No âmbito da Conferência sobre Augusto Moreno, a realizar no dia 12 de setembro, pelas 15 horas, em Lagoaça, Freixo de Espada à Cinta publicamos um texto de A. M. Pires Cabral que fala precisamente sobre Augusto César Moreno, Um Lagoacense Ilustre.
Augusto Moreno, de seu nome completo Augusto César Moreno, nasceu em Lagoaça, no concelho de Freixo de Espada-à-Cinta, em 1870 e faleceu no Porto em 1955. Isto dizem as enciclopédias. E dizem mais: dizem que foi um dos mais ilustres filólogos que Portugal já conheceu e que muito do cabedal de sabedoria que acumulou foi obtido na qualidade de autodidacta, já que as posses da família não lhe tinham podido assegurar mais do que o Curso do Magistério Primário, concluído na Escola Normal do Porto em 1890. As enciclopédias falam também da sua notável acção como professor, dos livros que escreveu e dos que traduziu, dos dicionários que organizou, das colunas que manteve na imprensa. Falam ainda dos cargos públicos que ocupou e das distinções que mereceu (por exemplo, hoje há uma escola com o seu nome em Bragança, cidade onde viveu e desenvolveu meritória acção pedagógica e cívica durante 35 anos) e do prestígio que alcançou no Brasil. Falam mesmo da sua surdez, que lhe prejudicou a carreira do magistério, e do trabalho modesto como revisor da Editora Figueirinhas. Tudo isso está mais ou menos estabelecido e constitui o que podíamos chamar o currículo oficial de Augusto Moreno. Mas um currículo não passa de uma lista fria de aquisições de competências e de realizações. Há coisas que dificilmente transparecem na frieza dum currículo. Gostaria de demonstrar isso que afirmo a propósito da actividade de Augusto Moreno como lexicólogo profundamente interessado na linguagem da sua terra o que acaba por constituir uma prova de enlevo pela mesma. O seu currículo, é certo, dá-nos conta de um intenso labor em prol dessa linguagem, traduzido na organização de uma extensa lista de termos regionais de Mogadouro e Lagoaça publicada primeiro na revista Nova Alvorada, de Vila Nova de Famalicão, e depois na Revista Lusitana. É justo abrir aqui um parêntesis, neste momento, para deixar uma palavra de homenagem à Revista Lusitana, fundada em 1887 por José Leite de Vasconcelos e por ele dirigida, que se publicou até 1943, tendo saído 38 volumes, constituindo no seu todo um manancial inesgotável de informação sobre temas filológicos e etnográficos, com relevo para a linguagem popular. A Revista Lusitana é particularmente importante para nós, trasmontanos, já que, sob a batuta do seu director, uma plêiade notável de filólogos (na sua maioria simples amadores, mas grandemente entusiastas) coligiu nas suas páginas um extenso levantamento da linguagem popular trasmontana. Recordemos com gratidão, além do próprio José Leite de Vasconcelos e de Augusto Moreno, os nomes de A. Gomes Pereira, Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Fernando Braga Barreiros, Henrique das Neves, Joaquim de Castro Lopo e José Augusto Tavares Teixeira, mais conhecido por Abade Tavares.
Mas só analisando de perto toda essa generosa colaboração, como eu tenho vindo a fazer um pouco por gosto e outro tanto por devoção (uma vez que preparo neste momento um grande glossário de regionalismos trasmontanos e alto-durienses que me está a acabar de pintar de branco os poucos cabelos que ainda tinha cinzentos — ou, dizendo-o à trasmontana, me está a dar água pela barba), é que nos apercebemos de uma coisa de que os currículos não falam: do modo atípico como Augusto Moreno apresenta as suas definições na Revista Lusitana. O modo típico, ou seja, o formato seguido pelos restantes filólogos da Revista Lusitana, é o da definição fria, neutra, impessoal. A palavra tal quer dizer isto, ponto final, parágrafo. Por vezes, mas muito raramente, lá vem um exemplo de uso dos vocábulos ou uma consideração de ordem pessoal que quebram um pouco esta frieza, muito própria aliás do espírito da época em que a Revista Lusitana foi fundada. Assumia-se então uma espécie de pose científica (tudo era redutível à ciência, na esteira do pensamento positivista do séc. XIX) que não permitia grandes devaneios de subjectivismo. Não acontece isso com o trabalho de Augusto Moreno. A este filólogo, sentimo-lo envolvido de uma forma que diríamos apaixonada, que não lhe permite a neutralidade asséptica dos demais. Sobretudo no que toca à descrição de tipos humanos e, muito em particular, à das mulheres. Vê-se que Augusto Moreno fala de comportamentos que observou longamente, usando uma linguagem bem-disposta, prenhe de sugestões e de pitoresco. Não se limita a avançar uma definição seca, ornamenta-a com considerações várias que permitem entender todas as nuances do termo em causa. Por vezes parece um tanto pleonástico, mas, se observarmos de perto, vemos que não é assim: todos os elementos que introduz carreiam uma partícula de sentido que, no final, juntas todas as peças, nos permite ficar com uma ideia clara do tipo humano de que fala. Dito isto desta maneira, em abstracto, torna-se talvez difícil de compreender. Tenho a noção de que me não é possível ser mais claro, e por isso não encontro solução melhor do que exemplificar, comentando só o estritamente necessário, com uma dúzia de definições apresentadas por Augusto Moreno.
