quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Cartas a uma morena – evocação do feminino em Junqueiro - Adília Fernandes

       
Morena


Não negues, confessa
Que tens certa pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena.

Pois eu não gostava,
Parece-me a mim,
De ver o teu rosto
Da cor do jasmim.

Eu não... mas enfim
É fraca a razão,
Pois pouco te importa
Que eu goste ou que não.

Mas olha as violetas
Que, sendo umas pretas,
O cheiro que têm!
Vê lá que seria,
Se Deus as fizesse
Morenas também!

Tu és a mais rara
De todas as rosas;
E as coisas mais raras
São mais preciosas.

Há rosas dobradas
E há-as singelas;
Mas são todas elas
Azuis, amarelas,
De cor de açucenas,
De muita outra cor;
Mas rosas morenas,
Só tu, linda flor.

E olha que foram
Morenas e bem
As moças mais lindas
De Jerusalém.
E a Virgem Maria
Não sei... mas seria
Morena também.

Moreno era Cristo.
Vê lá depois disto
Se ainda tens pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena!



Dedico a minha reflexão à filha de Guerra Junqueiro, Isabel, pela sua dedicação a grandes causas sociais. Faz parte do núcleo fundador da Cruzada das Mulheres Portugueses, iniciativa da mulher de Bernardino Machado, Elzira Dantas Machado, com um importante papel no apoio aos combatentes e seus familiares, durante a Grande Guerra. É Presidente da Comissão de Enfermagem e, entre outras associações, elemento do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, que tem como objetivo a defesa dos seus direitos sociais e políticos. Isabel envia condolências a Bernardino Machado, aquando da morte da filha, Maria Francisca, enfermeira do CEP no hospital militar português em Hendaia, onde os pais estão exilados. A sua presença junto desta família, de destacada notabilidade e de profundo empenho na assistência e em favor dos direitos da mulher, é demonstrativa da importante atividade que desenvolve, ao lado de outras grandes republicanas como Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete.
A carta é do acervo do Museu Bernardino Machado, em Vila Nova de Famalicão, tal como outras, dela e de diferentes origens, que aludem à obra do pai.

               
          

Carta de Isabel a Bernardino Machado, lamentando a morte da filha Maria Francisca (1918)

Em 1870,  Guerra Junqueiro, a quem Eça de Queirós chama “o maior poeta da península”, publica o poema Morena, inserido na obra A Musa em Férias. Dentro do seu respeitável conjunto de trabalhos, podemos considerar que Junqueiro enforma neste poema um epítome imagético sensual e sexual. Cheiros e sensações acentuam essa sensualidade, pelo recurso às violetas, rosas e açucenas, tal como Jorge Amado nos traz em “Gabriela, cravo e canela”. Junqueiro rebusca a oratória na auto comiseração e na elegia maior, onde invoca o Ser Supremo e seu Filho, chegando mesmo a comparar a morena à entidade virginal suprema da cristandade.
Desde logo, podemos destacar dois traços que são centrais na configuração de um feminino que atravessa as épocas: a sexualidade e a espiritualidade.
Para uma historiadora, a percepção da trama feminina forjada pelos poetas e a recuperações das imagens da mulher que, clara ou subtilmente, tratam, reclama um outro olhar que se sobrepõe à exotização, aos mitos e às construções imagéticas. Para uma historiadora, a análise textual é feita no contexto do saber. Citando Foucault, “o saber (...) pode estar em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais, decisões políticas” . Logo, o saber, representando as condições históricas de cada momento, avalia também as possibilidades diversas das condições percetivas e discursivas. Poetas e romancistas cruzam-se, sem dúvida, com as categorias e conceitos sobre o feminino, mas na sua construção e por força do imaginário romântico (em Junqueiro, Garrett ou Eça) a mulher idealizada pode não traduzir a realidade.
A análise deste poema não dispensa o enquadramento do autor no contexto literário em que vive. Deste, faz parte a Geração de 70, ou de Coimbra, o realismo e outras correntes que integra ou o influenciam. Sobretudo, favorece a compreensão da obra a inspiração que Junqueiro faz decorrer de Baudelaire e de Michelet. Estes dois autores trazem-nos o Simbolismo, movimento literário que se segue a outro, o Decadentismo, tocando-se ambos na sua significação, nomeadamente, na crítica à moral e aos costumes burgueses. O Simbolismo é introduzido por Charles Baudelaire, introdutor também da modernidade, ligada ao desenvolvimento da cidade. Pertence ao grupo dos poetas malditos – poète sinistre, favori de lénfer, courtisan mal renté – designação que advém da vida boémia e de excessos a que se entrega, da rejeição das regras sociais, da defesa de que a humanidade é mais criativa, intrépida e evoluída quando enfrenta os males da vida.


