A casa de Lopo era na rua da
Costanilha, a mais central da cidade, fazendo a ligação entre o castelo, a
praça do município e a sé episcopal. Era uma casa de dois pisos e no r/chão
funcionava uma oficina de sapateiros. Sim, que Lopo e seus 3 irmãos eram todos
sapateiros e todos eram ainda solteiros, morando e trabalhando em casa. Tinham
ainda duas irmãs, mais novas, uma das quais contava apenas 12 anos, mas já
estava esposada, ou seja, prometida em casamento.
Chegaram os homens da justiça e
ainda antes de exibirem o mandato de prisão, foram apanhados por um forte
cheiro a cozedura de carne, com fortes temperos, que vinha do andar de cima. E
logo fizeram tenção de subir, sendo-lhe barrada a escada pelos irmãos Lopo e
António de Leão. Em resposta o meirinho pôs-se a gritar a d´el-rei, pedindo
ajuda, em nome da Inquisição.
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Acudiu gente e o mais rápido e
decidido foi o padre João Cavaleiro que logo trepou escada acima e foi deparar
com Isabel e Álvaro de Leão, especados na cozinha, brancos como a cal e
aterrorizados. No chão, entre as pernas de Isabel, escondida pela sua saia e
tapada com um pano de avental, estava “uma panela cheia de chacina de carne de
vaca e de cabrão e muitos grãos a qual estava fervendo”.
Era um crime de extrema gravidade
e por isso foram imediatamente buscados e conduzidos à cadeia todos os 6
irmãos, filhos de Diogo de Leão da Costanilha e de sua mulher Branca Gonçalves.
Façamos aqui uma pausa para
apresentar estas duas personagens. Diogo de Leão da Costanilha era tido como
uma espécie de líder ou rabi na comunidade cristã-nova de Miranda do Douro e a
sua oficina de sapateiro era local de reunião muito frequentado. Ali se
juntavam para “fazer sinagoga” e ouvir o mestre Diogo de Leão a explicar as
escrituras sagradas e a pregar a vinda próxima do Messias. Acabou feito
prisioneiro da Inquisição em Abril de 1542 e foi queimado na fogueira, em
Lisboa, dois anos depois. Quando o prenderam, encontraram-lhe em uma arca uns
quantos papéis escritos em latim e dois pergaminhos em hebraico, além de um
pedaço de “pão asmo” e uns ossinhos – o que foi interpretado como sendo restos
da celebração da Páscoa judaica e prova de crime. Os dois pergaminhos foram
lidos e traduzidos e transcritos para o processo em 21 de Outubro de 1542 por
um outro cristão-novo (Pedro de Santa Maria) que fora já sentenciado pelo mesmo
tribunal e estava aprendendo a doutrina cristã. Em um dos pergaminhos estava
registado um contrato de casamento redigido em Castela em 1490 e no outro o
testamento de um tal Don Salomon Navarro, igualmente feito em Castela em 1484.
Os papéis eram de cartas, declarações de dívidas e registos de contratos.
Sua mulher Branca Gonçalves foi
também presa pela Inquisição, em 1544, saindo penitenciada no auto-de-fé
realizado em Évora em 12.4.1549. Veio a falecer pouco tempo depois, em Miranda
do Douro. Uma referência também para o pai de Branca, o qual se chamou André
Gonçalves Pimparel, figura mítica do movimento messiânico desencadeado por
David Reubeni (este judeu originário da Índia foi aclamado como o Messias
prometido, recebido pelo papa de Roma e pelos reis de Espanha e Portugal com
todas as honras) e que abalou toda a comunidade judaica pelos anos de 1530. Com
efeito, logo que a Miranda chegou a notícia, André Gonçalves meteu-se a caminho
de Lisboa disposto a seguir o Messias na sua missão de reunir o povo de Israel
e construir o construir o novo Reino Judeu. O Pimparel terá sido um dos 6
homens do séquito de Reubeni para os quais o rei D. João III passou um salvo-conduto
em 21.6.1526. E depois que o “judeu do çapato” (alcunha dada a Reubeni) foi
declarado “persona non grata” em Portugal e feito prisioneiro da Inquisição
espanhola de Lerena, o Pimparel terá partido para o Golfo (Turquia?) e
publicamente regressado ao judaísmo, ele que havia nascido judeu e fora um dos
“baptizados em pé”.
Voltemos agora a Miranda do Douro
onde, ao tempo em que o pimparel dali se abalou, nascia o seu neto Lopo de
Leão. E esta andaria pelos 16 anos quando o seu pai foi relaxado em Lisboa e a
sua mãe presa em Évora. E, ou por recear ser também preso ou por ter ficado “ao
deus dará” ele e os irmãos, Lopo foi viver para Castela, para casa de sua avó.
