quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Castelo de Bragança, por Ernesto Rodrigues

Eu tinha oito anos e nada sabia de mim. Vivia em rua de filósofo - Oróbio de Castro -, que pouco sabia de si, no trânsito de cristão a judeu. O empedrado desaguava na Rua Direita, mas eu preferia a paralela Rua dos Gatos, descida quase a correr, não me caísse uma varanda em cima. Dirigia-me à cidadela, como quem vai atrás de enigma. Estava longe de imaginar que me seria pedido, um dia, desvendar alguns segredos. Amo este chão, que me fez quem sou, e desejo refrescar-lhe dúvidas e raízes. No Largo do Principal, tomava fôlego: em frente, a igreja de São Vicente trazia quadra do romanceiro espanhol, que minha avó recitava a miúde: «Hallóse Don Pedro libre, / y a su mal medio buscando, / se casó con Doña Inés / en Berganza con recato.»
Subir a Costa Grande não era fácil, irregular nos seus calhaus delidos pelo tempo. Ao cimo, um portal quínhentista evocava o primeiro arrabalde deslizando para o rio. Era memória tardia de burgo que já no século XV transbordara da cinza do medo guardado em barbacãs. Eu queria imaginá-la festiva, dentro e fora de muros, nessa gloriosa manhã em que um pregão reuniu no largo da câmara, entre a Domus Municipalis e o pelourinho, o povo todo, a quem foi anunciado que D. Afonso V, considerando «os muitos serviços e obras de grandes merecimentos que a nós, e a el-rei D. Duarte nosso padre, e a nossos Reinos, tem feito D. Fernando, segundo duque de Bragança, meu muito amado e prezado primo, e querendo-lhe galardoar como a nós cabe, e por no-lo ele requerer», autorizava que, dali por diante, a vila de Bragança se chamasse cidade. Fora a carta de foro dada no arraial de Ceuta, em 20 de Fevereiro de 1464. Tornara-se o nosso dia fasto. Saudava, agradecido, esse D. Fernando I, na sua estátua de bronze, sobre granito, rodeada de folhame. Em cota leve, flectia ligeiramente a perna direita, espada oblíqua caindo, rígida, à esquerda; e, entreaberta na mão direita, a carta foraleira, que oferecia à cidade. O neto de D. João I, rei ínclito que renovara o castelo - porque filho do bastardo D. Afonso, primeiro duque de Bragança (1442) -, era firme, impunha respeito. Eu assistira à inauguração, em 1964. Tinha oito anos e nada sabia de nós: era um ganapo em burgo, afinal, histórico. Agora, vinha aqui todos os dias, a casa dos meus avós.
 Ernesto Rodrigues

Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)

3 comentários:

  1. Extraordinário texto.É pena estes livros não aparecerem nas livrarias.talvez a Traga-Mundos tenha.Vou tentar .Amanhã passo por lá.Grato pela chamada de atenção.
    Leitor

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  2. Ana Diogo :
    Belíssima adaptação do Prólogo d' A Casa de Bragança' feita pelo autor. Um convite irrecusável para uma visita e para uma (re)leitura da obra que tão bem celebra os 550 anos da cidade! Obg.

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  3. António Baptista Lopes :
    Excelente texto com a qualidade a que este excelente autor nos habituou.

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