, ou ia dar uma volta maior...
Penso que a GNR ou outra avenato'ria, estaria presente na passagem do destino.
E foi assim, que um dia talvez com vinte ou mais pessoas na parte traseira da camionete, o motorista passou
pela Cabeça Boa, e através "colinas e vales" là foi ele "desaguar" au final da estrada, que dava no... no rio pois claro.
Para a gente, que nâo conhecia os lugares, pareceu-nos estranho ele querer atraveçar a àgua,
mas embora o receio fosse tamanho, Deus sabe,.. ao ver-mos um senhor descer da cabine,
e indicar uma passagem na àgua, ficamos mais descansados ao perceber que era coisa habitual.
Mas nesse dia o riacho levava muita àgua, e vimos a àgua subir até aos fundos dos taipais. Toda a gente suspirava,
mas "eles" imperturvàveis, um a guiar por fora, outro a tentar equilibrar o vehiculo, là se passou.
O homen que atravessou à pé, teve de se mudar; os passageiros esperaram um pouco que a camionete "sacudisse as pingas"e là fomos, rumo à Foz e a Vilariça.
Parece que o coraçâo bateu tâo forte, que somente à chegada a Moncorvo, ficà-mos verdadeiramente descansados.
Afinal, era a GNR que estava "à coca" na Vilariça. A nossa carrada passou, a de outros, talvez nâo.
Recordaçôes da infância...
José Almendra