Tomemos, por exemplo, o termo alvará-de-soltura. E termo pedido emprestado à linguagem judicial que hoje já se não ouve na boca do povo (porque a linguagem popular é como a erudita: também se desactualiza e deixa morrer palavras). Mas usava-se ainda no princípio do séc. XX no sentido figurado de 'mulher mexeriqueira'. Mas — seria mesmo e só 'mulher mexeriqueira'? Qualquer outro filólogo definiria o termo dessa maneira singela mas insípida — e incompleta. E como o define Augusto Moreno? Desta maneira circunloquial mas saborosíssima: «Mulher estouvada, cabeça de pouco assento, sempre de focinho no ar, farejando alguma novidade que morda o crédito do próximo, para ser depois um telegrama à roda da povoação.» Todos conhecemos mulheres em que assenta como uma luva esta definição de alvará-de-soltura. E todos compreendemos como, definindo apenas como 'mulher mexeriqueira', dir-se-ia talvez o essencial, mas muito ficaria por dizer. Ficaria por dizer, por exemplo, que o alvará-de-soltura não é criatura de muito juízo e que não se limita a mexericar: fareja (de 'focinho no ar') e procura saber novidades, mormente quando desabonatórias (mordendo 'o crédito do próximo'), e adora espalhá-las, como um 'telegrama à roda da povoação'. E, como se vê, uma mexeriqueira especial. Que outra palavra, que não alvará-de-soltura, poderia definir essa mexeriqueira? E com que outras palavras poderia ser cabalmente definida?
Agora que julgo fiz entender o meu ponto de vista, peço ao Leitor que saboreie mais este punhado de termos e respectivas definições apresentadas por Augusto Moreno, tanto quanto eupróprio as saboreio: Acruchada. «Muito embuçada: o mantéu, o chaile ou o lenço muito puxados para a cara, a taparem-na quase toda. As beatas é que, principalmente, vão muito acruchadas à missa...» Alambazado. «(ficar) Caído de barriga, num tombo formidável, como um cevado de bruços.» Algarismeira. «Mulher bisbilhoteira, sempre em 'contos e mexidas', dum `argueiro fazendo um cavaleiro' .» Alvoreado. «(andar) É andar de cabeça no ar, muito acendido, sobretudo por causa das fêmeas...» Assisadeira. «Mulher má-língua, mulher-tesoira a cortar de todos, mulher niqueira que nem deixa uma ninharia por censurar.» Bisca. «(uma) Um garoto azougado, cara falsa, sem vergonha, sempre pronto para uma pirraça, sempre às ordens para uma falcatrua.» Bochinho. «Indivíduo que tem os fígados e a alma logo ao pé da boca, que se zanga num instante, que se espinha todo e a quem se põem de repente acesas as veias da testa por quaisquer dez réis de mel coado.» Boldrego. «Sujo, emporcalhado, com os focinhos cheios de ranho.» Cachafrilhas. «Indivíduo alto, magro, duas plantas as pernas, mau moral lá dentro, e focinho torcido de má rês por fora.» Cascaroleta. «Rapariga sempre a 'mostrar a caravelha', sempre de 'tacha arreganhada', numas cachinadas mesmo tolas, sem termos nenhuns.» Caspilra. «De preferência, a mulher magrinha, reles, mal-humorada, um ninguenzinho. Por extensão: qualquer animal pequeno e reles.» Choisinha. «Um bacoco, um bisonho, um boca-aberta, um pasmadinho.» Cicisbea. «Rapariga toda lambida, toda da cidade, a falar muito 'ao grave', toleta, e ordinariamente pobre.» Curjidoso. «Diligente, arguilheiro, trabalhador, muito continuadinho no serviço, e naturalmente habilidoso de mãos.» Descomprensada. «Rapariga mansarrona, pasmarota, boca-aberta, passo de boi, sempre a morrer-se, pr'ali num desleixo em tudo.» Deslarada. «Rapariga atrevida, cara estanhada, sempre com uma resposta torta à ponta da língua.» Escogita. «Pessoa que anda sempre a espreitar, lépida, parecendo uma doninha.» Estrefura. «Uma cara de espirrote, sempre a rir-se de falsidade e velhacaria, cheia de ronha.» Fantarelo. «Aquele a quem se afigura tudo fácil, e que se julga fadado para grandes coisas. — (Fantarelo, e muito, foi o nosso D. Sebastião, e algo o foi também D. Fernando...)» Farfalheiros. «Não só mulheres empavonadas, espalhafatosas; também: as fitas, a laçarada, os tufos, e sobretudo as dragonas descomunais dos arreios dessas mulheres.» Galdrapa. «Porca de criação ou ainda machorra, mas muito magra, a barriga pendida em peldracas, muito estreita e passada como uma foice. — Galdrapa também a mulher magricela e alta, com feitio e cara de harpia.» Lambitana. «A rapariga lépida, fina de orelha, cara de bisbilhoteira.» Langueiras. «Um sujeito grande e mal azado, génio pouco aflito, e todo ele muito descomprensado no andar.» Lascarim. «Fedelho doidelas, amigo de andar descalço ainda que tenha sapatos, e sempre daqui para ali, como uma levandisca.»
Longórvia. «Mulher alta e magra, pescoço de cegonha, fucinhos de gulosa e biqueira»
E por assim em diante, até Z.
A. M. Pires Cabral
Fonte:
TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO MOSAICO DE CIÊNCIA E CULTURA
Editora -Exoterra, lda
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