Livro: "Almirante Sarmento Rodrigues, 1899-1979 - Testemunhos e Inéditos
Editora: Edições INAPA, SA
Apoios: Academia de Marinha e Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta
Carta de Manuel Sarmento Rodrigues a Norberto Lopes que foi um jornalista e escritor português nascido em Trás-os-Montes, Vimioso ; foi diretor do jornal "Diário de Lisboa" e um dos fundadores do jornal "A Capital".
Lisboa,
8 de Janeiro de 1963
Meu
caro Norberto
Não
me senti, durante os três meses que já tenho de permanência em Lisboa, com
disposição nem sequer para falar com os amigos. O esforço para aguentar os
embates causados pelo esclarecimento da minha situação gastaram-me todas as
energias, disponíveis e em reserva. Foram, e são, dias atribulados. Outras
complicações, familiares, se juntaram ainda e puseram à prova a minha
resistência. Como estou ainda de pé, não sei.
Mas
antes de regressar a Moçambique queria dizer-te algumas palavras de despedida.
Tu és o amigo mais firme, mais isento, mais leal, mais indefectível e ao mesmo
tempo o mais discreto entre todos os meus amigos.. Durante a nossa já longa
vida nunca me negaste, nem abandonaste. Quaisquer que fossem a minha acção e a
tua posição perante os problemas, da tua boca só saíram palavras de louvor, de
compreensão, de benevolência. Nunca sobre mim puseste uma dúvida, uma reserva.
Nem uma sombra. E são perto de cinquenta anos de vida de amizade que levamos
vencidos. Por muito ou pouco que ainda duremos, já nada temos que recear.
Ora,
não penses que ao escrever-te nestes termos tenho no subconsciente ideias
pressagas. Nem tenho nem deixo de ter. Mas sinto, que uma vez na vida, me fará
bem desabafar com alguém que nunca me trairá e que foi e será o mais
compreensivo e acolhedor. Não será um testamento, mas é uma confissão.
Levo
a minha vida no fim. Dentro da actividade pública era meu desejo, de há já
algum tempo, ter-me desligado de qualquer intervenção. No entanto, a minha
situação no activo da Armada não aconselhava nem me permitia afastar-me.
Afinal, verificava-se que ainda sou novo; mas estou tão cansado e desiludido da
plena utilidade da minha acção, que me sinto gasto e velho. Apesar disto, não pude
até agora separar-me, nem consegui que me deixassem em paz. Se na Marinha
concordaria em cumprir o meu dever — era até esse o meu desejo — já não
compreendo que tenha obrigações para outros serviços públicos, embora para mim
limitados, é claro, às questões do Ultramar. Não posso aceitar o princípio de
que não tenho o direito de me afastar do serviço ultramarino, porque disponho
de conhecimentos desenvolvidos e de experiência que se não pode perder.
Parece-me que os serviços que tenho prestado não me criaram responsabilidades —
não fiquei em dívida - para continuar a servir. Dei o pouco que pude. Sou livre
para me ir embora.
É
certo que, dentro do plano nacional em que tenho sempre servido, as obrigações
de cada português são ilimitadas. E nesse aspecto já não poderia considerar-me
livre. Mas para isso é também preciso admitir que os serviços se prestam sem
sujeições ou barreiras e dentro duma linha inteiramente de acordo com as nossas
ideias. Ora eu poucas vezes estaria nessas condições. Por circunstâncias
várias, não me recusei a contribuir com o meu esforço para a realização de
algumas obras de indiscutível interesse nacional. Nos cargos administrativos
que ocupei, embora não arregimentado em qualquer grupo político ou integrado
nos seus programas, consegui sempre encontrar rumos que não podem constituir
exclusivo de qualquer corrente porque estão no centro e na base das ideias da
Nação. Foram esses caminhos isentos que procurei trilhar, sem negar colaboração
nem tomar compromissos. Parece-me que isto tem sido, de resto, compreendido
pela nossa gente. De modo que me senti sempre, em consciência, livre para
aceitar ou não novos encargos.
Quando
regressei à Marinha, depois do Ministério do Ultramar, pensei arrumar
definitivamente a minha actividade ultramarina. Contudo, não me foi possível
negar alguma contribuição em situações tidas como de emergência, tal como para
a presidência da 1ª reunião da Comissão Consultiva Africana do BIT, em Luanda,
para a qual o próprio BIT aconselhou o nosso Governo a designar-me, e depois
como chefe de missão à independência do Congo (Leopoldeville). Numa e noutra se
esperavam dificuldades graves, porventura violências, e por isso não me era
possível negar-me. Nem os meus próprios brios mo consentiam. Na primeira, até
os dirigentes do BIT anunciavam "une grosse afaire". Na segunda era
só isto: o parlamento do Congo tinha recusado a aceitação da Missão Portuguesa!
Em ambos os casos já se vê para o
que eu estava destinado. Como podia recusar? E lá fui, apesar dos conselhos dos
amigos em contrário, e tudo acabou mais do que bem.
