Fernando Pessoa
1949 – De Moncorvo a Bragança – uma Aventura (1ª parte)
Moncorvo , 1951 |
Em Julho de 1949, fiz o exame de Admissão aos Liceus. O mais longe que eu tinha ido até então, fora Mogadouro. Bragança ficava lá no fim do mundo! Ir a Bragança era uma aventura. E foi. O meu pai fez a sua revisão ao carro: um citro-arrastadeira, preto, muito velho, talvez um dos depojos da 2ª Guerra Mundial, que ele comprara no ano anterior no Porto , quiçá em vigésima mão. À vista até estava bonito: muito lavadinho e brilhante.
Connosco foram também a vizinha, Menina Maria da Graça Camelo e as duas meninas africanas que ela tinha hospedadas em sua casa: a Frances e a Jovita. O Dr. Pinto levou também duas ou três miúdas ; o Sr. Peixe mais umas quantas, e lá fomos até Bragança. O carro do meu pai começou a engasgar-se e, aos solavancos, ora pára ora arranca, foi ficando para trás. Havíamos saído pelas 8h da manhã, para irmos almoçar a Bragança, evitando a caloraça que aquele Sábado de Julho ameaçava. Depois descansaríamos e no Domingo iríamos passear pela cidade. Era o combinado. Mas a velha arrastadeira não esteve pelos ajustes. Parou mesmo. Não sei precisar onde , mas lembro-me das sombras ralas das amendoeiras nas bermas, escassas , raquíticas, sofrendo sob o sol abrasador. O meu pai e as quatro fraca-chichas que nós éramos, empurrámos o carro para a sombra de uma árvore um pouco mais copada.
Antigo liceu de Bragança |
De fato novo, o meu pai meteu-se debaixo do carro a apertar porcas e parafusos, a ligar fios e tubos. O sol já ia quase a pino e as poucas sombras iam ficando cada vez mais reduzidas. Pelas 11 horas comemos os bolos de bacalhau e bebemos água bem racionada. Pelo meio dia, o sol e a sede provocada pelos bolinhos de bacalhau estavam a deixar-nos de lábios rebentados. Daí a uma hora já não havia mais água. Nem um carro passava, nem um pastor, nem viv’alma. Nem uma fonte! O meu pai tentava aguentar, mas estava a escorrer suor e eu apercebi-me da sua angústia porque, a certa altura, deixou de dizer as suas graças acerca da avaria. Fui para junto das pernas dele e ele agradeceu dizendo: “ Dá-me a chave de bocas, dá-me a chave de fendas , pega nestes parafusos, dá-me o alicate de corte, agora não sei de duas porcas, caíram-me, procura-as lá...”. As porcas na terra poeirenta e ressequida eram quase agulha em palheiro, mas vá lá , depois de muito esfregar os dedos na terra arenosa, encontrei as malditas porcas . Finalmente, seriam duas da tarde, o carro resolveu pegar. Muito devagarinho, e o meu pai lá dentro a chamar-nos : “Depressa, depressa, não posso parar, porque não sei se o carro volta a arrancar”. A correr, num sufoco, primeiro uma , depois outra, por fim mais duas, entrámos de cambalhota e lá nos arrumámos. Chegámos a Bragança eram quase as 5 horas da tarde. Nós e o carro parecíamos vindos de uma guerra. E vínhamos. Na casa onde íamos ficar alojadas, só pedimos água, muita água, para bebermos e nos lavarmos.
O meu pai, depois de beber um litro de água e deitar um jarro dela pela cabeça abaixo, seguiu para Mogadouro enquanto o carro andava, pois tinha muitos pacientes à espera. Eu espremi a minha lagriminha, porque ia ficar duas semanas sem ver pai nem mãe. Mas toda a gente me deu mimo e eu calei-me.
No dia seguinte.... Amanhã conto o resto.
Leiria ,22 de Setembro
Júlia Ribeiro
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Como aventura chegou. Espero pelo resto.
ResponderEliminarBlogueiro
Mario Eurico Pontes Martins disse: Eu fui de camioneta e vim de comboio mas já em 1960
ResponderEliminarJúlia, sempre encantas com tuas lembranças muito bem contadas, ninguém jamais prendeu a minha curiosidade com fazes tu. Tenho tuas histórias aguçando a minha imaginação como se eu as tivesse vivido. Obrigada. Beijinho
ResponderEliminarWanda
São Paulo-Brasil
Continuo a espera do resto ...
ResponderEliminarGostei do que li . Quando vem o resto?
ResponderEliminarNuno
Maria Margarida Pinto Guarda disse:que comer não guardes que fazer........
ResponderEliminarOlá, Amigos:
ResponderEliminarObrigada por deixarem o vosso comentário.
Uma saudação especial para a Wanda que está de novo connosco e continua sempre aquela amiga tão gentil.
Júlia