Gare de l'Est Paris |
Dia 2 de Agosto. Pelas 13 horas recomeça a viagem:
Hendaye – Paris – Heidelberg . Santo Deus, ainda falta uma tarde de calor
infernal e uma noite inteira de cansaço, de vários e variados modos de ressonar
e de diversos cheiros de suor, pois a água já faltara nas torneiras dos WC. Em
Hendaye todo o pessoal comprou dúzias de garrafas de água.
Abreviando: a meio da noite, ensonada, dei conta que
pessoas saiam e outras entravam. No exíguo espaço a que estava confinada,
tentei arranjar posição para continuar a dormir. Mas tive um pesadelo horrível:
uma pedra enorme havia-me caído sobre o peito e estava a sufocar. Consegui
acordar dando um safanão, o meu pai pergunta “o que foi? ” , “ Não consigo
respirar” , alguém acende a luz e vimos que o meu parceiro da frente tinha
posto um pé sobre o meu peito. O meu pai levantou-se furioso e foi tirar-lhe o
pezunho de cima de mim. Então não é que o fulano tinha o pé e a perna
engessados? Aquilo devia pesar uns cem quilos! Foi mesmo um senhor pesadelo!
Heidelberg |
Chegados à Gare de Austerlitz na manhã de dia 3, foi
uma corrida de táxi para a Gare de l’Est: o meu pai, eu, o rapaz alemão e um
emigrante nosso que trabalhava em Mannheim. Pelo meio dia estávamos em
Heidelberg. Era um Sábado. Fomos deixar as malas na casa da família alemã que
me estava destinada, e aproveitar para, finalmente, tomar banho. Portanto
Sábado e Domingo fomos turistas.
Segunda-feira, dia 5 de Agosto, fui à secretaria da
Universidade onde recebi o cheque da bolsa de estudos. Disse ao meu pai que já
estava tudo em ordem e eu ficaria bem e ele concordou que regressaria no
comboio da tarde. Mas tinha a dele fisgada.
Despedimo-nos depois do almoço e fui para a primeira
aula. Era de apresentação – éramos 22 estudantes na minha turma: 3 finlandeses
altos e loiros, 2 italianas morenas e muito barulhentas, um brasileiro, etc.
etc. – e à nossa frente o coordenador do curso, Professor Doktor Hans Vermeer.
Quando chegou ao meu nome, mirou-me bem e pareceu-me
que notei um leve sorriso irónico. No fim disse para todos: “Temos aqui uma
estudante portuguesa, Fräulein de
Barros” (fez uma pausa frisando bem o de
que corresponde em alemão a von e que nesse tempo, na
Alemanha, ainda tinha um estatuto,
apetecia-me dizer: um estatuto do caraças, pronto, está dito ), e
continuou “ a Fräulein de Barros,
cujo pai veio falar comigo para a recomendar. Portanto, temos, todos nós, de
tratar a Fräulein de Barros muito
bem”. Fim do discurso.Foi uma das maiores vergonhas da minha vida. Fiquei
encolhida, de cabeça baixa, quase em lágrimas. Queria era meter-me num buraco.
O Prof. saiu e todos os colegas vieram rodear-me, pôr o braço no meu ombro, oferecer-se
para me ajudar, para me acompanhar... Aí é que as lágrimas correram mesmo. A
vontade que eu tinha de gritar com o meu pai !
Um pai-corujo, vindo lá das Berças... Um pai moncorvense e ... está tudo dito.
O curso até correu bem. (Outra coisa não seria de
esperar, com tanta gente a proteger-me...). Durante anos, pelo Natal, o meu
pai-corujo enviou uma garrafa de vinho
do Porto ao Professor Doktor Hans Vermeer.
Leiria, 15.04.2013
Júlia Ribeiro
Um pai ha moda antiga. Podia ser este o titlo.
ResponderEliminarUm pesadelo de peso ... do CARAÇAS ! O pai não deu um murro no gajo?
ResponderEliminarO senhor Barros deve sentido,quando lhe tiraram a filha,o mesmo que os seus pacientes, quando lhe arrancava um dente.Um pai tutor não é um pai banana nem mãe galinha.Se fosse hoje o vinho, dito do Porto,era da quinta da Silveira, única quinta do concelho que engarrafa vinho fino.
ResponderEliminarDanke, Herr Barros
werças
Isso é que foi uma viagem cheia de peri peças.
ResponderEliminarEu tamem fiz muntas viagens do caraças até ao Luxemburgo onde trabalhei dos 18 aos 60, mas se eu conta-se ficava tudo sem graça nenhuma. Mas gostei de ler. Conte mais.
Manuel V.
Quem tem muito que contar é aquela menina de Foz Côa que apareceu no jornal O PÚBLICO.
ResponderEliminarQuem recolhe as histórias dos que as viveram e não sabem escrever?O senhor Manuel V viveu 42 anos lá fora.Onde vive?Quem fala com ele? Equipa deste blog, ao trabalho.
Obrigado minha senhora, pelos textos, a delicadeza e humor que os trata.Muito agradecido.
ResponderEliminarQue pena o folhetim ter acabado ...
ResponderEliminarAbraço de
Uma amiga
Armando Sena deixou um novo comentário na sua mensagem "VIAGENS III,por Júlia Ribeiro":
ResponderEliminarA Júlia é uma privilegiada. Para além de ter estudado num local admirável, teve um professor que tinha nome de pintor famoso. "A rapariga de brinco de pérola" é também de Vermeer.
Também a Alemanha da minha vida profissional passou por Mannheim, cidade pouco aprazível.
Um abraço.
Resposta ao Anónimo de dia 17, às 14 e 59 :
ResponderEliminarÉ preciso ter pontaria para acertar às 14 e 59 !
Não sabia que na Quinta da Silveira se engarrafa vinho fino. Mais uma coisa que aprendi.
Este nosso amigo Anónimo. pelos vistos, conheceu bem o meu pai.
E mais : sabe alemão. Bitte sehr, Herr Anonym.
Amigo Anónimo das 17 e 11:
ResponderEliminarAchei muita graça às "peri peças" . Assim vamos enriquecendo a língua.
Afinal este blogueiro não é anónimo: chama-se Manuel V.
ResponderEliminarEntão, Sr. Manuel, não nos quer contar as suas "peri peças"?
Em 42 anos no Luxemburgo, com milhentas viagens feitas, deve ter muitas estórias de toda uma vida de trabalho - e no duro, com certeza - para partilhar aqui connosco.
Um abraço.
Júlia Ribeiro
Para a Amiga que teve pena que o folhetim tivesse acabado, aqui fica um grande abraço.
ResponderEliminarJúlia Ribeiro
Viva, Armando Sena:
ResponderEliminarEntão também andou por terras do Neckar! E quem diz Neckar, acrescenta Rhein.
Tem razão, Heidelberg é linda a valer e Mannheim é uma cidade de indústria, fábricas, edifícios feiosos, mas onde há (havia) muito trabalho.
É verdade, o meu Professôrrr Doktôrrr Hans Vermeer tem o nome do pintor que fez o celebérrimo quadro da "Rapariga com brinco de pérola" .(Um amigo meu alemão pronunciava "pêrôla". "Tu és uma pêrôla" dizia ele quando queria atirar um piropo a uma portuguesa. E nós partíamo-nos a rir.).
Nenhum dos comentadores pegou no "von" e no "de". Mas era mesmo assim. Os alemães tinham aquela ideia do "von" totalmente entranhada no cérebro. Mesmo depois da guerra...
Um abraço
Júlia