Em meados do século XX, entre Mirandela e Vila
Real deTrás-os-Montes a estrada era má e os transportes rodoviários escassos ou
nulos. Mirandela, onde o meu pai trabalhava, não tinha liceu – por isso teve
que me matricular no mais acessível, o de Vila Real. Assim, no Outono, no
Natal, na Páscoa e no início do verão eu fazia de comboio o trajecto Mirandela
– Foz Tua– Peso da Régua - Vila Real (ou o inverso) através das linhas do Tua,
do Douro e do Corgo. Viagens longas, embaladas entre tosse de vapores e apitos
lancinantes. Sempre a uma janela virada para os rios. As selvagens escarpas do
Tua, os socalcos do Douro, as ravinas alcantiladas do Corgo. Adormecia a
olhar, acordava e olhava as águas que corriam desabaladas, as árvores
retorcidas por entre penedos, as cores que mudavam conforme as estações do ano
e as estações do caminho de ferro, a gente que saía e entrava em cada paragem,
os bancos de madeira que nunca me foram duros porque eu não conhecia outros.
Chegava à estação de Foz Tua alguns minutos antes de parar o comboio que vinha
de Barca d’Alva em direcção ao Porto. Dali à Régua era um pequeno intervalo
para a imensa mansidão do Douro. Outra mudança, de alguns minutos, o suficiente
para comprar um rebuçado enorme, embrulhado em papel de seda colorido, com
franjinhas. E de novo um estreito caminho meandroso, o rio ainda mais fundo, a
automotora quase suspensa sobre a água e as rochas, uma vegetação densa,
curvas, curvas até à chegada esplendorosa a Vila Real.
Deixar as linhas férreas ao abandono é como
perder um território. Não vos serve de nada alguém guardar essas viagens na sua
memória, no sítio das cintilações. Não ficaram fixados em parte alguma os seus
rumores, os seus verdes e dourados, a espuma dos rios, a embalada sonolência,as
ofertas de merendas, o vidro embaciado onde o dedo desenhava SUEDA – para ser
lido pelas pessoas que acenavam do cais como um pacífico ADEUS.
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