quarta-feira, 15 de outubro de 2014

MIRANDA DO DOURO 1557 – Álvaro de Leão e a ideia messiânica

 Álvaro Lopes, ou Álvaro de Leão, morava em Duas Igrejas e exercia o ofício de tecelão de panos de linho. Estava casado com Branca Álvares e o casal tinha 4 filhos, todos ainda solteiros, e outras tantas filhas, duas delas casadas. Apesar de também ter sido denunciado pelo irmão Diogo da Costanilha em 1544, Álvaro só foi preso pela Inquisição de Lisboa mais de uma dúzia de anos depois, em finais de 1557, depois de ter sido denunciado (ele e outros mais) pelos sobrinhos filhos do mesmo Costanilha, especialmente pelo mais velho, Lopo de Leão, que nele carregou forte. A propósito, ele mesmo haveria de comentar para os seus companheiros de cela:
- Como confessaram tudo, pelo bispo de Miranda lhes meter medo, eles deitaram a perder todo o Portugal com sua confissão, o que fizeram por serem moços.
E aos mesmos companheiros terá ainda contado que logo em Miranda do Douro, quando foram preso, os repreendera, dizendo-lhes:
- Mal aventurado leite que mamastes, que tanto mal fizestes para os outros!
E, acerca da prisão dos ditos sobrinhos, apanhados na quarta-feira de cinzas a cozinhar uma “panela de chacina e carnes frescas com gravanços,” recordou a sua reacção:
- Caí morto quando me disseram!
E agora vamos apresentar dois homens que com logo ao início foram companheiros de cela do Álvaro. Francisco Gomes se chamava um deles. Era morador em Ponte de Lima, onde exercia o cargo de tabelião. O outro era pedreiro e dava pelo nome de João Fernandes, mas adoptou, nesta circunstância, o nome de Manuel de Álvares. Eram ambos cristãos-velhos, mas diziam-se “judeus”. Certamente estavam bem instruídos pelos inquisidores e metidos como espias para arrancar de Álvaro Lopes as confissões pretendidas.
E Álvaro, que era “um homem de velho, de 60 anos para cima”, logo se deixou cair na armadilha, começando por dizer que nada havia de contar, que ele e os outros que com ele vieram presos de Miranda combinaram pelo caminho não confessar qualquer culpa e não denunciar ninguém.
Uma das acusações que o sobrinho Lopo de Leão lhe fizera referia-se à sua crença messiânica. E os espias, de certo bem ensaiados, perguntaram-lhe o que ele pensava do assunto, se as profecias eram certas e se o Messias demorava ou não a vir. E Álvaro respondeu, convicto, que o Messias estava para chegar, que havia de vir de 1560 para 1561. E acrescentou esta profética trova:
No ano de 57 ferra o bordão!
E no de 58 deixa Espanha!
E no de 59 já está fora!
E no de 60 haverá repouso!
Um dos espias fez-se desentendido e quis aclarar bem a questão. Por isso lhe perguntou se o repouso significava que o Messias já tinha chegado. Ao que ele respondeu: - “Pois já me entendes!”
Naturalmente que para a informação ser mais completa, importava saber a origem e o fundamento da coisa, e assim ficamos a saber que aquela trova lhe fora ensinada por um sobrinho seu que foi aluno de “um homem que da Hungria viera a Miranda e pousava no sprital, filho de um homem honrado e letrado e muito sabedor”
Infelizmente, não ficou registado no processo o nome daquele judeu que veio da Hungria até Miranda. Acaso isso poderia abrir outros caminhos de investigação sobre a centralidade e a importância da jovem cidade de Miranda do Douro no contexto da nação sefardita naquela época.

