“Deus
nos dê do nosso que é dado sem vergonha”, é assim que Maria Amélia Silva vai
respondendo a quem com ela conversa, com os “dizeres” que os 93 anos
completados lhe foram ensinando. A mãe cedo ficou viúva e criou-a com as
dificuldades que os tempos exigiam, a ela e mais dois irmãos. Ganhava o pão pra eles a
tecer no tear, arte que mais tarde Maria Silva viria a desenvolver.
Maria
Amélia Silva enviuvou e há vinte anos que vive sozinha. Não precisa de ninguém,
só do amor dos filhos e netos, “faço a comida e governo-me sozinha, lavo a
roupa à mão, tenho uma máquina para lavar a roupa mas lavo à mão, vale a pena
estar ali a máquina trum, trum, trum, a gastar luz pra lavar dois farrapos, à
medida que se sujam lavam-se e pronto é assim”. Esta visão descomplicada da
vida ensinou-a a não prestar atenção ao vazio que por vezes surge a quem vive sozinho.
Foi
moleira com o marido mas nunca gostou dessa vida, “não gostava porque eu
gostava de ser séria e gostava que fizessem pão pra ter freguesia, depois às
vezes faziam pouco porque os alqueires eram pequeninos e depois às vezes não
rendia pró pão. Íamos aos que tinham as tulhas maiores e que tinham o alqueire
maior porque dizia um que lhe chamavam o Sr. Lousadas “se não fosse por Deus
temer, nem saco, nem baraço havíeis de ver”; depois eu queria que fizessem
muito pão tinham que fazer 8 pães, dois alqueires, quando não faziam já não
ficavam contentes; não gostava daquela vida por causa disso”. Maria Amélia e o
marido aborreceram-se daquela vida. Quando chegava a hora de ir aos moinhos
tinham que andar mais de uma hora de caminho até Carviçais e desistiram,
“deixamos aquela vida e fomos lavradores até ao fim”. Tinham terras “de meias”
em que o rendimento era dividido entre os donos das terras e quem nelas
trabalhava. O trabalho sobrava, era duro e nem toda a gente estava disposta a
fazê-lo. Os segadores escolhiam as melhores terras e quem lhes dava melhor de
comer e no fim queriam ver rendimento, [“diziam, sol e vento e mais 10 tostões
à tarde”, porque depois o pão varejava-se e se a gente o deixasse secar demais
já não trazia pra casa porque ficava lá no terreno].
Foi
feliz com o marido que haveria de conhecer nas tradicionais partidas da amêndoa,
muito usuais naquele tempo, [estávamos a partir a amêndoa, na Dona Maria Pinto
dos Correios, e apareceu ele, ela tinha uma criada, e só deixava entrar o
namorado da criada, o meu no céu esteja, era ele; ele pra não ir sozinho,
levava outro com ele; nós é que íamos a partir, já estávamos sentadas, e ele lá
se sentou ao pé de mim, a criada lá andava a fazer as coisas, e eu disse pra
outra que estava ao pé de mim que era a Maria Amélia Sabina, “tu não deixes
meter ninguém aqui no meio das duas, que se sentem práí que aqui não queremos
ninguém, estamos muito bem as duas”, mas ele mete uma perna e depois a outra e
enfiou-se lá no meio, foi por trás e sentou-se, “carambo Maria Amélia pra que o
deixaste sentar”, “deixa lá ele cá está na vida dele e nós cá estamos na nossa”;
depois ele ao outro dia apareceu todo sujo, de estar encostado, à cal (...), ia
com uma roupa nova preta e sujou as costas todas e digo eu assim, “agora já
arranjaste pra lhe dar trabalho amanhã a tua mãe a escovar-te a roupa,
encostaste-te à parede, sujaste-te todo”, “agora escovou-me ela mas daqui a
pouco há-des escovar-me tu”, “não me parece isso”, “ah sim, sim”, e depois
continuou, continuou e lá foi”]. Casaram e a vida continuou. Sem queixas. A
única que tinha para o marido era o facto de não querer que os filhos
estudassem. Ficaram-se pela 4ª classe, ela não queria e a sua resposta, com a
sabedoria de quem pouco aprendeu na escola mas a quem a vida muito ensinou, era,
“deixa-os ir pra saberem sequer por onde andam”. O marido nunca cedeu e os filhos
acabaram por seguir os passos dos pais, tornaram-se agricultores.
Maria
Silva nunca saiu de Freixo só quando ia com o marido às consultas do coração,
“chegava lá mais doente do que ele porque enjoo; às vezes querem-me levar
prá’qui e prá li mas em minha casa é que estou bem, boa festa faz, quem em sua
casa está em paz”, responde com mais um “dizer” como quem tem o dom da palavra
seja qual for o assunto. É em sua casa que vai passando os dias, e diz que ainda
não dá “enfado” aos filhos. Dos netos, ainda criou dois, “pra que não dissessem
que queria mais a um do que a outro”.
Aos
93 anos só “foge” um bocadinho ao sal por causa da tensão. “Sou rija”, diz com
a vaidade que a já longa idade lhe deu o direito a ter, tal como a expressão de
sorriso que faz sem esforço. Sozinha, a senhora Maria Silva vai usufruindo da
independência que a vida cedo a obrigou a ter mas que em troca lhe deu as
forças para nunca baixar os braços a nada.
Joana
Vargas
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.