quinta-feira, 23 de outubro de 2014

BRAGANÇA - Uma rota de turismo cultural VII

A Rua Direita no dia do Kipur no ano de 1745.
Numa das crónicas anteriores vimos que o r/chão da casa de José Cardoso Borges, sita a meio da rua Direita de Bragança, servia de esconderijo aos esbirros da Inquisição para vigiarem os cristãos-novos que se juntavam em casa de António Rodrigues Gabriel, o Falho de alcunha, para fazer sinagoga, nas noites de sexta-feira.
E falámos sobre Pedro Lafaia de Castro – o chamador – que ia pela rua Direita batendo na calçada com um pau ferrado a chamar os outros para os tais ajuntamentos.
Acerca desta casa, diremos que, da outra banda, ela dava para a rua da Esquerda – assim aparece designada em alguns documentos a actual rua do Conselheiro Abílio Beça, em outras eras também conhecida por rua da Corredoira. E essa casa, por 1585, pertencia a um capitalista “judeu” de que também já falámos em uma das nossas crónicas, chamado Rodrigo Lopes, sogro de Pedro de Figueiredo, este bisavô da mulher de Cardoso Borges, cuja fortuna estaria na origem da ilustre e brasonada Casa dos Figueiredos.


Em Janeiro de 1745, faleceu José Cardoso Borges e a casa ficou a ser governada pelo seu filho António Manuel de Figueiredo Sarmento, que então completava os 30 anos de idade.
Mais novo do que ele seria Manuel de Castro, um filho bastardo do “chamador” Pedro Lafaia de Castro. Ele se revelaria como uma espécie de ovelha ranhosa no seio da comunidade marrana de Bragança.
Nesse ano de 1745, o dia do Kipur (perdão, expiação dos pecados) caiu no dia 6 de Outubro. E esse dia é o mais sagrado de todos e nenhum judeu trabalha nesse dia, que também é dia de jejum rigoroso.
Pois, logo de manhã, o famigerado Manuel de Castro se apresentou em casa dos Figueiredo Sarmento e se dirigiu ao dono da casa dizendo:
- Senhor António Manuel, quer ver como esses cães judiam? Hoje é o dia grande.
Naturalmente já antes lhe tinha explicado a razão de ser, e os rituais usados nesse dia sagrado.
Presente estava também o seu irmão, Francisco Bernardo Figueiredo Sarmento. E, em face da informação recebida, ambos assomaram à janela e viram que, sendo um dia de semana, os moradores da rua, que na grande maioria eram cristãos-novos, todos vestiam seus fatos domingueiros e se apresentavam às portas de seus estabelecimentos e nenhum deles dava mostras de querer trabalhar nesse dia.
Mas vejam as próprias palavras usadas por António Manuel Figueiredo Sarmento para descrever a cena, conforme consta do processo nº 10633 da Inquisição de Lisboa, referente ao dr. Francisco Furtado Mendonça:
- E chegando-se ele testemunha à janela de sua casa, que está no meio da rua Direita, aonde vive a maior parte dos cristãos-novos, ele viu que todos naquele dia traziam suas camisas em folha, lavadas, e não trabalhavam, sendo que muitos deles são tecelões de seda e com esse ofício se sustentam (…) E não só viu de sua janela como foi à rua verificar de mais perto e conversar com cada um deles, e na rua havia um profundo silêncio (…) E assim andavam não só os adultos como as crianças de 3 ou 4 anos.
E para além de ele próprio ter ido pela rua a verificar e falar mesmo com alguns deles, António Manuel disse a seu irmão Francisco Bernardo que fosse também por toda a rua Direita a observar. E não foi apenas de manhã, mas várias vezes ao dia, para ver se guardavam mesmo todos aquele “dia grande” de manhã até que fosse de noite e as estrelas apareceram no firmamento.
E a vigilância de Francisco Bernardo terá dado nas vistas a ponto de o advogado António Gabriel Pizarro se voltar para ele e ostensivamente terá desabotoado o casaco para lhe mostrar bem claramente que trazia por baixo um colete de linho bem lavado e uma camisa novinha, em folha. E também terá levantado a calça e mostrado a canela para que visse bem “umas meias lavadas que trazia nas pernas”.
José da Rocha Pimentel contava então uns 32 anos. Era um homem da mais alta nobreza de Bragança e Familiar do Santo Ofício. Significa isso que era colaborador daquele tribunal e, por isso, não podia deixar de estar informado sobre estas coisas. Naturalmente que também andou a espiar os cristãos-novos. Vejamos então o seu depoimento:
- Disse que no dia 6 de Outubro de 1745 era dia grande e na rua Direita estavam todos às portas a conversar, de camisas lavadas ou a jogar, e não se ouvia um só tear.
Bragança 2008.A.P.L.B.

António Júlio Andrade
Maria Fernanda Guimarães

Nota do Editor:
Reedição dos posts públicados no blog :
http://marranosemtrasosmontes.blogspot.pt/

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