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sábado, 17 de junho de 2017

CASTELO DE PENAS RÓIAS, por Fernando de Castro Branco

De castelo em castelo, após Algoso, dirigimo-nos a Penas Róias. Da nesga de sublime anterior, deparamos agora com uma ostensiva Torre de Menagem carcomida ao alto como se mordida por irregulares dentes vindos do céu. Em volta, uma paisagem esculpida pelo suor humano; o morro Levanta-se o quanto baste para vigiar o horizonte, cujo afloramento mais próximo é uma pequena aldeia de ruas estreitas, casas minúsculas de pedra e cal, cercadas de hortas, Latadas, prados e árvores descendo pelas encostas. Uma pequena igreja branca parece indeciso farol orientando a confusa geometria do povoado, e no sopé do monte um antiquíssimo caixão de pedra funerária diz-nos que imensa água humana ali terá de continuar a bater para furar o granito; que continua aliás intacto, salvo a ligeira erosão do tempo na superfície interior, como alisada por uma mão dócil.
FERNANDO DE CASTRO BRANCO

Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A SÉ CATEDRAL DE MIRANDA, por Amadeu Ferreira

Já há mais de quatrocentos anos que transfigurou toda a paisagem de Miranda, anunciando-se muito ao Longe: primeiro, quem vinha pelo velho caminho medieval, agora quem se aproxima pela estrada nacional e quem desce o Douro de barco, avista os seus pináculos de pedra, erguidos como um grito: é a Catedral de Miranda. À medida que o viajante se aproxima, tudo vai ficando pequeno, mesmo as velhas muralhas, mandadas erguer por D. Dinis em fins do século XIII, se ajeitam como cinta para tão grande corpo. Quem entra na cidade velha e vem da rua que era da Alfândega, ou da Costanielha, ou quem dá a volta às muralhas por poente, olhando Santa Luzia, fica sempre com a ideia de que uma tal imponência foi sonhada para uma outra cidade, maior e sem um contraste tão forte com as casinhas manuelinas de rés-do-chão e primeiro andar, brancas como um grande pombal. Quem sobe as arribas do Fresno, de pouca água no verão, e olha a imponência de meter medo do Douro, olha esta pequena cidade mesopotâmica e espanta-se como a Sé com as suas duas torres consegue zombar do Penedo Amarelo, ali defronte, no rio, chegando até a olhar de cima o suave bater de asas de águias e de grifos.
Esta Catedral começa por nos aparecer como um excesso que nada à sua volta consegue explicar, mas é exactamente como tinha de ser: sempre assim foi com as velhas catedrais, pequenas de mais na sua grandiosidade para lá caber Deus e a fé, apesar disso sombras da grandeza divina a que nada na Terra pode comparar-se.
A vilazinha que D. Dinis fundou em 1298 seria pequena e aconchegada dentro do seu castelo e da igreja matriz de Santa Maria Maior, desde esse tempo erguida no mesmo local onde depois se fez a Sé, agora já com nome de cidade e pergaminhos de sede de bispado, arrancado ao arcebispado de Braga desde 1545. Embora agora acolhesse outras gentes mais ricas e cultas, a cidade nunca chegou a crescer muito. Entre padres, funcionários e soldados, a maioria vindos de fora, a cidade fez-se de costas para os mirandeses, pois até a sua língua deixou de falar e apenas há pouco tempo se voltou aqui a ouvir. Mas a grandiosa Sé mostra que esta cidade foi um dia um sonho cheio de futuro e de grandeza, pois mesmo os sonhos não realizados deixam a sua pegada a marcar a história. 
AMADEU FERREIRA

Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)
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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

CASTELO DE ANSIÃES, por Modesto Navarro


O NOTÁRIO DE ANSIÃES
 Texto literário sobre a Vila Amuralhada e o Castelo de Ansiães
Fico sempre preocupado perante esta questão do património. Lembro-me de estar horas e horas, a olhar as pedras do arco de D. Dínis e do que restava das muralhas, perto da chamada fonte romana, em VilaFlor, a minha bendita terra. Quando me cansava de não haver milagres de antanho a saírem de entre as pedras, entrava na rua, para lá do arco, e ficava a ouvir os longos discursos de um sapateiro anarquista. Falo disto para dizer que, perante a enormidade dos discursos oficiais sobre o património, na nossa infância e adolescência, acabava sempre a olhar para as pessoas e a tentar descobrir o que estava para lá da história oficial, dos reis magnânimos e cruéis, dos condes e dos grandes vencedores das batalhas e das lides mais internas das cortes. Conheci o castelo de Ansiães pela mão de um notário de Carrazeda de Ansiães. Torgueiro de raiz e de admiração incondicional por Miguel Torga, tinha sido delegado do Ministério Público em Vila Flor. Nessa altura, em 1968, saía da Pensão Campos e circulava pela avenida, depois de jantar, mas cedo se refugiava no quarto, a ler. Um dia, rebentou um escândalo literário em Lisboa, nas páginas do jornal A Capital, que tinha a ver com um homem daquela vila, regressado da guerra colonial. Urna estudante do Liceu de Bragança apresentara um original de contos dele a um concurso literário, ganhara o 1° prémio e o livro fora publicado com o seu nome...