O Simbolismo prega o subjetivismo e os estados de alma, contra a ordem racional e científica. A melancolia, o misticismo, a inquietação e o sensualismo apresentam-se como os temas fulcrais em que os poetas mergulham. Neste terreno literário, grassam as imagens das mulheres que protagonizam a História, descritas aqui e na linguagem poética na mesma crua dimensão, como a prostituta de Charles Baudelaire ou a feiticeira de Jules Michelet. Com eles, contudo, a sexualidade feminina é exaltada, contrariando a sua condenação por parte dos poderes civis e eclesiásticos ao longo dos séculos.

Historicamente, estas categorias de mulheres sintetizam a hipótese central que explica, em dois eixos fundamentais, a condição feminina criada pela sociedade e pela cultura: a sexualidade e a sua definição relativamente ao poder. O poder desenha uma condição opressiva pela dependência vital, pela subalternidade e pela incapacidade das mulheres se autonomizarem dele. A centralidade do corpo e da sexualidade feminina é um campo disciplinado e regulado para a procriação. Outros objetivos traduzem a desordem social e moral, onde se inscreve a noção de pecado, a indeclinável pedra de tropeço da mulher, afirmação recorrente nos textos dos moralistas.


O conceito de mulher moral ou virtuosa, a que cultiva a virtude da castidade, está subjacente à repressão da sexualidade, como a que se processa em clausura, que conhece a primeira lei universal em 1298, com a bula Periculoso, de Bonifácio VIII. A clausura é o melhor meio para a preservar, porque impõe a separação absoluta do mundo. Verifica-se nos conventos e recolhimentos, acolhendo alguns deles prostitutas ou madalenas, nome que decorre por estarem estes institutos sob a protecão de Santa Maria Madalena, prostituta que se redime alcançando a salvação eterna. Torna-se modelo de arrependimento para as prostitutas. O progresso da medicina vai contribuir para a transformação da visão da prostituta no seio da evolução da moral pública. De pecadora passa a delinquente, dado ser responsabilizada pela transmissão das doenças venéreas, especialmente, a sífilis.

Entre os modelos edificantes da mulher sobressai a Virgem Maria, que simboliza as funções tradicionais da mulher que se enaltecem, em especial, o matrimónio que legitima a prole, e o espaço privado, outra forma de clausura.

A segregação social no convento ou em casa, numa vivência espiritual, perfeciona e limita as oportunidades de sedução e de perdição, mecanismos de controlo da sexualidade feminina, epicentro da sociedade patriarcal. Olhada com a luxúria como os atos supremos da irracionalidade, exigem em todos os tempos manifestações de moralistas, teólogos e pensadores. Diderot, no século XVIII, considera que dominam a feminilidade até ao desequilíbrio patológico, opinião que realça no artigo romanesco Bijoux Indiscrets, com a expressão: a mulher é um sexo que fala.

Baudelaire exalta a sexualidade feminina na obra poética Fleures du Mal, condenada como imoral, em 1857. Glorifica Safo, a heroína da modernidade, o modelo erótico da antiguidade grega que retrata no poema “Lesbos”. Neste, e em todos os seus poemas, revela a mulher como dominadora do ato sexual, trazendo para a literatura a figura da femme fatale que será recorrente na poesia finissecular. Cleópatra foi eternizada pela sua inteligência e sedução. Com a fascinação por serpentes, encarnará, na poesia do segundo oitocentos, a imagem da mulher serpente, sedutora, envolvente e letal, símbolo da tentação erótica. Sugestiva e insaciável é a “mulher sereia”, que inebria com o seu canto os marinheiros que rodeiam a ilha de Circe, por quem Ulisses se perde de amores. Essa figura, como tantas faces da mulher fatal, possui um poder infindável de sedução e de ânsia em causar a morte do homem que atrai. Do mesmo modo, louva-se Salomé, que o Padre António Vieira condena no sermão Degolação de Baptista.