Na verdade, parece-nos muito estranho e digno de realce que um tecelão que pouco sabia ler e escrever, vivendo numa pequena aldeia trasmontana, se apresentasse tão bem informado sobre o que acontecia lá fora, como se verá mais adiante. Por agora, vejam só como ele se referiu a uma tal Benveniste, que deverá ser identificada como Gracia Nasi, conforme testemunhou o espia João Fernandes, aliás, Manuel de Álvares:
- Primeiramente ouviu falar numa Benveniste e que a dita Benveniste estava agora em Génova e dava muitas esmolas para todos os que se quisessem ir destes reinos; e que as cartas que vinham de Roma (diziam) que se estava lá muito à sua vontade, sem andar com o olho sobre o ombro, vivendo na lei da verdade.
Recordam-se do “judeu do sapato”? Pois o nosso espia, Francisco Gomes, disse que “um dia à noite” conversando com Álvaro Lopes, lhe perguntou se o conhecera pessoalmente e que Álvaro lhe respondeu que efectivamente não conhecera David Reubeni, mas sabia que “o dito judeu era irmão de um rei que tinham os judeus lá nessas partes (…) que era muito longe” que ficava para lá dos desertos e que tal reino nasceu quando para lá fugiram 9 das tribos de Israel quando Vespasiano, imperador de Roma, conquistou Jerusalém.
Voltando atrás ao “mestre” que veio da Hungria até Miranda e que “ensinara um sobrinho seu que está em Zamora”, Álvaro comentou que antes de 60 e da vinda do Messias “teriam três sinais e guerras e mortos e que o Turco havia de se assenhorear de Roma”. E foi explicitando esses sinais em conversas várias que, com mais ou menos pormenores, cada um dos espias foi relatando aos inquisidores.
Um desses sinais eram as guerras entre os reinos cristãos que então assolavam a Europa, nomeadamente a que era conduzida por Filipe II de Espanha, com o apoio do imperador da Alemanha, no norte de Itália, contra os Franceses e o papa Paulo IV. Vejam como Álvaro se expressava:
- Disse que agora que começaram as mais cruas guerras com a França, como nunca foram ; e que este era um dos grandes sinais que esperavam. E como (embora) se travasse em França, Portugal não havia de estar quedo (livre) e que haveria logo tanta gente morta. E que viria o Turco e se cumpririam as profecias e ficariam os cristãos-novos à sua vontade (…) das três nações não haveria mais do que uma que seria a sua e que aquela seria a melhor.
Outro dos sinais era a desagregação do mundo católico com o movimento reformador de Lutero e Calvino e com a separação da Inglaterra da Igreja de Roma. Para Álvaro Lopes a rebelião da monarquia inglesa contra o papado significaria uma conjugação de esforços entre ingleses e judeus para a liquidação do cristianismo. E contaria uma história que nisso encaixava, assim transmitida pelos espias:
- Que um príncipe de Castela pusera um escrito na porta por onde passava uma rainha. E que o escrito dizia assim: - “12 com 12 são 24”. E perguntando-lhe a dita rainha que queria aquilo dizer, o dito príncipe lhe respondeu que os 12 eram os 12 pares (da Inglaterra?) e onde ele procedia e que os outros 12 eram as 12 tribos de onde ela vinha (…) Isto contava o dito Álvaro de Leão por profecia. E que a rainha lhe respondera que dizia a verdade; e que o matara com peçonha para a não infamar de judia.
Disse mais o espia que Álvaro citara uma trova de Santo Isidro a respeito do mesmo assunto e da qual apenas fixou estas palavras:
- Aguyadas e bastones que defendem a monarquia subiram mais alto que dragones.
Uma das curiosidades referidas no processo sobre a postura do réu é o facto de ele deitar a mão à barba ou dizer que olhassem “para as barbas que tinha no rosto” quando fazia alguma afirmação mais solene e convincente. Como esta:
- Na era de 40 tivera novas de que lá longe morreram 1500 cavaleiros cristãos, o qual também fora profetizado por muitas profecias.

