A propósito do evento "Guerra Junqueiro - De Freixo para o mundo", a realizar nos dias 15, 16 e 17 de setembro, em que Freixo de Espada à Cinta celebra o "seu" poeta, com uma série de eventos programados para esses três dias, entre eles, a projeção de filmes, exposições, teatro, conferências, entre outros, publicamos um texto que Guerra Junqueiro leu, em representação de Portugal, numa celebração em Zurique, à época, como ministro plenipotenciário.
A
FESTA DE CAMÕES
Discurso
de Guerra Junqueiro
O
nome sagrado de Camões junta-nos hoje aqui, em fraterno convívio, durante
algumas horas. Camões é Portugal, e, a festa de Camões, o dia santo da nação.
Celebremos o herói religiosamente, vivendo este dia na sua alma, comungando no
pão do seu espírito.
Adoremo-lo
para nos sublimar, para que nos atraia e venha a nós. As línguas de fogo só
descem quando se desejam, e os santos só nos ouvem quando estamos próximos.
Camões é o génio lusitano, a idealidade da raça num herói. Pertence ao grupo
dos imortais, dos que viveram no Mundo o breve instante, com olhos de
eternidade e de infinito. A vida resolve-se em dor e amor, e ele amou e sofreu
como poucos homens. Amou a justiça, amou a virtude, amou a beleza. Amou a
Pátria na humanidade, a humanidade no Universo, e o Universo em Deus. E desse
imenso amor fez colheita de luto e colheita de dor. Semeou beijos e
nasceram-lhe víboras. Pôs na fronte da Pátria um diadema de estrelas, e recebeu
em galardão uma coroa de cardos. A inveja, o rancor, a estupidez, a mentira, a
hipocrisia, a ferocidade - bando de lobos e de hienas, vão atrás dele
continuamente. Não o deixam, rasgam-no, dilaceram-no. Toda a sua existência de
herói e de mártir é a escalada abrupta de um calvário. O sangue do coração
evaporou-se-lhe em génio e verteu-se-lhe em lágrimas. Foi Apolo na cruz, aédo e
Messias, bardo e Redentor. Cantou como um épico, lidou como um herói e acabou
como um santo. Nessa imperial, grandiosa e maravilhosa Lisboa do século XVI,
ovante de fortalezas, catedrais, estaleiros, praças, palácios, cúpulas,
bazares; nessa Lisboa rútila e quimérica, de gentes estranhas e desvairadas,
nadando emoiro, fulva de pompas, louca de vícios, ébria de orgulho e de prazer;
nessa Lisboa babilónica, vasto empório do Mundo, rainha esplêndida dos mares,
onde frotas de galeões bolsavam tesoiros fabulosos de países de sonho e de
mistério; nessa Lisboa, Capital da Luz; nessa Jerusalém das Descobertas,
agonizou abandonado e atribulado, mendigo e mártir, sem pão e sem lar, o maior
e o mais sublime dos seus filhos, o gigante da raça, o cantor dos Lusíadas. Viveu
pela Pátria, cobriu-a de glória, e nela morreu obscuramente, de solidão, de
fome e de tristeza. E ao mesmo tempo que Luís de Camões, divinizando-se na dor,
chegava à imortalidade espiritual, a alma da Pátria, degradando-se, envenenada
de oiro e de vileza, caía escrava e semimorta. A alma enoitecera-lhe em
letargo, mas brilhava e cantava imorredoira na voz ardente dos Lusíadas. É a
voz messiânica do épico, é a voz de fogo de Camões quem de novo a desperta e
desagrilhoa do cativeiro, e quem durante os séculos pesados de uma noite de
horror, a guia na torva escuridão, a fortalece nos desalentos e desmaios,
erguendo-a por vezes, indómita e nobre, magnânima e justa, como nos tempos
belos da epopeia. A alma sonâmbula do Povo caminha de noite, lastimosa e chorando,
atrás da alma do Vidente. Nas datas grandes, nos dias heróicos - 1640, 1807,
1820, 1834 - o culto de Camões inflama-se, Camões revive e está presente. O
centenário, há trinta anos, acordou a nação, encheu-a de fé, abrasou-a de amor,
e a alma do povo e a do Poeta fundiram-se avidamente uma na outra, como dois
beijos e dois relâmpagos. E na aleluia sagrada da vitória, no êxtase da imortal
manhã de 5 de Outubro, sentia-se, rezando e palpitando, aberta em flor de luz,
a alma divina de Camões. Libertámo-nos. Banimos para sempre os fracos reis que
fazem fraca a forte gente, os déspotas e os tiranos, cuja vontade Manda mais
que a justiça e que a verdade. Foram-se os abutres e emigraram os corvos.
