sexta-feira, 10 de outubro de 2014

BRAGANÇA - Uma rota de turismo cultural II

Igreja de S. Vicente

A igreja de S. Vicente é um dos mais emblemáticos monumentos da cidade de Bragança. Não tanto pela sua arquitectura (de raiz românica e reconstrução barroca), mas tão só pela talha do seu altar-mor – um monte de ouro – na expressão de José Cardoso Borges, na sua Descrição Topográfica de Bragança.
Emblemática também pelos acontecimentos históricos que lhe estão associados, dois deles merecendo especial destaque. O primeiro relaciona-se com Inês de Castro. É que, segundo a tradição, ela terá casado clandestinamente nesta igreja com o príncipe, futuro rei D. Pedro, sendo oficiante o deão da Guarda.
O segundo acontecimento respeita à época das invasões francesas. Com efeito, foi do patamar exterior lateral desta igreja que, ao entardecer do dia 11 de Junho de 1808, o general Jorge Gomes de Sepúlveda lançou o grito de revolta contra as tropas de Napoleão e se meteu a chefiar um movimento político-militar que rapidamente alastrou a toda a província de Trás-os-Montes e a todo o Norte de Portugal. Comemorando esta proclamação, lá está, na parede exterior da igreja um painel de azulejos alusivo à cena, inaugurado em 11.6.1929.
Para além disso, a igreja num dos espaços mais nobres da cidade. Por isso mesmo se chamava Principal ao largo que lhe está fronteiro. O Principal era então a praça mais importante da urbe, o elemento de ligação entre a cidade e a vila (entendendo-se esta como o núcleo urbano sito dentro das muralhas) e nela convergiam todos os arruamentos.
Não por acaso, adossado à mesma parede lateral e junto à porta principal do templo, foi construído um chafariz de granito. Sim, esta era uma infra-estrutura vital para a praça maior de Bragança, o espaço privilegiado para o desenrolar das actividades comerciais, lúdicas e políticas da terra, o local de encontro quotidiano dos cidadãos. Ali se realizavam as touradas e as mouriscas, as danças e as comédias, nas grandes festas reais.
Por outro lado, a igreja de S. Vicente constitui um notável monumento da história judaica de Bragança e por ela passa, obrigatoriamente, a Rota dos Judeus. Nela, mais do que em qualquer outra parte, se guardam as memórias da “gente da nação” de Bragança. Isto porque ela era o espaço religioso mais frequentado pelos cristãos-novos da terra e o local de eleição para enterrarem os seus mortos. Expliquemos a razão.
Antes de mais, sabem os leitores que, naquele tempo, as pessoas eram enterradas no interior das igrejas e os cristãos-novos não podiam fazer de outro modo, se bem que um dos preceitos da lei de Moisés seja o de que os mortos devem ser enterrados em terra virgem, ou seja, em sítio onde ninguém tivesse antes sido sepultado.
Era difícil, ou mesmo impossível, conseguir tal objectivo, na generalidade dos casos. Em S. Vicente, porém, nos anos de 1700 abriu-se uma janela de oportunidades nesse sentido. Recordam-se de termos dito que a igreja foi reconstruída e ampliada? Isso terá acontecido em finais do século XVII e as obras terão sido conduzidas pela Confraria de Santa Cruz, a qual era dominada por cristãos-novos. E estes é que pagariam as tais obras. E ter-se-á então estatuído um preço bem elevado por cada sepultura que naquela igreja se abrisse: 4800 réis, quase 10 vezes mais do que em Bragança se pagava pelos enterramentos em outras igrejas, nomeadamente na igreja matriz que até era de maior nobreza e dignidade, se é que tais palavras são adequadas.
A verdade é que, na igreja de S. Vicente apenas a gente da nação hebreia gostava de enterra os seus mortos, certamente porque nela havia sítios onde ninguém fora enterrado antes e isso resultou das obras de ampliação efectuadas.
E já que estamos falando de enterros, diga-se que aquela gente também se preocupava grandemente com a forma de amortalhar os seus defuntos. Veja-se, a tal respeito, a descrição feita da mortalha de uma jovem enterrada em S. Vicente no dia 7 de Março de 1747, feita pelo padre que presidiu ao funeral:

- Assistindo ele ao enterro de Luísa, solteira, irmã de Baltasar Gomes e de José Gomes, sobrinha de António Rodrigues Ferreira e Francisco Rodrigues Ferreira, cristãos-novos, moradores na rua dos Oleiros, freguesia de Santa Maria, observando ele testemunha a mortalha que a dita defunta levava, por ter lido os editais do Santo ofício, viu que a dita defunta levava uma camisa nova em folha, em pano de linho fino, com as mangas puxadas para fora, e ouviu dizer ao padre Bernardo Álvares e a Joana Maria Ferreira, mulher de Diogo Pinto, vizinhos da casa da dita defunta, que eles tinham visto que a dita defunta também levava uma anágua em folha e que todos os mais fatos que levava, assim touca de freira como os mais adornos, eram novos e muitas pessoas das que assistiram ao dito enterro fizeram observação e reparo no referido, em tal forma que António Lopes, tesoureiro da igreja de S. Vicente, aonde foi sepultada a dita defunta, veio falar com ele testemunha dizendo que se admirava muito que os párocos consentissem se enterrasse tal cristã-nova com aqueles hábitos novos sabendo que era proibido pelos editais do Santo Ofício e disse o tal tesoureiro que até o pano com que lhe cobriram a cara era novo em folha; e que ao dito enterro assistiu muita gente e muitos clérigos e que faziam o mesmo reparo, como era o padre Bernardino Álvares, o padre Manuel de Morais, o padre Inocêncio da Cunha, o padre sacristão da igreja de Santa Maria, o padre José Domingues e o padre António da Cunha. E que leu nos ditos editais por ter lido aos seus fregueses. E que o padre Manuel Rodrigues Ferreira, tio da defunta, irmão dos sobreditos…

