quarta-feira, 10 de junho de 2015

URROS - vossemecê tem a cara igualzinha

Urros, 1974
Estávamos em 1952, a água transbordava nos chafarizes de Santo Apolinário e do Couço, e em fiozinhos esperançosos, corria suavemente, ora sumindo-se aqui, encolhendo-se ali, ou demorando-se, ténue e intermitente, no contorno de algum seixinho, antes de chegar às hortas vizinhas; as oliveiras vergavam-se ao peso das azeitonas e as amêndoas, de um aveludado macio e tenro, em casca dura, áspera e castanha se amontoavam, depois de secas em casa ou na rua, para se entregarem ao malhadoiro certeiro

Encaixado lá no alto, num quartinho exíguo e mal arejado, a criança, com um olhar profundo, enternecidamente saudoso e magoado, via o vaivém frenético das pessoas e lembrava a beleza da sua terra, o nascer do sol, mesmo ali, por cima da serra…, a apanha da azeitona, a quebra da amêndoa… mãos nodosas de trabalho ou ágeis de juventude, cheias de grão, a cair no alqueire, como pétalas a abrir em sonhos e ilusões, e histórias dos antigos, a encurtar o serão de tempos bem diferentes…, o cheiro do pão e dos bolos da festa, os jogos com os rapazes na praça… e nas meninas dos olhos do Serafim, os amigos passavam, à volta das eiras, de arco na mão, à luz de um Outono soalheiro e luminoso…As saudades apertavam-lhe a garganta, escureciam-lhe o olhar, antes, aberto e limpo, agora, escondido entre sobrancelhas, descidas e pesadas de canseira e de receios; as lembranças derretiam-lhe a alma, e diluíam-se em apegos dos sentidos à sua terrinha natal, em acordes de melodias, que ecoavam em gargalhadas felizes, enamoradas, das raparigas, sobrepondo-se ao martelar dos malhadoiros, ao escachar, aberto e cheio, das amêndoas e ao cair, sonoro, do grão, no açafate velhinho, de noites e noites, a florescer em contas de dona de casa e em devaneios de moçoila solteira; depois, à meia-noite, qual revoada de pássaros a festejar baptizado, bandos de mocidade animada, em grupos, encantados da magia do realejo e da concertina, cantavam ao despique, enquanto os pares, em harmonia de passos e de sentidos, rodopiavam, ao som do coração, no terreiro; ele bem se lembrava, e que saudades!..

Arinda Andrés

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8 comentários:

  1. conta meu pai, que, no ano em que eu nasci, a amêndoa estava a um conto de reís o kilo!
    Tininha

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  2. Dia 1 de Outubro de 1973 comprei eu o primeiro carro, novinho, em folha, e custou-me 60 contos de réis. Nesse ano a rroba de amêndoa correu entre 12,5 e 15 contos. Com 4 ou 5 arrobas paguei o carro. Hoje não pagava um só pneu!!! Como hão-de os agricultores sobreviver? J. Andrade

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  3. Arinda! Mil perdões mas quero dizer-lhe que admiro muito a sua forma de escrever. J. Andrade

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  4. A neta e a avó a partir amêndoa e o pai em frança...venham lá histórias da nossa emigração.A foto é histórica e o texto é muito belo.

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  5. Arinda : um texto tão lindo, que eu já li completo no blog da Associação do Colégio, e aqui encurtou... Porquê? A cena no jardim com o polícia que esquece que é "a autoridade" é fantástica. E o final é extremamente interessante.
    Ora, caríssima, venha daí o texto completo, valeu?

    Abraço
    Júlia

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  6. acho bem. e ... já que de neve, estamos a falar,
    toda a noite a moleirinha, que tal...?

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  7. Então e o texto completo?

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