Partimos algemas, expulsamos verdugos, destruímos cárceres. Não basta. À volta
de nós, mortas no chão, as ruínas escuras do passado embargam-nos o trânsito. É
necessário erguer, ordenar, edificar. Dêmos corpo concreto e realidade ao que
ontem foi sonho e aspiração. Criemos juntos, no trabalho comum, a Pátria Nova.
Invocamos Camões para a libertar, modelemo-la então à sua imagem. Façamo-la
heróica, augusta e grande como a epopeia. Façamo-la nobre como a ode, límpida e
ligeira como a canção, ridente e viçosa como a égloga, pura e cristã como a
elegia. Sejamos uma nação de alegres marinheiros e de robustos lavradores,
vivendo piedosamente vida simples, irmanando as ideias, nivelando as fortunas,
cuidando os criminosos como enfermos, amparando os inválidos como crianças,
marchando no globo, em êxtase, para a harmonia eterna, para Deus. Criemos uma
Pátria ideal, vestida de verdade, armada de direito, fulgente de sonho e de
beleza. Que as searas germinem, que os beijos esplendam, e as almas se casem, à
luz fecunda dos seus olhos. Uma Pátria materna e carinhosa, que ensine os ignorantes,
ajude os que trabalham, ameigue os que sofrem, bendiga os heróis, e deixe
entrar no coração, candidamente, a voz alada e luminosa dos passarinhos e dos
poetas. Mas essa Pátria, além de boa e jucunda, eu quero-a estável e armada de
força, além de armada de direito. Quero-a forte para que a respeitem, e siga
livre, ovante com denodo, no caminho do bem e do trabalho. A espingarda
defenderá a charrua e, a boca negra do canhão, o peito alvo da Justiça. Quando
a arma que mata defende a liberdade, os santos choram mas não acusam. Porque
então a arma de morte criou amor e gerou vida. À volta de nós, sofregamente, as
cobiças espreitam. Dêmos à Pátria o máximo de resistência, dando-lhe o máximo
de unidade. Unamo-nos todos, e ficará incólume. Separam-nos ideias e doutrinas?
Embora. Cruzemos as linhas divergentes neste ponto comum - o amor da Pátria.
Façamos variedades harmónicas dos antagonismos destruidores. As ideias e
crenças mais opostas, vivendo-as no fundo do coração com o mesmo espírito de
amor, convertem-se em raios de uma estrela, que, discrepando na circunferência,
se casam no centro e se amalgamam. Santifiquemos hoje o dia de Camões, que é o
dia heróico de Portugal, casando também no amor da Pátria, religiosamente, as
nossas vontades, os nossos ideais, as nossas almas. Em nome de Camões,
fraternizemos e trabalhemos. Os pobres da minha terra, que, debaixo de neve ou
luz ardente, abrem como arado e com a enxada os sulcos das vinhas e dos
trigais, apenas o Sol de Deus chega ao zénite e vai em meio o dia de dor e de
canseira, param no trabalho, erguem-se e descobrem-se, e numa atitude imóvel de
oração, fazendo religiosamente o sinal da cruz, entoam com voz profunda estas
palavras: Louvado seja sempre nosso Senhor Jesus Cristo! Pois bem. Eu desejo
que todos os Portugueses, no dia Santo da Pátria, imitando os jornaleiros da
minha aldeia, se ergam também em pé, de fronte nua, e digam com igual devoção,
do mesmo modo: Louvado seja sempre o nome eterno de Camões!
Viva
Portugal!
Zurique
1912.
Este
texto foi recolhido por Manuel Beja, Conselheiro das Comunidades Portuguesas, e
publicado na edição de Junho de 2012 da Gazeta Lusófona, Suíça.
Fonte: http://ensino-do-portugues-na-alemanha.blogspot.pt/2012/06/foi-ha-cem-anos-guerra-junqueiro-e-o-10.html
Fonte: http://ensino-do-portugues-na-alemanha.blogspot.pt/2012/06/foi-ha-cem-anos-guerra-junqueiro-e-o-10.html
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