Ernesto Rodrigues
Universidade de Lisboa
Caros Amigos
Deixei de fazer apresentações públicas de obras e de ser
apresentado. Abro esta excepção, porque às memórias felizes nunca podemos dizer
que não. Amadeu Ferreira faz parte dessas memórias.
Entro no Seminário de Bragança, com 12 anos, e oiço falar de
quem, seis anos mais velho, hiperactivo, procura aquilo que, nessa pequena
comunidade intelectual, também eu perseguia: fazer-se um nome. Sou colega de
Manuel Ferreira, já então artista, que se renova como a natureza que ele tão
bem retrata nestas páginas de devoção ao irmão.
Ao deixar a Casa Amarela, aos 15 anos, em 1971 – que Amadeu
abandonava no ano seguinte -, eu trocava jornais de parede ou a stêncil por
títulos impressos, não querendo ficar atrás dos mais velhos, de Teologia, que
me animavam a colaborar no Mensageiro de Bragança, onde o nosso sendinês já
assinava.
Saudou, num encontro de acaso, a minha estreia em livro, em
1973, sendo essa generosidade, nele, um gesto fácil, sincero, sem reservas.
Ficou, daí, uma cumplicidade noutros instantes reiterada, até que, já
assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, dou com ele, em
1990, frente à reitoria, acabava de se licenciar e de encerrar um difícil ciclo
de vida, doravante memorada na obra que faz juz à sua grandeza de alma: O Fio
das Lembranças. Biografia de Amadeu Ferreira, escrita por Teresa Martins
Marques.
Redobrámos os contactos após 2002, quando nos revimos em
tertúlia na quinta da Ribeirinha, Santarém, boleando-me até Oeiras, como de
outras vezes faria. E abancámos para almoços regulares a partir de finais de
2009, quando me solicitou prefácio para a tradução de Os Lusíadas. As conversas
tornaram-se regulares, os abraços semanais, projectos foram mil e um. À mesa,
em sofás, em passeio, também nas longas viagens entre o Nordeste e Lisboa,
discorremos sobre livros e autores, sobre as nossas origens e melhorias destas
terras. Foi neste quadro que se pensou a Academia de Letras de Trás-os-Montes,
a cuja comissão instaladora presidiu, e para cuja primeira presidência me
lançou, jantávamos no Solar Bragançano, em 4 de Outubro de 2010.
No dia seguinte, eleitos – ele integrava a direcção, de modo
a suceder-me, em 2013 -, subindo as escadas do Centro Cultural Municipal
Adriano Moreira, Teresa Martins Marques decidiu, ali mesmo, escrever-lhe a biografia.
Mas isso conta ela no limiar de quase 800 páginas, e como, no mesmo
restaurante, conheceu Leonel Brito, cúmplices de um projecto que honra ser de
excepção que os deuses tão jovem levaram. Esse livro constitui a pedra angular
da posteridade de Amadeu Ferreira. Ela só queria que ele ainda o lesse, ou
ouvisse ler; assim foi. Hoje, quando se perfazem cinco meses sem Amadeu,
celebramos (como se fez em 29 de Julho, dia dos seus 65 anos) a sua presença
com arte, que é uma forma de estancar a lava do esquecimento. Dupla celebração,
aliás, pois a vegetação da aguarela na mão sábia de Manuol Bandarra invade o
cheiro das palavras em português e mirandês.
O jurista que assinou páginas sobre homicídio privilegiado
ou valores mobiliários é um técnico, além de vice-presidente da CMVM; o
investigador de assuntos regionais, que merecia recolha de dispersos, será pomo
de discórdia, debate, afluente, orientação – seja, bibliografia passiva de
muitos; o criador literário, em contrapartida, é que pode assegurar o futuro,
partindo da edição coerente de 15 anos em livro, próprio ou traduzido, e
facúndia de inéditos online. L’Eiternidade de las Yerbas / A Eternidade das
Ervas é um aceno dessa urgência maior; é um lembrete, graficamente luxuriante,
e ponte para essa margem de incerteza que é a fortuna autoral. Convém arriscar.
Aqui, cumpre distinguir entre um destino mirandês e
português. Ainda que aquele idioma se desvanecesse, ficaria um corpus literário
grandemente devido ao nosso Amigo, que estabilizou língua tão sobressaltada
desde finais do século XIX. Mas seria pouco querer aprisionar Amadeu Ferreira
na cerca de uma língua, embora do leite, pois seria diminuir o alcance uma
comunhão já atravessando fronteiras. Em 13 de Outubro de 2014, vindo de táxi
com o crítico e ensaísta Fernando Venâncio, Teresa e eu ouvimos do seu
contentamento pelo poema “As duas línguas”, aqui antologiado, e como ele o
estudava com alunos holandeses. Ignorava quem fosse o autor, e seu percurso de
vida. Este exemplo mostra uma divulgação feliz, mas aleatória. Ora, com risco
de chocar mirandeses, a projecção do nosso Autor exige ser, também, em
português, com terceira vantagem: interessar aos teóricos da tradução.