MODESTO NAVARRO
Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Castelo de Bragança, por Ernesto Rodrigues

Eu tinha oito anos e nada sabia de mim. Vivia em rua de filósofo - Oróbio de Castro -, que pouco sabia de si, no trânsito de cristão a judeu. O empedrado desaguava na Rua Direita, mas eu preferia a paralela Rua dos Gatos, descida quase a correr, não me caísse uma varanda em cima. Dirigia-me à cidadela, como quem vai atrás de enigma. Estava longe de imaginar que me seria pedido, um dia, desvendar alguns segredos. Amo este chão, que me fez quem sou, e desejo refrescar-lhe dúvidas e raízes. No Largo do Principal, tomava fôlego: em frente, a igreja de São Vicente trazia quadra do romanceiro espanhol, que minha avó recitava a miúde: «Hallóse Don Pedro libre, / y a su mal medio buscando, / se casó con Doña Inés / en Berganza con recato.»
Subir a Costa Grande não era fácil, irregular nos seus calhaus delidos pelo tempo. Ao cimo, um portal quínhentista evocava o primeiro arrabalde deslizando para o rio. Era memória tardia de burgo que já no século XV transbordara da cinza do medo guardado em barbacãs. Eu queria imaginá-la festiva, dentro e fora de muros, nessa gloriosa manhã em que um pregão reuniu no largo da câmara, entre a Domus Municipalis e o pelourinho, o povo todo, a quem foi anunciado que D. Afonso V, considerando «os muitos serviços e obras de grandes merecimentos que a nós, e a el-rei D. Duarte nosso padre, e a nossos Reinos, tem feito D. Fernando, segundo duque de Bragança, meu muito amado e prezado primo, e querendo-lhe galardoar como a nós cabe, e por no-lo ele requerer», autorizava que, dali por diante, a vila de Bragança se chamasse cidade. Fora a carta de foro dada no arraial de Ceuta, em 20 de Fevereiro de 1464. Tornara-se o nosso dia fasto. Saudava, agradecido, esse D. Fernando I, na sua estátua de bronze, sobre granito, rodeada de folhame. Em cota leve, flectia ligeiramente a perna direita, espada oblíqua caindo, rígida, à esquerda; e, entreaberta na mão direita, a carta foraleira, que oferecia à cidade. O neto de D. João I, rei ínclito que renovara o castelo - porque filho do bastardo D. Afonso, primeiro duque de Bragança (1442) -, era firme, impunha respeito. Eu assistira à inauguração, em 1964. Tinha oito anos e nada sabia de nós: era um ganapo em burgo, afinal, histórico. Agora, vinha aqui todos os dias, a casa dos meus avós.
 Ernesto Rodrigues

Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)

domingo, 18 de janeiro de 2015

CASTELO DE ALGOSO, por Fernando de Castro Branco

De longe, quebrando repentinamente a linha da visão sobre castelo, uma impressiva borboleta amarela diz-nos que cada qual toma para si a parte do tempo que lhe cabe, uma eternidade adequada ao instante de quem passa. Na distância, o Castelo irrompe como um excesso de pedra impossível de segregar pelo fluxo telúrico da natureza. O sol cai inclemente neste estranho outono, cercando a base eruptiva dos rochedos, a suavidade irregular das montanhas quietas, esperando pacientemente o repouso dessa luz extemporânea. Do lado Norte, a variável geometria das escarpas esculpidas de vinhedos desfeitos e pequenas árvores cansadas. De há muito se sumiu a borboleta amarela, envolta no seu voo discreto e súbito. Avançamos ao lugar onde o tempo se demora. Vestida de bruma, lá nos confins, a Torre de Menagem de Penas Róias some-se minúscula no meio de uma desbotada nuvem de sol, e nós avançamos com os olhos cravados no cume do castelo de Algoso, como um íman de pedra a quem não se resiste. Daqui, o Castelo ergue-se como um cubo irregular sobre a pederneira, uma espécie de grosso e solitário dente de ancião implantado ferreamente num inamovível maxilar rochoso.
FERNANDO DE CASTRO BRANCO

Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

MOSTEIRO DE S. JOÃO DE TAROUCA, por A. M. PIRES CABRAL

Os monges de Cister - ao contrário dos de CLuny -escolhiam para os seus mosteiros locais discretos, ajeitados à prática do preceito ora et labora que vinha já da regra beneditina. Bernardo de Claraval, o grande inspirador da ordem, insistia nesse ponto, uma espécie de retoma da austeridade e simplicidade monacal primitiva. As comunidades religiosas deviam tanto quanto possível isolar-se do mundo, à semelhança dos primeiros eremitas, que procuraram o deserto e a solidão para viverem mais intensamente a relação com Deus. Por isso implantavam os seus conventos em Lugares onde não dessem demasiado nas vistas, como os vales apertados e as dobras das serras - metáforas do deserto -, raramente em espaços
amplos ou sobranceiros. Um requisito contudo exigiam do local eleito: que tivesse água em abundância, de preferência corrente, com que irrigar os campos que trabalhavam como sua forma única de subsistência, considerando que os produtos da lavoura sempre seriam uma dieta mais nutritiva, saborosa e variada do que os gafanhotos de que se alimentavam os ascéticos eremitas do deserto.
A. M. PIRES CABRAL 