Sobre a prostituta, Baudelaire diz: “aquilo a que os homens chamam de amor é muito pequeno, muito limitado e muito frágil, comparado com essa inefável orgia, com esta sagrada prostituição da alma que se dá inteira”. A prostituta partilha com os homens a volúpia e o que emana dela: a rua, a noite, o proibido, a transgressão, o prazer. É considerada má por estes motivos e útil por assegurar a monogamia, a fidelidade e a castidade das outras mulheres. Baudelaire coloca-a no caótico pano de fundo que representa a cidade do século XIX, onde é passeante e livre, assemelhando-se ao flâneur, a personagem maior do cenário urbano e moderno.

Embora se observe a conformação da atuação feminina aos padrões que lhe são impostos e que refletem as vivências estereotipadas na apropriação da sexualidade e do corpo, algumas concebem formas de rutura. Podemos referir as místicas, que pelo seu contacto com a mensagem de Deus, alcançam influência e poder. Os fenómenos místicos acontecem, sobretudo, em clausura e no seio do exacerbado clima de religiosidade trazido pelo Concílio de Trento, no século XVI. Associa-se-lhes grande parte da produção da escrita feminina em reclusão, de que é exemplo Santa Teresa de Ávila. Muitas, são processadas pela Inquisição como falsas místicas.  Para além do carácter devocional, o misticismo pode ser entendido como um expediente usado pelas mulheres para subverterem e alienarem a opressão dominante.

Hoje, os estudos registam que os fenómenos místicos são resultado da vida austera, dos cilícios e flagelações (para sofrerem como Cristo), dos jejuns, do uso de plantas na comida, algumas alucinogénias, como o absinto. A mesma explicação é dada por Camilo, que frequenta a Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Na obra Bruxa do Monte Córdova, de 1867, a sua personagem, Angélica, entra em práticas violentas de jejum por influência do seu confessor no convento. Catarina de Siena, notável mística do século XIV, torna-se modelo para inúmeras mulheres. É canonizada, chamada professora da Igreja e Padroeira da Europa, as mais altas homenagens cristãs. Em 1874, William Gull, médico da Rainha Vitória, considera-a obstinada anoréxica e perturbada mental. Admite, contudo, tal como outros especialistas, o desconhecimento do funcionamento da mente e a ousadia na naturalização de todos os fenómenos.

O uso de ervas não era alheio destas práticas. Profundas conhecedoras delas desde sempre, as mulheres manipulam-nas como substâncias curativas. O poder de curar associa-se ao diabo, que o confere em troca da sua sexualidade. Este último aspeto assume um peso histórico-cultural relevante na explicação das ocorrências de âmbito sobrenatural. É o grande argumento para as converter em feiticeiras aos olhos da Igreja pós-tridentina. Na sua condenação, toma peso a dimensão erótica subversiva, de acordo com O Martelo das Feiticeiras, obra de 1486, dos dominicanos Henry Kraemer e Jacob Sprenger, obra patrocinada pela Inquisição.

Michelet inclui esta obra na historiografia que consulta para escrever La Sorcière, em 1862, após a Revolução Francesa. Considerado um historiador romântico, recorre aos documentos históricos, sem abstrair o encanto da poesia e da literatura quando relata os factos. Fica evidente, nas palavras de Michelet, que o seu intuito é “partir, não do Diabo, uma entidade oca, mas de uma realidade viva, quente e fecunda: a feiticeira”. Fá-la surgir como um crime da Igreja, pelos rígidos preceitos que propaga. Santa e feiticeira confundem-se nas suas funções sociais: intervenções em situações de desespero, comunicação com o mundo dos mortos e profecias. Distinguem-se, todavia, quanto ao prestígio. A bruxa tem uma aura de atracção ou repulsa, a santa é venerada e o seu valor público é unanimemente aceite.

