domingo, 5 de outubro de 2014

NA TERRA DO FERRO


O Ferrador que em Torre de Moncorvo tocava às Trindades com o malho na bigorna do tronco

Na praça do município, em Torre de Moncorvo, existe uma casa que tem insculpida no granito da ombreira da porta a data de 1709. Certamente que tal data corresponde ao ano da sua construção.Fazendo esquina da mesma praça com a antiga rua dos Mercadores, uma outra casa, que alberga no r/chão uma ourivesaria, terá sido construída na mesma época. Ambas foram reconstruídas ultimamente, mantendo a traça original. Aliás, nenhuma alteração de monta terão sofrido estas edificações nestes três séculos, tanto ao nível dos espaços habitacionais como nos espaços comerciais.
Mais difícil será tentar reconstruir as edificações que ali existiam antes daquela data e a ambiência do sítio. Apesar da dificuldade, propomos um exercício de imaginação, baseados nas informações colhidas em um processo da Inquisição, referente a Henrique Rodrigues, ferrador de profissão. É que, pelos anos de 1647, as duas casas seriam dele, conforme consta do inventário de seus bens, assim registados:- Disse que possui uma casa sobradada na praça da vila de Moncorvo (…) que parte com a mesma praça e da outra banda com casa de Francisco de Araújo, que comprou ao fisco e vale 25 mil réis.



Tem outra casa na mesma praça, na entrada da rua dos Mercadores, que é foreira ao licenciado João de Góis, que lhe paga mil réis cada ano, que parte com as sobreditas casas e com outras de Luís Correia, as quais valerão 16 mil réis cada ano.Este Luís Correia de Paiva foi exactamente um dos denunciantes de Henrique. Era também cristão-novo e confirmou que as casas eram contíguas e que havia um buraco na parede por onde espreitava o que os outros faziam e que os via fazer cerimónias judaicas, nomeadamente às sextas-feiras à tarde: varrer a casa, limpar as candeias, meter torcidas, vestir camisas lavadas… que os ouvia falar…
E disse estar lembrado de os ouvir comentar a morte de Manuel Henriques Pereira nas fogueiras da Inquisição, dizendo que morreu como mártir da religião judaica. E de ter ouvido a mulher do ferrador a dizer para este: - Agora que vem o nosso jejum da rainha Ester, é preciso comprar grãos. De outra vez que ouviu o ferrador dizer para a mulher: - Estes cães não mos querem deixar, já nos caíram na trinca, mas nem por isso hei-de deixar de fazer o meu ofício.
Efectivamente não eram só os “cães” dos cristãos-velhos, como os familiares da Inquisição Francisco Gouveia Pinto e Pedro saraiva de Vasconcelos, mas também os vizinhos “judeus” como o Luís Correia que contou ainda ter sido apanhado pela mulher do ferrador a espreitar, a qual veio para a janela a “gritar à d´el-rei que a ameaçava com Coimbra” .
Por outro lado, o senhorio de uma das casas, João de Góis, advogado, disse que a morada do ferrador tinha paredes-meias com a de Francisco Brandão. Certamente que era da outra banda, do lado da rua do Cano. E o curioso é que também nos aparece uma testemunha a dizer que havia um buraco entre as duas casas, por onde comunicavam.

