Eu tinha oito anos e nada sabia de mim. Vivia
em rua de filósofo - Oróbio de Castro -, que pouco sabia de si, no trânsito de
cristão a judeu. O empedrado desaguava na Rua Direita, mas eu preferia a
paralela Rua dos Gatos, descida quase a correr, não me caísse uma varanda em
cima. Dirigia-me à cidadela, como quem vai atrás de enigma. Estava longe de
imaginar que me seria pedido, um dia, desvendar alguns segredos. Amo este chão,
que me fez quem sou, e desejo refrescar-lhe dúvidas e raízes. No Largo do Principal,
tomava fôlego: em frente, a igreja de São Vicente trazia quadra do romanceiro
espanhol, que minha avó recitava a miúde: «Hallóse Don Pedro libre, / y a su
mal medio buscando, / se casó con Doña Inés / en Berganza con recato.»
Subir a Costa Grande não era fácil, irregular
nos seus calhaus delidos pelo tempo. Ao cimo, um portal quínhentista evocava o
primeiro arrabalde deslizando para o rio. Era memória tardia de burgo que já no
século XV transbordara da cinza do medo guardado em barbacãs. Eu queria imaginá-la
festiva, dentro e fora de muros, nessa gloriosa manhã em que um pregão reuniu
no largo da câmara, entre a Domus Municipalis e o pelourinho, o povo todo, a
quem foi anunciado que D. Afonso V, considerando «os muitos serviços e obras de
grandes merecimentos que a nós, e a el-rei D. Duarte nosso padre, e a nossos
Reinos, tem feito D. Fernando, segundo duque de Bragança, meu muito amado e
prezado primo, e querendo-lhe galardoar como a nós cabe, e por no-lo ele
requerer», autorizava que, dali por diante, a vila de Bragança se chamasse
cidade. Fora a carta de foro dada no arraial de Ceuta, em 20 de Fevereiro de
1464. Tornara-se o nosso dia fasto. Saudava, agradecido, esse D. Fernando I, na
sua estátua de bronze, sobre granito, rodeada de folhame. Em cota leve, flectia
ligeiramente a perna direita, espada oblíqua caindo, rígida, à esquerda; e,
entreaberta na mão direita, a carta foraleira, que oferecia à cidade. O neto de
D. João I, rei ínclito que renovara o castelo - porque filho do bastardo D.
Afonso, primeiro duque de Bragança (1442) -, era firme, impunha respeito. Eu
assistira à inauguração, em 1964. Tinha oito anos e nada sabia de nós: era um
ganapo em burgo, afinal, histórico. Agora, vinha aqui todos os dias, a casa dos
meus avós.
Ernesto RodriguesFonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)
Extraordinário texto.É pena estes livros não aparecerem nas livrarias.talvez a Traga-Mundos tenha.Vou tentar .Amanhã passo por lá.Grato pela chamada de atenção.
ResponderEliminarLeitor
Ana Diogo :
ResponderEliminarBelíssima adaptação do Prólogo d' A Casa de Bragança' feita pelo autor. Um convite irrecusável para uma visita e para uma (re)leitura da obra que tão bem celebra os 550 anos da cidade! Obg.
António Baptista Lopes :
ResponderEliminarExcelente texto com a qualidade a que este excelente autor nos habituou.