Podemos concluir que a mulher, em termos históricos e literários, respeita ao mundo dos sentidos, liga-se às forças da natureza, ao desconhecido e a poderes misteriosos, emerge em mitos, crenças, estereótipos. Estas imagens entrelaçam religião, razão e ciência, atravessando quase toda a história da cultura ocidental europeia numa eterna dramaturgia. Povoam o imaginário, fixam lugares e alegorias. Como privilegiada musa dos poetas e da arte em geral, apresenta-se como a mulher fogo e de paixões românticas que tece o desejo do homem e consome as energias viris; como o silêncio que dissimula; a filha do mal, a sombra, a histérica herdeira das bruxas do passado; a mulher água, calma e lânguida ou terra que fecunda e amamenta; a estabilizadora e o pedestal da moral; a mulher das agonias, dos ritos mortuários e guardiã dos templos; a mulher, enfim, que escapa à cultura cósmica dos homens.

A mulher morena tem nuances na História que a subalternizam: a mulher das camadas populares, exposta ao sol do campo (em contraste com a mulher burguesa, resguardada), ou as do povo judaico, muitas delas perseguidas pela Inquisição. Mas admiram-se na sua sensualidade as que Vinicius canta, tal como as da Andaluzia, imortalizadas pela Carmen, protagonista transgressora da ópera de Bizet.
Hoje, de acordo com uma publicação de Boaventura Sousa Santos sobre o tráfico de seres humanos (2008), são as mulheres morenas dos países da América Latina as mais pretendidas pelas redes de prostituição, influindo nessa preferência os concursos de beleza que as expõem.

Guerra Junqueiro, ao cantar a beleza da morena, projeta-a na natureza e na sensualidade. Ousa dedicar-lhe um poema, ajudado pelo recurso ao enredo poético. Só aqui se distancia da praxis dominante, em tudo o mais, repete-a. Não exprime a sua racionalidade nem valoriza a vertente intelectual, porque este aspeto não estaria em consonância com os cânones. Confirma-se tal posição através das palavras dirigidas às filhas, em carta endereçada ao escritor Bernardo Pindela, em 1888:
Não quero fazer das minhas filhas nem livre pensadoras, nem sirigaitas literárias. É exactamente para que não o sejam que eu lhes quero ensinar os rudimentos singelos e simples das maravilhosas ciências da natureza. Duas ou três dúzias de livrinhos elementares e perfeitos (...).

Na realidade, Junqueiro convive com as teorias evolucionistas que representam o contributo mais válido para a análise da mulher no século XIX. No final deste século, vigora, ainda, a comparação tradicional entre as capacidades de um e de outro sexo ao nível do cérebro, constituindo tal  prática um dos mais propalados meios de provar as deficiências da mulher. Concluindo-se que "mais cérebro (...) significa, necessariamente, melhor cérebro" , o da mulher, alegadamente de dimensão mais reduzida, não apenas corresponde a um menor desenvolvimento mental, mas evidencia, também, a permanência de traços primitivos da natureza humana expressos na sua personalidade, como o instinto e a capacidade percetual. Estudados como compensações à inferioridade racional que a caracteriza, por serem condição necessária à sobrevivência da raça – o instinto torna-lhe mais leve e agradável o fardo de dar à luz e cuidar das crianças – são, porém, como as emoções que a dominam, causa da sua fraqueza e inevitável fracasso.

Mas Junqueiro recebe, no mundo literário em que se move, os ecos sobre o papel cultural das salonières (ou précieuses, como, ironicamente, as designa Molière), da Madame de Pompadour, “a verdadeira ministra das artes em França”, e da Marquesa de Alorna. Outras mulheres marcam, intelectualmente, as épocas a que pertencem, repercutindo-se para além delas, como as escritoras feministas portuguesas do início do século XX, concretamente, Alice Pestana, de pseudónimo Caiel, jornalista e pedagoga. Por outro lado, Guerra Junqueiro vive no pós-guerra e assiste ao aparecimento da nova mulher. Emancipada, ativa e urbana, investe no seu valor pessoal, no acesso à educação e às funções públicas, entrando em dissonância com o modelo maternal e doméstico, que se mantém como o princípio organizador da sociedade.

Teme-se, por estas razões, que a emancipação feminina prejudique o papel da mulher na transmissão dos costumes essenciais – mais fortes do que as leis – destino que lhe confere uma missão civilizadora.









       
                           José António e Ana, pais de Guerra Junqueiro

        



                                  Filomena e Júlia, a mulher e a filha
           (Fotografias gentilmente cedidas por Filipe Pinheiro de Campos)



                                                                                    Freixo de Espada à Cinta,16 de setembro de 1916


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