terça-feira, 24 de novembro de 2015

"Manhuço de espárragos" - Livro "Almirante Sarmento Rodrigues, 1899-1979, Testemunhos e Inéditos"

O "MANHUÇO" DE "ESPÁRRAGOS"

É por si mesma uma expressão agreste, clara, serrana. Uma linguagem áspera, rude, mas de aspecto verdadeiro. "Manhuço" é uma mão-cheia, um punhado. Um molho de ervas que se agarra na mão. "Espárragos" tem mais que se lhe diga. Não é o mesmo que espargos, dos que se chupam nas cidades. Não é apenas a rusticidade de um nome, mas qualquer coisa de intrinsecamente diferente. Só conhecendo o que são, como se criam, como se apanham, como se saboreiam os "espárragos" do monte.

Os espargos das cidades, crescidos em estufas, ao abrigo das intempéries, rega-dos, cultivados, criados à mão, são um produto artificial, opulento, gorduroso, ana-fado, flácido, sedoso, a que um molho apurado consegue dar um gosto requintado, internacional. Mas pura e simplesmente convencional, longe da natureza. Para chu-par! Por isso os espanhóis nos dizem, no seu espírito de humor caústico:

"Quien nísparos come, espárragos chupa y besa una vieja — ni come, ni chupa, ni besa!"


Mas isto será lá nas cidades, porque cá nestas minhas terras transmontanas as nêsperas têm um sabor atraente, perfumado e quanto a velhas, se as houvesse, ha-veria muito que contar. Os "espárragos" então...

Anda gente pelos montes solitários, escalvados, onde o arado nunca entrou, nem invernias deixam uma árvore crescer, onde não há sinal de gente nem de ser vivo, mas que o rosmaninho agreste, indomado escolhe para florir e resguardar o seu in-tenso e puríssimo perfume; barrancos que as trovoadas e gelos eriçaram. Correm-se léguas de paisagem de nudez impressionante. Mas na dobra de um rochedo eriçado lá se encontra, muito escondida e dobrada sobre si mesma, verde-escura, rugosa, uma varinha de "espárrago". Longe do mundo e da vida dos homens, ou da alegria dos pássaros, sozinha, muito humilde, na paz do Senhor, mas enfrentando os ventos e as geadas, numa admirável solidão. A sua tristeza enternece a alma do próprio povo.

Eu hei-de-me ir e deixar-te Como a água deixa a fonte. Estou p’raqui triste e sozinha Como os espárragos no monte!
Triste e sozinha, mas resistente e corajosa.


Os "espárragos" não se chupam nem se esmagam, porque se trincam, rijos e ten-ros, de um amargor delicioso. Uma torta de "espárragos ", onde os ovos das gali-nhas criadas à solta constituem a massa aglutinadora, é um manjar digno e superior.

In “Almirante Sarmento Rodrigues, 1899-1979, Testemunhos e Inéditos” pág.375

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