Quem disse que as folhas se soltam das árvores? Elas não se
soltam, desprendem-se dos ramos com a violência das coisas quando morrem, e ao
bater no chão o ruído que fazem é estridente. É atroz. Na sua travessia pelo ar
deserto do tempo em decomposição desintegram-se da vontade, fecham os olhos, e
perdem noção do rumo que lhes foi entregue pelo vento. Por vezes largam
partículas lacrimais, ínfimas partes químicas de um sentir imperceptível.
Batimento cardíaco em degradação. Involuntário fragmento do sopro que duraram.
E não é leve a sua matéria. Pouco aptos quando se trata de ver
por dentro, os nossos olhos não vêm a procelosa vertigem do seu corpo em
convulsão precipitando-se na floresta de lâminas que compõe a aerosfera que nos
respira, arrastando todos os pesos com que a existência se vai inviabilizando.
Zulmira sentiu-se folha em queda durante toda a sua vida.
No seu último Outono teve a oportunidade de aprender mais
sobre folhas secas e caídas. Não sobre os factos processuais por detrás do seu
destino outoniço, como a diminuição de produção de clorofila que altera as suas
tonalidades, ou a produção de ácido abscísico que acaba por provocar a
sua queda por via do enfraquecimento do pecíolo. Nada disso. Disso, Zulmira nada
sabia.
Mas aprendera sobre a sua textura. Sobre as suas formas e
sobre as suas deformações. Sobre as inúmeras combinações gráficas possíveis com
os seus veios desidratados. Para isso bastou aquele seu encanto pelas coisas
simples, o mesmo com que os seus pés amavam o toque nu do chão. E ver a sua
filha a preparar uma composição plástica exclusivamente à base de folhas.
Folhas secas, nuas e sós. Solidões sobrepostas sem cumplicidade. Mortes
irreversíveis a suplicarem um travo de atenção, um rasgo de vida sobre si.
Quando a filha terminou o seu quadro, Zulmira permaneceu uma hora a contemplar
aquela obra nascida de tantas mortes. Observou folha a folha, imaginou o
desenho da sua queda, mediu com o pensamento os seus perímetros e calculou as
suas idades. Depois levou o dedo indicador a uma delas e lavou a voz com um
suspiro. E ténue, ouviu-se dizer: esta
sou eu.
Virgínia do Carmo
Quando sai em livro?
ResponderEliminarA morte da Zulmira vai acontecendo devagar... mas talvez um dia o livro se complete.
EliminarObrigada!
Um abraço
Não tenho adjectivos que cheguem para qualificar este texto. Este e muitos outros da Virgínia. Maravilhas que nascem na sua mente ou deveria dizer no seu coração? e brotam das suas mãos.
ResponderEliminarObrigada por partilhá-las connosco.
Beijinho
Júlia
Aquele abraço, Júlia... ! Grata...
Eliminar