Quanto ao facto de a casa ter sido comprada ao fisco, devemos concluir que ela pertencera antes a algum cristão-novo que foi preso pelo Santo Ofício e por isso lhe foi sequestrada para o fisco.Podemos então concluir que aquele conjunto de casas que por 1650 davam para a praça, sitas entre a rua do Cano e a rua dos Mercadores era todo ele habitado por cristãos-novos. E esta constatação é importante. Desde logo porque nos mostra que é necessário ter em conta a arqueologia judaica nos estudos de desenvolvimento urbano da vila de Torre de Moncorvo, como, aliás, na generalidade dos centros urbanos tradicionais de Trás-os-Montes, coisa completamente desprezada entre nós.
A existência de buracos e também de janelas e portas interiores de comunicação entre as moradias contíguas era um fenómeno característico dos blocos habitacionais dos cristãos-novos, sempre obrigados a esconder as suas coisas e o seu modo de viver, no seio da própria família e a estar sempre preparados para a fuga.
O processo não é esclarecedor sobre a localização do tronco e da oficina do ferrador. Esta, constituída pela forja, com o respectivo fole e pela bigorna, era certamente no interior da edificação. O tronco, construído com uns toros e uns casqueiros transversais, podia ser fora, ocupando um pedaço do terreiro. Será que, na reconstrução setecentista dos edifícios ficou um deles mais recuado, correspondendo exactamente ao espaço do tronco de ferrar? É uma possibilidade. E muito interessante de contar a quem hoje se senta no poial de granito ali existente. Aliás, das notícias que temos sobre troncos de ferrar em Torre de Moncorvo, verifica-se que todos eles se situavam em espaços nobres da vila: na esquina da rua das Flores e no “largo das bestas”, junto à muralha, ao início da rua Tomás Ribeiro.
Imagina-se assim o colorido que o tronco do ferrador acrescentava à praça do município: as sonoridades variadas de malhos e martelos batendo na bigorna ou nos cravos das ferraduras, o relinchar dos cavalos, o zurrar dos burros e o muar dos bois. E a gente que sempre se juntava neste tipo de oficinas, observando as artes de ferrar, ajudando a tocar o fole, examinando os animais, trazendo e levando novidades.
E aquele ferrador era um malandreco, podem crer. Gostava de brincar com coisas sérias. À tardinha, à hora das Trindades, punha-se a imitar o sino da torre da matriz, batendo com o malho na bigorna, 3 pancadas. Depois parava e de novo 3 pancadas, igualmente compassadas. E nova pausa e mais 3 pancadas.
E este foi um dos crimes que o levaram à prisão: o de ridicularizar o cerimonial cristão do tocar às Trindades:
Outra acusação respeitava à guarda do sábado. Assim, no dizer de Francisco Gouveia Pinto, cristão-velho, familiar do Santo Ofício, “viu ele testemunha trazerem-lhe, em dias de sábado, cavalgaduras para ferrar e ele não querer, dizendo que não tinha ferragem aparelhada”. E viu que normalmente “aos dias de sábado anda pela vila sem assistir ao banco. E aos domingos, antes da missa, ferra”. Esta acusação foi confirmada por outras testemunhas, nomeadamente por Luís Correia, dizendo que “aos domingos conserta a ferragem sem haver cavalgaduras à sua porta”.
O testemunho daquele familiar da Inquisição acrescenta ainda um pormenor interessante que nos permite saber que na loja do ferrador havia uma escada de acesso ao piso superior, de habitação. Com efeito, disse ele que ao sábado, a mulher do ferrador se punha “sentada na loja, no topo da escada e andava mais composta da cabeça e rosto, com tralha lavada”.
Eram denúncias bastantes e confirmadas por várias testemunhas e, por isso, Henrique Rodrigues e sua mulher, Susana Mendes foram presos e levados para Coimbra onde se juntaram mais acusações. Uma delas partiu de Brás do Canto, alcaide da prisão, segundo o qual o ferrador mandava e recebia recados, usando métodos e códigos, os mais diversos, como o de desenhar uma ferradura no nabo que era para fazer o caldo, “um sinal de uma ferradura e um bocado abocanhado e cravado com 6 cravos de pão”.
Seria por acaso que lhe deram por companheiro de prisão um tal Bernardo Gama, ferrador de Bragança? Ou para o incentivar a falar, pois que o outro tinha já admitido e confessado as suas culpas? A verdade é que também o Bernardo denunciou aos inquisidores estranhas formas de comunicação usadas por Henrique na prisão: bater nas paredes ou no soalho, a modos de linguagem telegráfica ou fazer com que da cozinha “lhe vieram 3 ovos e um deles era cru, vinham 12 os, que queria dizer que 12 pessoas tinham vindo presas”.
Curioso que do inventário das coisas do ferrador constavam “dois livros da Lusitânia, um livro de Comédias e outro livro que se intitulava os Conceitos Espirituais, que todos valiam 800 réis. E tem outro livro que trata da batalha naval e que vale 12 réis”.
Para além de ferrador, Henrique Rodrigues era também cobrador de rendas e de dívidas mal paradas ou de senhorios de fora da terra, como era o caso de mariana Mendes, de Murça, que lhe fizera procuração para lhas cobrar. E trazia ainda arrematadas por 75 500 réis as sisas das correntes da Torre de Moncorvo, ou seja, o imposto dos mesteres e o do real de água, imposto pago pela carne e pelo vinho que se comprava.
Decorreu o processo com a normalidade inquisitorial e Henrique Rodrigues acabou por confessar suas culpas e denunciar os que com ele haviam judaizado, incluindo os seus vizinhos Luís Correia de Paiva e Francisco Brandão, cujas casas comunicavam com a dele. E ditou para o processo algumas das orações que rezava. Vamos transcrever uma delas:

Sol de dia não me ferirá
Lua de noite não me empeçará
Que Adonay me guardará;
Guardar-me-á minha alma
Será minha defensão
Guardar-me-á ao meu deitar
Ao meu levantar
E ao meu entrar
E ao andar pela carreira.

FONTE – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 8044, de Francisco Rodrigues.
Fernanda Guimarães
António Júlio Andrade

Nota do Editor:
Reedição dos posts publicados no blog :

http://marranosemtrasosmontes.blogspot.pt/

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