Certamente que se referia aos combates entre turcos e cristãos no Médio Oriente, um episódio que o mesmo Álvaro de Leão considerava como um dos capítulos finais da história do mundo cristão e que terá resumido nos seguintes termos:
- Nas guerras grandes que tem o imperador e o rei de França se hão-de desbaratar; e sendo desbaratados hão-de ir ter a Roma onde então há-de vir ali ter o Turco e há-de matar a todos e há-de ficar vitorioso; e nisto há-de vir o Rei Manso que eles (os judeus) esperavam o qual então matará o Turco e há-de ficar a lei toda uma que há-de ser de todos os judeus. Porque então estes povos que agora nos perseguem hão-de ser perseguidos e nós avalizados e os clérigos todos mortos à espada, onde seremos vingados.
Mas voltemos ao caso do alfaiate de Setúbal que se armou em Messias e arrastou muita gente. Que pensaria Álvaro Lopes desse movimento messiânico? A questão foi-lhe colocada por Francisco Gomes que o aconselhou a confessar suas culpas e delas pedir misericórdia aos senhores inquisidores pois, caso contrário, arriscava-se a que o queimassem como queimaram “o sapateiro de Setúbal e outros de sua nação”. Aí, Álvaro ter-se-á lembrado de seu irmão Diogo (o da Costanilha), de seu primo do mesmo nome, e do “rabi” João de Miranda que com o Setubalense e os da sua corte partilharam as celas da Inquisição de Lisboa e por idênticas razões tiveram o mesmo trágico fim. E então, terá respondido ao espia com as seguintes palavras:
- Disse que aqueles morreram mártires e que disso morreria ele e que não havia de confessar suas culpas.
O promotor servir-se-ia bem deste testemunho realçando a determinação do réu em manter-se na heresia judaica pois dizia que “ainda que o fizessem em pedacinhos, como um junco, não havia de confessar (…) aguardaria que o matassem porque era já velho e não queria culpar ninguém (…) e que havia de esperar pelo perdão”.
Esta história do perdão não ficará bem esclarecida e parece não ter sido até hoje bem estudada. O que não há dúvida é que Álvaro Lopes e outros presos de Miranda do Douro estavam convencidos que, mais dia menos dia, viria de Roma um novo perdão (para os cristãos-novos de Miranda? Ou para todos?) e eles seriam libertados. Aliás, o mesmo espia Francisco Gomes foi contar aos inquisidores que lhe ouviu dizer o seguinte:
- Que um homem era partido de Miranda para Roma a buscar o perdão para os cristãos-novos o qual custara oitenta mil cruzados e que isso se esperaria e que viria o tempo em que se deixaria de estar preso nem confessar as culpas, dando a entender que esperaria o perdão e que, ainda que o fizessem em pedacinhos, como um junco que tomava na mão, não havia de confessar, nem nenhum dos que vieram presos de Miranda com ele.
Registado no processo ficou ainda este comentário feito por Álvaro e contado por Gaspar de Seia, cristão-novo, ao inquisidor Ambrósio Campelo: - “Coitados de nós! Como somos vituperados, arrastados e mal tratados!”
E este outro, referido por João Fernandes: - “Estes leões, carneiros que assim andam em lambuzados em nosso sangue, que se não podem fartar, pois dizemos que cremos nesse seu Deus”.
Todas as cenas que até agora temos relatado foram levadas ao conhecimento dos inquisidores pelos espias. E provam, sem qualquer dúvida, que o réu estava absolutamente resolvido ao judaísmo: Porém, o que dizia ele nos interrogatórios a que era submetido pelos inquisidores?
Sempre se afirmou cristão cumpridor de todos os deveres, “amigo do Senhor Deus e de todas as suas causas; e se confessa e toma o santo sacramento na Quaresma em cada ano; e vai à igreja aos domingos e dias santos e os dias da semana alguns a ouvir missa e pregação quando há no lugar; e sempre deu esmolas do que podia, por amor do Senhor Deus; e é confrade do Santo Sacramento e da Santa Misericórdia e dos Cativos, dando às tais confrarias suas esmolas para ganhar os perdões, guardando os domingos e dias santos, não vestindo camisas lavadas senão ao domingo”.
Mantendo-se assim irredutível, os inquisidores acabaram por confrontá-lo com os espias seus companheiros de cela que, em sua presença, ratificaram os testemunhos e denúncias feitas. Pois, nem assim, conseguiram levá-lo a confessar suas culpas e a pedir misericórdia. E foi admoestado uma vez e outra e uma terceira… E o promotor fiscal deduziu a acusação. Álvaro continuava negando tudo e indicava testemunhas da sua terra, abonatórias de seu comportamento cristão, entre elas o cura e outro clérigo da aldeia. E todos disseram que sim, que era bom cristão.
E depois de juntar novos e mais comprometedores testemunhos contra ele, prestados por amigos que com ele vieram presos de Miranda, o promotor ditava para o processo:
- Este velho pertinaz está tão endurecido em seus erros (…) está convencido de esperar o Messias e de outras muitas judiarias (…) e não parece que se converta visto o que dizia no cárcere que o fizessem em pedacinhos (…) e sabe de muitos e está cheio como uma colmeia, como ele confessou no cárcere”.
Cheio como uma colmeia! – Bonita expressão de sabor trasmontano e telúrico!
Mas vejam a resposta que ele deu aos inquisidores quando estes lhe leram a denúncia contra ele feita pelo seu amigo António Lopes, ourives da prata em Miranda do Douro e seu companheiro de prisão:
- Disse que António Lopes era um homem de bem e honrado e o tinha por bom cristão e honrado e não sabia dele nada nem queria falar sobre isso.
Aí chegava-se ao fim, baldavam-se as esperanças de levar o réu a confessar suas culpas e pedir perdão. E o promotor de justiça concluía:
- Este réu agora está muito mais convencido e o caso parece não ter agora nenhuma dúvida e portanto não digo mais senão peço que se faça justiça.
E então o tribunal ditou a sentença: condenado à morte na fogueira.
Finalmente, ao ver-se assim condenado e sem o Messias chegar, nem perdão do papa…Álvaro de Leão decidiu-se a pedir audiência e a contar que sempre fora judeu em seu coração, que nisso fora educado por seus pais, mas agora estava disposto a mudar e a pedir misericórdia de seus pecados. Foi-lhe dito que esta confissão “não era boa nem perfeita” que apenas era feita com o objectivo de escapar à morte e manteve-se a sentença. Acabou relaxado à justiça secular no auto-de-fé que se fez em Lisboa em 24 de Outubro de 1559.


IANTT, Inquisição de Lisboa, processo 4391.

M. JOSÉ FERRO TAVARES – Para o Estudo dos Judeus de Trás-os-Montes sec. XVI – Cultura História e Filosofia Vol. VI / 1985

Por: António J. Andrade, M. Fernanda Guimarães

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