Ora,
o meu pai foi levar-me a Heidelberg.
Mas
não imagine o leitor que me levou de carro ou que fomos de avião. Não me lembro
de o meu pai algum dia ter um carro novo. Eram sempre em 2ª ou 10ª mão e pé e
avariavam pelo caminho. De avião... santo Deus, nessa altura e para as gentes
de Moncorvo, andar de avião era não só uma coisa inédita, como envolvia algo de mágico. Os
raparigos da Corredoura, quando avistavam um avião lá no céu, vinham todos a
correr em algazarra para o Largo , de dedo espetado no ar “Olha o avião. Vai
além. Adeus, adeus”, e acenavam convencidos que os passageiros os viam e lhes
acenavam também.
O
amigo Xico Cabeças no final do dia 31 de Julho de 1957 levou-nos a Celorico da
Beira, para apanharmos o Sud Express.
Belo
nome para um comboio que começou por ser de luxo e, nas décadas de 50, 60 e 70
passou a ser o combóio dos emigrantes. Era suposto que o Sud andaria a 150
km/hora, mas nem daí a cem anos circularia com essa velocidade. Parava em todas
as estações, pois em todas entravam mais emigrantes. A máquina, que até há 2 ou
3 anos antes era a vapor, isso mesmo, trabalhava a carvão, era agora já de
tração a diesel. Um enorme progresso!! Porém, como havia só uma via férrea, os
outros combóios que circulavam nela, tinham de esperar pelo Sud nas estações e
só depois dele passar é que seguiam viagem. Diziam as tabelas horárias daquele
tempo que eram 45 horas de Lisboa a Paris. Só que, no mês de Agosto, em que
emigrantes regressavam a França e outros vinham matar saudades, o Sud Express
demorava dois longos dias e duas mais longas noites. Penosas noites, sentados –
os que ainda arranjaram lugar sentado- em bancos duríssimos, joelhos contra
joelhos, chega para lá o catrunho, cuidado que está aí o garrafão ... Doiam as
costas, doia o pescoço, doia tudo.
Eu
não sabia que havia no Sud serviço de “Wagon-lit” e, mesmo que o meu pai
soubesse, isso era um luxo inacessível. Iamos comer umas sandes manhosas à
carruagem-restaurante e beber água e já era algo de extraordinário. Verdade
seja dita, que os nossos companheiros emigrantes queriam que comêssemos do seu
farnel e o meu pai nem se fazia muito rogado: comia empada, pão com chouriço,
conversava... Eu só tinha era sede. Alguém disse que estavam 38 graus e que a
temperatura ia subir. Claro que não havia ar condicionado. Mas nem tudo era
mau: ainda havia quem tocasse realejo e quem cantasse...
Tínhamos
entrado em Celorico já passava das 10 horas da noite. Com as paragens todas,
era meia noite quando chegámos a Vilar Formoso. Guarda fronteiriça, passaportes
à mão e mais uma hora de paragem. Fuentes de Oñoro: a mesma coisa, só que com a
Guardia Civil e mais hora e meia perdida.
E
lá seguimos: iriamos ter uma noite inteira até Irun/Hendaye, a fronteira
pirenaica. O meu pai explicou-me que aí não demorávamos só por causa dos
passaportes; a paragem seria mais longa, por causa da diferença de bitolas: a
bitola ibérica era diferente da bitola europeia. Portanto que aproveitasse para
dormir essas horas até Hendaye.
Ao
meu lado direito estava um estudante alemão que vinha de Coimbra, onde passara
um semestre a estudar Português. Fomos conversando e a certa altura o sono atormentava-me,
mas o calor era de abafar e o ressonar de meu pai (ao meu ouvido esquerdo) e o
roncar de outros dois homens acordava o Sud inteiro. Era-me impossível dormir.
Já
exausta, disse para o moço alemão: “Queria tanto dormir, mas não consigo” .
Resposta
imediata do rapaz: “Não comigo?”.
O
espanto dele era genuino e eu fiquei sem fala. Depois ri a bom rir, quando
percebi que ele não conhecia o verbo “conseguir”. Aproveitei para lhe dar uma
breve lição de português.
Acordei
em Hendaye com a cabeça encostada ao braço do alemão e um torcicolo dos diabos.
(Continua)
Leiria,
2013-04-14
Júlia
Ribeiro
Eu tamben me lembro dessas viagens nos anos 70 .DOIS dias de comboio para chegar à França a dormir no coredor .Ainda bem que tudo mudou .
ResponderEliminarParabéns,JULIA! Maravilhosa descrição da Viagem de um Emigrante Transmontano.
ResponderEliminarParabéns, JULIA!
ResponderEliminarMaravilhosa descrição de uma viagem de Emigrante Transmontano.
A nossa língua é tramada .
ResponderEliminarManuela Miguel escreveu:Eu também fui emigrante até aos sete anos de idade, mas fui para Alemanha com 3 meses, era duro
ResponderEliminarGosto muito do que esta senhora escreve. So agora é que percebi que é já uma senhora de certa idade e que boa desposição tem e transmite a nos todos. Deus lhe consserve essa alegria. Nunca emigrei, mas os meus pais estiveram em França 19 anos e eu com 4 meses fiquei com a minha avo. Os meus irmãos nasceram lá e por lá ainda estão. O meu pai morreu lá nas obras. Tamem não foi facil. A minha mãe ainda vai às temporadas ver os netos franceses. Mas hoje as viagens são muito mais facis.
ResponderEliminarAlda de Jesus
Alem da viagem até Hendaia, ainda falta muito pra terminar, fartei-me de rir com a do -- queria dormir, mas não consigo-- -- Não comigo? .
ResponderEliminarConte mais. Fico a espera.
Um fan destes Farrapos
França,aldeia raiana no Parque Natural de Montesinho.Era para aqui que muitos passadores da região de Riba-Còa levavam os desgraçados que a salto sonhavam com uma vida melhor.Pronto,chegámos,vê,estás em França,dá cá o carcalhol,pira-te antes que chegue um gendarme.
ResponderEliminarMeu pai viveu 14 anos no Luxemburgo para educar os filhos,ter uma casa e sempre pão em cima da mesa.Maldita terra que expulsa os seus filhos e os poetas chamam reino maravilhoso.Inquisição e emigração destruíram ,mataram,espoliaram famílias inteiras.A mãe com os velhos e as filhas na aldeia, sem água luz e saneamento.Os filhos,alguns iam morrer a África,outros vieram marcados para toda a vida.
António S.
queria dormir, mas não consigo.
ResponderEliminarFaz lembrar aquela velha história que contavam em Coimbra:um casal ,sentado no velho café Montanha, tomando uma bica e ela, resolveu perguntar ao empregado se sabia que filme "passava" no Tivoli(ali ao lado,na baixa).Ele ,solicito,consultou o Diário de Coimbra e disse:Uma noite com Vossa Excelência. Uma noite contigo era o titulo do filme.
Cinéfilo
Consigo...Comigo,querida Julinha!
ResponderEliminarObrigada pelos momentos de boa disposiçâo que partilha connosco.
Beijinhos.
I.G.
Olá, Blogueiros e Comentadores:
ResponderEliminarHá por aqui quem tenha muito que contar. A Alda de Jesus, o António S. devem ter estórias que nunca mais acabam. Vamos lá, amigos, contem...
Ri-me muito com a estória do Cinéfilo. Está nuito bem caçada.
Para todos um abração.
Júlia Ribeiro
E para a minha amiga Ireninha (que tanto prazer me dá em aparecer por aqui ) claro que tenho de enviar um beijão.
ResponderEliminarJúlia