Depois convidaram-me para o Governo-Geral da Índia. Estava
tudo em calma e não havia perspectivas desagradáveis. Pude não aceitar. Mais
tarde, pela saída do coronel Viana Rebelo, insistem para que vá governar Angola.
Estávamos ainda longe de esperar os tristes acontecimentos. Não conseguiram
demover-me e fazer-me aceitar. Nessa altura convenci-me que estava
definitivamente retirado dos negócios do Ultramar. Sentia-me, portanto, senhor
das minhas decisões. Pretendia apenas continuar na Marinha até ao fim. Um
convite para uma embaixada recusei também.
Até que, em pleno período de declínio do meu interesse em
intervir nos negócios públicos — por me sentir doente e sobretudo com desgosto
pela maneira como estavam decorrendo — veio o problema de Moçambique. O
Governo-Geral entrou em colapso e a situação económica e política (nacional) ia
resvalando num perigosíssimo plano inclinado. O Ministro do Ultramar apela para
mim; o próprio Governador-Geral, num gesto muito digno, vai a minha casa
pedir-me que tome conta da situação. Angola estava já num braseiro.
Que havia de fazer? Podia negar-me em tais circunstâncias?
Duvidei apenas da minha capacidade, mas não recusei o sacrifício. Nem os
conselhos médicos ouvi, apesar de me sentir muito mal. Às minhas dúvidas quanto
à possibilidade de ser útil opunham-me sempre a pergunta: Quem indica para lá?
Não aceitavam ninguém. Entretanto, a Província começa, perante os rumores da
minha ida, a reagir de interesse. Estava amarrado. E fui. Sacrifiquei tudo,
tudo. O que foi este período de ano e
meio não vale a pena dizer-to. A crise de Moçambique passou, a vida foi animada
de confiança no futuro. A união em que lá vivemos, nas raças e nas ideologias,
ninguém a poderia esperar tão forte. As dificuldades que tive, só
incompreensões cá da Metrópole — que eu julgo, infelizmente serem inabaláveis —
resultaram. Comigo se identificaram os sentimentos de todos, brancos e pretos,
das esquerdas e das direitas, no essencial da defesa de Moçambique e da unidade
nacional. Confiaram e acreditaram. O Governador-Geral era um dos deles,
lembrado ainda dos bons tempos da Zambésia e depois numa dúzia de anos a tratar
de assuntos de Moçambique. O povo não esquece e tem instintos seguros. Todos
sabiam, até nas mais distantes aldeias do mato, que eu era um amigo dos pobres
e então vinham tocar-me, como, a buscar protecção. Amigo antigo, hoje poderoso
— julgavam eles. De facto, passei a andar com todos, como dantes. Desapareceram
os alertas, as armas aperradas, as desconfianças. Fui ao Alto Lugenda — onde
nunca fora um Governador nem sequer de Distrito — de noite e sem armas, como
noutros tempos. Explicava a todos, como podia e sabia, as razões sérias da
nossa unidade. O último discurso aos estudantes é uma síntese. Acreditavam-me.
Do que se fez, no ensino e na economia não interessa falar-te. Assim como
noutros ramos.
Mas tudo isto era um esforço isolado, local, quase pessoal.
Os apoios que recebia eram fracos — aparte o esforço militar — e as
dificuldades enormes. Às vezes, ao ver a confiança que a Província me
manifestava, sentia que os estava a enganar. Só o desejo de não lhes causar
desânimo me levou algumas vezes a calar as minhas decepções. Porque de cá, numa
incompreensão que receio nos possa vir a ser fatal, negaram empréstimos, fáceis
e exequíveis; criticavam-me atitudes de tolerância; dificultavam-me esforços de
orientação social; não ouviam os meus avisos nem davam rápido seguimento a
providências urgentes que sugeri para reforma da administração. Numa palavra,
não consegui dar a Moçambique os meios de que precisava nem a categoria que
verdadeiramente tem e que, se lhe não for reconhecida, ela a tomará por suas
mãos, com consequências que me não atrevo a prever. Em vez de nos orgulharmos
em apresentar Moçambique como uma realização, uma obra, digna de ser admirada,
estamos obstinadamente a diminuir uma realidade em irresistível crescimento e
que em vez de ser nossa se pode voltar contra nós.
A minha acção estava, nestas condições terminada. Melhor
seria retirar-me para não desacreditar essa confiança, o que era pior A
convocação do Conselho Ultramarino, com os vários delegados do Ultramar, em
seguimento duma minha proposta de reforma da administração ultramarina — feita
um ano antes! — permitiu-me ainda trabalhar no fortalecimento de uma unidade
portuguesa que eu vi triunfar nas conclusões unânimes a que se chegou. Lá
advoguei, uma vez mais, a necessidade de dar às províncias a categoria que
merecem e que precisam e que é erro grave continuar a negar ou regatear. Mas
depois disso pensei que poderia e deveria retirar-me.