Por finais do século XVII, a igreja de S. Vicente terá sofrido obras de remodelação / ampliação, metendo-se ao corpo da mesma o espaço ocupado por uma torre que foi demolida. Era, pois, um espaço de terra virgem, onde ninguém fora antes enterrado. E foi exactamente nesse espaço que a família do advogado mais distinto de Bragança, o dr. António Gabriel Pissarro comprou uma sepultura para enterrar o seu pai, Pedro Álvares Pissarro, cremos que falecido no ano de 1737.
Era então cura dessa igreja o padre Bento Rodrigues. E uma coisa que o intrigava era o facto de os cristãos-novos preferirem enterrar os seus mortos em S. Vicente, uma igreja de menos categoria e menos assistida, do ponto de vista religioso, e não nas igrejas de freguesia como eram as de S. João e Santa Maria. Além de que a sepultura ali custava 4 800 réis e nas igrejas de paróquia o preço era de 500 réis, quase 10 vezes mais!
Resolveu-se, pois, o padre Bento tirar a limpo essa história da terra virgem. Programou para isso acompanhar a abertura da cova para o Pedro Álvares que era tido como o “rabi” da sinagoga da cidade, o homem “que explicava a lei mosaica aos mais cristãos-novos” – no dizer de uma testemunha cristã-velha. André Borges foi quem tratou da compra e marcação do terreno, acompanhando o trabalho do coveiro que era um tal João Rodrigues Bugalho, cristão-novo também e muito amigo da família. E como a terra era dura e apareciam muitas pedras, o padre Bento mandou parar e que abrissem a cova noutro sítio. Argumentou o Borges que aquela era a vontade do defunto, que deixou em testamento a indicação do sítio onde o haviam de enterrar, que era o mesmo onde já fora enterrada a sua mulher.
Condescendeu o padre, mas com uma condição: assim sendo, haviam de aparecer ossos. Caso contrário, teriam de tapar aquela sepultura e abri-la em outro sítio da igreja.
Ficou o coveiro no trabalho e André Borges foi-se ao adro da igreja de S. João e ali andavam uns ossos pela terra, ao ar livre, sabe-se lá de quem seriam! E recolheu alguns e voltou a S. Vicente. Com água benta da pia, molhou-os e depois “os incodrigaram na terra” para dar o aspecto de que ali estiveram enterrados. Só que, entretanto, voltou a aparecer o padre Bento e, apanhando-os a fazer o trabalho, com os ossos a escorrer água… mandou-os tapar a cova e abrir outra, acaso ameaçando-os com a Inquisição.
Mas não desistiram e logo foram ter com o vigário geral, a autoridade de maior peso na terra, na esfera do eclesiástico, queixando-se que o cura de S. Vicente os não deixava cumprir a última vontade do defunto.
Despachou o vigário a seu favor a petição e, com o despacho na mão, voltaram eles ao seu trabalho. E foi a vez de o padre Bento ir ter com o seu superior e explicar-lhe a razão da sua atitude, que era a de impedir uma cerimónia judaica, que não era por respeito à vontade do defunto que abriam a cova naquele sítio, mas porque a lei de Moisés ordena que os defuntos devem ser enterrados em terra virgem.
Naturalmente que o vigário revogou o despacho anterior e ordenou que a sepultura de Pedro Álvares Pissarro fosse aberta em outra parte do templo.
Esta foi uma culpa que, anos depois, foi incluída no processo de António Gabriel Pissarro, pela acusação.
Outras histórias de enterramentos judaicos na igreja de S. Vicente poderíamos contar, justificando plenamente a sua inclusão na Rota dos Judeus pela cidade de Bragança.
Outro aspecto que, porventura, pode lançar outras luzes sobe a ligação deste templo à comuna marrana de Bragança é a história da Confraria de Santa Cruz que está por fazer. É que foi exactamente esta Confraria que financiou e dirigiu as obras de remodelação/ampliação da igreja e era nos seus cofres que entrava o dinheiro pago pelas sepulturas. Importaria ver quem eram os confrades e os mordomos que presidiam à sua direcção. Até que ponto seria uma Confraria de marranos, destinada exactamente a esconder cerimónias e ritos funerários marranos.
António Júlio Andrade
Maria Fernanda Guimarães

Nota do Editor:
Reedição dos posts publicados no blog :
http://marranosemtrasosmontes.blogspot.pt/


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