Fonte:"ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)

domingo, 28 de dezembro de 2014

DO CULTO DOS MONUMENTOS À POLÍTICA DO PATRIMÓNIO, por António Ponte

No contexto europeu oitocentista, o fenómeno monumental tornou-se uma realidade incontornável na área da cultura. Nas palavras plenas de atualidade de A. Riegl (1858-1905), este fenómeno configura um verdadeiro culto. Segundo a teorização de Riegl, os critérios em que se apoia o culto monumental oscilam entre a intenção e a receção, ou seja, entre os monumentos criados para permanentemente lembrarem alguém ou alguma coisa e aqueles cuja significação monumental constitui uma aquisição resultante do modo como as mensagens de que é portador são percecionadas pelos indivíduos num dado momento histórico. A publicação que ora temos a honra de apresentar estrutura-se a partir de monumentos cuja significação monumental decorre, justamente, da receção / perceção: os monumentos são-no na medida em que, no tempo presente, a(s) sua(s) mensagem(ns) são significantemente atualizadas. Eis o como e o porquê dos monumentos se constituírem em trama para uma infinidade de narrativas. Com a publicação do presente livro - dedicado aos monumentos do Vale do Douro - cumprimos o propósito de demonstrar que a relação com a(s) Pessoa(s) e a estima que nela se constrói e fortalece, é uma verdadeira seiva que mantém vivos os monumentos / património.
O presente livro dá pois rosto a uma política do património; política que se faz com e para a(s) Pessoa(s) e as Comunidades.
 No exercício da missão que legalmente lhe foi confiada nos termos do Decreto Regulamentar n° 114/2012, de 25 de maio «A Direção Regional de Cultura do Norte tem por missão, na respetiva circunscrição territorial e em articulação com os organismos centrais da Secretaria de Estado da Cultura, a criação de condições de acesso aos bens culturais, o acompanhamento das atividades e a fiscalização das estruturas de produção artística financiadas pelo Secretaria de Estado da Cultura, o acompanhamento das ações relativas à salvaguarda, valorização e divulgação do património arquitetónico e arqueológico e, ainda, o apoio a museus», entendemos dever ter sempre presente que «... o essencial não está na conservação do que é material e visível. O que torna o quotidiano ainda habitável e poético são as artes, inúmeras e secretas, da memória e do esquecimento.  Que as narrativas que publicamos possam suscitar e renovar o envolvimento da(s) Pessoas(s) com os seus monumentos.
O Diretor Regional
António Ponte
Abril 2014

Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património.

sábado, 20 de dezembro de 2014

IGREJA MATRIZ DE FREIXO DE ESPADA À CINTA, por Emílio Remelhe

MATRIZ COM "M" DE MEMÓRIA

Durante o sonho dos homens, a Terra não dorme. Dá muitas voltas consigo mesma. Em tempos de que não há memória, os planaltos mudaram de Lugar, as montanhas afastaram-se dos mares, os vales convidaram rios a passar. Quando se acalmou, o corpo feito terra, água, fogo e ar, fez-se também abrigo. Os homens guardaram-se das intempéries e dos animais. Desenharam espaços, dividiram lugares, levantaram paredes. Para se protegerem de outros homens, para se encontrarem com deuses. Muros para o corpo, desenhos para a alma. Nada nasceu do nada. Lugares, formas e gestos nasceram por necessidade, por desejo, por determinação. Por isso, cada memória traz consigo muitas outras, entrelaçadas. Nas nossas viagens cabe a terra toda. Na nossa memória cabe o mundo inteiro. No nosso mapa liga-se o conhecido e o desconhecido, à espera de oportunidade. Chegámos a Freixo de Espada à Cinta, onde a terra parece estar mais perto do sol e o rio brinca às escondidas com as montanhas, sem pressa de chegar ao mar. Vimos igrejas-salão na Alemanha, em França, na Inglaterra. Em Portugal, o Mosteiro dos Jerónimos e o Convento de Jesus em Setúbal. Ver uma coisa é ver e saber outras. E é preciso fechar os olhos a tudo o que vemos de igual ou parecido, para melhor ver o irrepetível. Cada lugar é único, tal como cada rosto. Para conhecer o templo de São Miguel Arcanjo é preciso ouvir, ver e sentir, dentro e fora de portas. Sentir este e o outro lado das paredes. É que a fé dos homens é uma só e distribui-se pela terra, pelos frutos, pelas mãos, pelas palavras, por Deus. Alguém com ar de quem atravessou todos os séculos diz que as coisas são como são, que sabemos apenas o que sabemos e pronto. Alguém que nos leva a ver muito mais do que poderíamos imaginar.
EMÍLIO REMELHE

Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)