Mas não. As maiores pressões, os mais impressionantes
rogativos me chegaram. Daqui e de Moçambique. Era bem difícil enunciar as
correntes desencontradas, cada qual com o seu sinal. Atirar-me para as
direitas, para as esquerdas; integrar ou desligar as funções militares e
administrativas; apelos dramáticos acerca dos perigos que resultariam para
Moçambique; especulações de toda a ordem — foram fruto da análise das minhas
atitudes durante estes três intermináveis meses. Alguns pontos de vista eram
contraditórios. Por exemplo, quando me apontavam ser um autêntico suicídio
cessar a minha actividade oficial, partiam do princípio errado de que o meu
interesse era continuar na vida pública. Ignoravam ou não acreditavam, que o meu ardente desejo era o de me
remeter à vida simples e privada. Mas o mais curioso era que as mesmas críticas
tanto partiam das direitas como da oposição. Uns queriam que eu voltasse para
Moçambique a fim de aguentar a situação;
outros que voltasse, mesmo sem apoio do Governo, talvez mesmo contra o Governo,
porque assim era conveniente para as liberdades da província. Nenhuns deles me
convenceram nem me aliciaram.
Os
apelos de Moçambique foram os mais impressionantes. Nem tive coragem para
deixar de guardar alguns deles (os documentos). Há um extremista, bem
conhecido, generoso mas desvairado, que depois de me exaltar a alturas que
nunca imaginei, declara que ninguém mais me poderá substituir e anuncia verdadeiras
calamidades. Um outro, missionário patriota, entende que é tal a minha
identificação com o povo de Moçambique, que terei de ali morrer com eles. Um
moderado que, numa carta para um amigo, resignadamente, diz apenas: "Deus
nos ajude"! Até o Eng.° Trigo de Morais me aponta como o inseparável de
Moçambique. Dizem-me que esteve preparado um grupo representativo para me vir
reclamar e levar. Os militares, da maneira mais camarada, significaram-me o
empenho de que os não deixasse. No povo, na finança, por toda a província, um
alarme.
Ora tudo isto, em vez de me causar orgulho, me entristeceu.
Primeiro, porque vejo que infelizmente não acreditam no Governo nem na
Metrópole; e este é o grande drama. Depois, porque não tenho forças nem poderes
para fazer a obra necessária. Aqui, não compreendem nem querem. A indiferença e
sobranceria são insuportáveis. Finalmente, porque não tenho nem idade, nem
saúde para aguentar aqueles trabalhos forçados.
Como posso ir? Mas como posso não ir? Como posso enganar;
ou como passo negar Moçambique? Será útil que vá ou preferível que fique?
Nestas dúvidas e amarguras, Moçambique e a sua gente e o
receio de uma derrocada acabaram por me demover. Por quanto tempo irei, não
sei. Se a vida se aguentar tentarei consolidar uma consciência moçambicana
capaz de suprir, sem ódio, a estreita concepção política que preside à
orientação das nossas relações internas. Não vou ser contra nem a favor duma
política que sinto não ser a aconselhável. Nunca atraiçoei quem me confiou
poderes, mas não posso trair a minha consciência naquilo que entendo serem os
interesses da Nação. Não me filiarão nem as esquerdas nem as direitas. Nem com
umas nem com outras alimento aspirações. Como sempre, entendo que é ajudando a
desenvolver o lado bom duma política, que mais se pode contribuir para o bem da
Nação. Oposição sistemática não me parece recomendável. Mas cheguei ao limite
das minhas contemporizações. Estou, de resto, a pouco tempo do limite do
serviço activo. Tudo se conjuga para me retirar e desejaria que não fosse para
chorar as desditas da minha Pátria. Perante a confusão, o egoísmo, a
insensibilidade e a vaidade de tanta gente responsável, ao ver a inacção e a
indiferença perante os graves problemas de vida ou de morte da nossa Nação, ao
sentir a desorientação geral e a minha própria impotência para a dominar pude
pela primeira vez compreender o desesperado gesto de Mouzinho.
Entretanto, vou para Moçambique. Sacrifício total, de saúde
e vida, de predilecções, dos interesses pessoais e familiares. Nada posso nem
nada quero acrescentar aos meus serviços. Nada quero e nada preciso. Vou
deliberadamente perder muito, talvez tudo, as próprias simpatias de uns e
outros, por que quero ,ficar sozinho, mas de consciência livre, independente.
Ficarei sempre com os amigos como tu.
Tudo
porque acredito no sentimento do dever e na ideia da Pátria. Serão, para
muitos, ideias em evolução, talvez em revisão. Compreendo-o, mas não o aceito.
É que fui sempre português e
teu
amigo, que te abraça
(Manoel
Sarmento Rodrigues)
Vou
confiar o original desta carta à guarda da Academia de Marinha, convencido de
que é lugar próprio para arquivar este valioso documento que dignifica quem o
subscreve e honrou, em diversas circunstâncias, as nobres tradições desta Casa,
que ele criou e cujo prestígio se deve, em grande parte, à devoção, ao carinho,
ao amor que lhe consagrou.
Esta
carta suponho ser um retrato da sua figura inconfundível.
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