TEXTO DE ERNESTO RODRIGUES
SOBRE O BELO FILME DO CINEASTA LEONEL BRITO « GENTE DO
NORTE»
Gente do Norte ou A História de Vila Rica (1977), de Leonel
Brito, é uma docuficção em renovada sintaxe, que faz deste filme pequena
obra-prima em menos de uma hora.
Na linha de experiências de Manoel de Oliveira ou João César
Monteiro, o pós-Abril trouxe um interesse crescente pelas manifestações
populares (cultura instersomática ou social) maioritariamente centradas no
Alentejo e em Trás-os-Montes, bem como por casos de cooperativa, de pequena e
grande empresa ou fábrica, em que pulsava o voto de uma democracia alargada.
No exemplo transmontano, tínhamos Oliveira e co-realizadores
em O Acto da Primavera (1962), seguindo-se Alfredo Tropa, Pedro Só (1971),
Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada (1973), de Manuel Costa e Silva, e
Falamos de Rio de Onor (1974), de António Campos. Sucederam Trás-os-Montes
(1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, Máscaras (1976), de Noémia
Delgado, e Argozelo ‒ À Procura dos Restos das Comunidades Judaicas (1977), de
Fernando Matos Silva.
Ora, neste ano, uma nova cinematografia emerge com Leonel
Brito: não é só o trabalho de campo, de décadas, que vultos eminentes da
filologia e das ciências sociais já tinham operado na região, acrescidos de
musicólogos ‒ que o mesmo realizador segue em Encomendação das Almas (1979), onde
também não falta o inquérito; nem tão-só um esboço de ficção, a caucionar o
folclore, embora pequenas histórias, geralmente dramáticas, se encaixem na
diegese. É, a par disso, um lento olhar picado do alto da serra, único a
abarcar a grandeza de uma paisagem, rude e tirânica («Entra nos olhos e não sai
mais», dizia Torga, no Diário XIII, que só essa tirania aceitava), da qual se
desce ao indivíduo comum, para, lenta, a focalização abrir à comunidade – e,
nessa alternância, contar-se a história económica, social, religiosa e política
de Torre de Moncorvo, ‘vila rica’ de minério e regra legionária à sombra do
templo, agora afrontada por anseios legítimos do retornado, emigrante,
camponês, asilado, estudante.
Se o sociológico reforça uma etnologia que, a mais das
vezes, se quedava na descrição, a novidade está em que, nesse alternar de
paisagem física e humana (e, dentro daquela, entre uma grandiosidade e a típica
casa decadente; e, dentro desta, entre sujeito e grupo), se abisma uma
narrativa, circulando entre carpires na igreja e passagem do féretro na praça,
com cena final do comboio ironicamente partido para segunda morte ou fim da
linha, enquanto não chega terceira (prenunciada no casario da barragem do
Pocinho), quando a beleza da Vilariça, decisiva no alardo de D. João I, ficar
submersa por outra barragem. A praça, entre indiferente e expectante, pode ser
a última esperança de sobrevida; percebe-se uma estratificação social; a menina
ceguinha, suas rezas e vinho fino, são de um tempo revoluto; quem tem unhas
toca guitarra, mas a desertificação é inelutável, mau grado a iniciativa de
retornados ou emigrantes. O risco do jogo em feira ou taberna é improdutivo; as
minas são, regularmente, notícia de futuro. Este filme ‒ no que estuda,
documenta, deixa de nostalgia ‒ torna-se, sobretudo, um desafio…
…Também narrativo, cuja sintaxe ou montagem importa relevar.
Há um texto (excelente, de Rogério Rodrigues; neutramente lido, para melhor
sobressair a melopeia da frase, assente em discretas repetições) que vai a par
‒ como a vida vai a par do baptismo e do casamento, da festa e do baile, da
igreja e da feira, do rio e da linha do Sabor, acontecendo, em cada momento
desses, um sobressalto. Este dá-se, ainda, na mudança de planos (e, nestes,
quem percebe logo vir aí um açude vertendo-se em catarata?) ‒ numa sequência de
quem conhece o seu chão ‒, na batida musical de José Mário Branco, nos
depoimentos bem gravados, quando o som era um bico d’obra no filme português… O
cenário sai cumulado na fotografia de Elso Roque, cujo esplendor é via real
para uma obra-prima.
[Nota: Vimos este filme, ontem, 11 de Abril, na Cinemateca,
ao lado de Leonel Brito.]
Nota do editor do blogue: Comovido com a excelente análise do amigo Ernesto Rodrigues,o realizador agradece.
Leonel Brito
Reedição de posts desde o início do blogue.
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Teresa Martins Marques :
ResponderEliminarFaço minhas todas as palavras de Ernesto Rodrigues. Que belo texto aqui nos deixa sobre um belo filme! Parabéns Leonel! É um privilégio meu trabalhar consigo no filme que acompanha a Biografia de Amadeu Ferreira . E que grande amigo você é!
Ana Diogo :
ResponderEliminarExcelente informação! Muito obrigada, Ernesto Rodrigues e parabéns, Leonel Brito! Lamento não ter visto. Abraço.