Estamos pois em Miranda do Douro
no dia 21 de Fevereiro de 1556. Como soprada pelo vento, a notícia da “panela
da chacina” de imediato percorreu a cidade e muita gente acudiu logo à rua da
Costanilha e dali, por ordem do vigário geral que entretanto fora chamado ao
local do crime, todo o mundo seguiu na direcção do aljube. Parecia uma
procissão, com o padre Cavaleiro todo impante, transportando a panela. Começava
o calvário para os filhos do Costanilha, que todos acabariam processados pela
Inquisição de Lisboa e saíram penitenciados em Maio de 1558.
Antes, porém, ficaram
encarcerados em Miranda do Douro e, por ordem do bispo D. Rodrigo de Carvalho
(antes de ser bispo de Miranda fora inquisidor em Évora e membro do conselho
geral da Inquisição) foram-lhe instaurados os respectivos processos, os quais
foram conduzidos pelo decano do cabido da Sé, o deão Gil do Prado.
As condições de segurança da
cadeia é que não seriam as melhores e Lopo e os irmãos fugiram para Castela. A
fuga em nada veio ajudar a sua causa pois que logo ao cabo de dois dias foram
novamente presos e levados de volta ao aljube de Miranda do Douro. Lopo
explicará mais tarde que a fuga se deveu à muita fome que padeciam no cárcere e
que em Castela, a duas léguas de Miranda, tinham um pouco de trigo e pensavam
com ele prover às suas necessidades.
Não vamos agora analisar os processos
de Lopo de Leão e seus manos, que isso daria para vários artigos como este.
Diremos apenas que, apesar de tais processos decorrerem em Miranda do Douro e
sob a responsabilidade legal do bispo da diocese, o conselho geral da
Inquisição foi informado de tudo e, por determinação assinada pelos
inquisidores Jerónimo de Azambuja e Ambrósio Campelo em 7 de Outubro de 1556,
foi dado poder ao dr. Gil do Prado para despachar os ditos processos “como lhe
parecer de justiça guardando em tudo a forma do direito e a bula da Santa
Inquisição”.
Concluiu-se o processo de Lopo de
Leão e ficou provado que ele tinha “em sua casa uma panela de carne de chacina
de vaca e cabrão a cozer com garbanzos e adubos na primeira sexta-feira da
Quaresma” e de suas alegações se ficou entendendo que a intenção era comer
carne em dia proibido, incorrendo no crime de heresia e “mormente constando ser
o réu cristão-novo e de má fama, filho e neto de pessoas que apostataram de
nossa santa fé católica … e consta outrossim ele dito réu guardar os sábados”.
O pior, no entanto, não foram os
crimes e as heresias. O pior foi que Lopo de Leão não quis reconhecer os seus
crimes e deles pedir perdão, antes “confessava ser judeu até ao presente e como
judeu até agora viveu só naquelas coisas que ele entendia que eram de judeu … e
que os dois irmãos mais moços e as duas irmãs faziam o que ele mandava”. E
então, “não se querendo converter ao grémio da santa madre igreja, sendo por
muitas vezes admoestado”, o despacho não podia ser outro senão a sua condenação
à morte na fogueira.
Apesar da comissão atribuída
pelos Inquisidores Azambuja e Castilho ao deão Gil do Prado, aquele despacho
tem também a assinatura do bispo Rodrigo de Carvalho e do vigário geral Amadeu
Rebelo. Mas um tal despacho teria de ser ratificado pelo conselho geral e não
podia ter execução em Miranda do Douro. Por isso, Lopo de Leão e seus irmãos e
irmãs foram remetidos para o tribunal da Inquisição de Lisboa, em 21 de Outubro
de 1557, juntamente com os respectivos processos.
E se em Miranda do Douro ele tudo negava e
nenhum arrependimento mostrava e nenhum perdão implorava, em Lisboa entrou de
confessar e mostrar-se arrependido para alcançar misericórdia. E as suas
confissões e o seu processo ganham capital importância para o estudo do
ambiente que então se vivia entre a comunidade cristã-nova de Miranda do Douro
e da onda de Messianismo que então alimentava os sonhos de muitos deles.
Lopo de Leão saiu penitenciado no
auto-de-fé celebrado em 15 de Maio de 1559 e em 19 de Junho seguinte foi
mandado de regresso a Miranda do Douro.
António Júlio Andrade
Fernanda Guimarães
FONTE:
IANTT – Inquisição de Lisboa,
processo 2181, de Lopo de Leão.
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