Se escreveu em mirandês peça de teatro em 1975, a estreia em
livro, Cebadeiros, de 2000, é unilingue. Comporta alguns dos melhores poemas,
agora retomados e bilinguizados, o que é um avanço. Sendo da ordem da língua,
dominam o primeiro quarteto, intitulado A Palavra. Note-se que este livro tem,
entre dois poemas em prosa que abrem e fecham, quatro secções, e cada uma tem
quatro textos, perfazendo 18 poemas. Os relativos à primeira parte são
versos-manifesto, sobre que se alicerça qualquer monumento de palavras, e, com
maior razão, o contingente, mas não menos digno, monumento mirandês. Um acorde
amoroso encerra belo soneto, a que voltarei no final.
As partes seguintes, intituladas O Voo e O Chão, decorrem
entre sonhos alados de fim de dia e de vida e a prisão voluntária à terra que
nos dá o ser. Salientaria um admirável poema em prosa, “Talvez o tempo”, e
“Deixa-me falar-te dos anos”, que é um programa de existência sofrida,
solidário com a humanidade milenar e explorada. Notar-se-á esse doce imperativo
(“Deixa-te ir”, “Deixa-te andar”) bebido na filosofia antiga – Séneca, em
particular, que o acompanhou até ao fim -, que era também maneira de, nos
círculos conviviais, Amadeu ferreira levar a água ao seu moinho. Nestes versos,
domina acidez de um Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa) lido ao
contrário no poema “Aniversário”, que começa: «No tempo em que festejavam o dia
dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto.» Amadeu Ferreira a si
mesmo se biografa no dia em que nem celebravam o dia dos seus anos, nem era
feliz.
O quarto quarteto, O Riso, opõe leveza, paciência e serenidade
à morte, na visita que o sujeito faz a D. Afonso Mendes de Bornes, sepultado no
mosteiro de Moreiruola; ensina-nos eu não há que pôr «esperança na dureza da
pedra», quando, pelos vistos, só existimos em «voo de beijo» ou de borboleta
efémera, «num delicado e delido pergaminho».
Irmana-se, aqui, um projecto de criação e uma filosofia de
vida repleta de vicissitudes, remetendo-nos para o poema de entrada, donde sai
título do livro. A sobrevivência – e, mais do que isso, a renovação – emerge do
que, distraídos, não vemos, ou pisamos tantas vezes, sem nos darmos conta. A
erve reverdece: o monumental estiola, desfaz-se. Ser humilde não é ser pequeno,
nem mesquinho; a brevidade pode durar mais do que a suposta majestade de
Moreiruola.
Esse revivescer, que foi a diligência de uma vida agora
celebrada, essa solidão da castanha entre as ervas augurando um nascimento,
como lemos no derradeiro poema, revêem-se em analogias fecundas dispersas na
meia dúzia de títulos: ninhos, amendoeiras, ameixeira, água «fresca e limpa»,
isto é, “A eternidade dos momentos”, título que encontramos em Cula Torna
Ampuosta Quinquiera Ara / Em Cama feita Qualquer Um Se Ajeita (2004). No texto
central, nono, “O poço”, temos a lição do Poeta: ainda que no fundo do poço –
na fossa, diríamos -, olhemos para cima, pois «é para esse lado que está o sol
e tudo que vale a pena, por exemplo a vida, e a sombra é sempre uma nuvem
passageira, por negra que seja» (p. 50).
Andou bem Editor, que falava em comemorar os 65 anos de
Amadeu Ferreira; afinal, recebemos um presente do Escritor, que nos desafia a
dar-lhe eternidade, conjugando as duas línguas - a ele e aos seus pseudónimos,
abrindo-se outro ciclo de vida. O Amigo fica connosco, em memórias felizes,
nesse “Olá, meu caro!” com que atendia o telemóvel ou nos abraçava. O Autor
exige ser para lá de nós, alargando-lhe a recepção, como se cada um dos
depoentes em O Fio das Lembranças fosse gota caída num oceano generoso e, em
ecos líquidos, circunferenciasse até à praia de novos leitores.
A eternidade dos outros está em nós, ervas humildes, que
desafiam um Céu vazio, em que ele não acreditava. Entre as várias definições de
amor que o Poeta nos ofereceu, há um verso aqui retraduzido - «pode ser
silêncio que se não dome» - que eu prefiro na versão de 2004: «pode ser um
silêncio que se espalhe». Na verdade, mais fiel ao original mirandês, eu
traduziria: amor «pode ser um silêncio que se derrame». A obra de Amadeu
Ferreira e sua memória (sendo este livro um primeiro sinal) transformar-se-ão,
se quisermos, nisto: «um silêncio que se derrame» - em leitura, homenagem,
lembrança querida.
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