Apresentação integrada no programa
oficial do 25 de Abril
“O Manco – Entre Deus e o Diabo” de António Sá Gué
“Romance alegórico”
O certo e o errado são apenas modos diferentes de entender a
nossa relação com os outros, não a que temos com nós próprios.
JOSÉ SARAMAGO
António Sá Gué mostrou, desde há algum tempo, um timbre de
qualidade maior e exigência de escrita a que nos fomos desabituando, face à
proliferação de livros que se escrevem hoje em dia, seja quais forem os motivos
que os fazem emergir em catadupa e que se vendem e se leem e se esquecem.
Simplesmente passam.
Os livros de Gué permanecem! Pela intensidade de um léxico
rural de valor incalculável e que ficará em memória. Pela novidade estrutural
de um quase “Novo Romance” que se alia à poesia, como é o caso do que hoje,
aqui, ele nos apresenta.
Um “Romance alegórico” como o designa Ernesto Rodrigues que
habilmente soube ver na narrativa principal, o narrador que persegue o espaço
mais íntimo de Manuel António Morgado, um “romance fora do nosso tempo, a
requerer demorada exegese”, se nele soubermos também encontrar a dimensão
autobiográfica de quem diz e comenta por Manuel Morgado as angústias do ser,
uma vida talhada para o sofrimento e o infortúnio por destino que se agiganta
face à sua pequenez entre os seus e um mundo que lhe é hostil.
Urde-se, assim, a teia em torno da história de António
Manuel Morgado, ele e mais “seis irmãos de uma assentada”, pastor e camponês,
de Carviçais, num ano de geadas e ares quentes, entre Março e Novembro de 1881.
Apontado como incendiário por Maria das Dores, pela boca do
povo que se repete e pelas autoridades que o prendem “sem apelo nem agravo” ou
margem de luta alguma pela inocência que julga ser percebida, pois “Quem não
deve não teme”, como diria ao pai, quando este lhe apontou terras de Espanha. E
crente em si próprio, apresenta-se ao juiz de Paz Camisa, reiterando a sua
inocência, sem nunca mencionar que estivera a namorar às escondidas Alexandra,
a filha de Abel Ginja!
Preso pela Guarda Correcional, do iniciar dos montes, Manuel
Morgado passa pela cadeia de Relação do Porto e dessa para o degredo em África,
pois “ O retângulo genesíaco era demasiado pequeno para gente lusa tão ousada”.
E o homem que sonhava com os montes e a construção de um
moinho, o homem que sonhava pedir, no domingo seguinte ao incêndio do casebre
colmado, a mão de Alexandra e constituir família, assistiu à chegada da coluna
militar à sua cidade, já em África. E percebeu, Manuel Morgado que eles sentiam
o prazer de estarem vivos e de cumprirem a sua missão, sentiam que El-Rei
confiava neles, mas ele, Manuel Morgado, desconfiava da Pátria e da Natureza
humana; eles acreditavam em virtudes militares e ele não sabia o que era a
honra; eles acreditavam que tinham ganho, ele, Manuel Morgado, sabia que todos
tinham perdido, ele incluído.
Perdera Manuel a capacidade de acreditar e “ nunca mais
queria ver a alma dos outros como a vira. Antes ser cego”.
Na verdade, perdera mais do que isso. Perdera a perna e o
nome, a individualidade para ser alcunhado como O Manco! Num golpe de sorte,
vislumbra o regresso à terra Mátria, aos cardenhos do pai, mas, de novo, as
terras de Santa Maria o chamam e nelas amealha o bastante para um retorno
forçado pela doença da mãe.
Tempo de refazer sonhos. O Moinho. Sozinho. Queria que fosse
assim. Não tinha de dar a conhecer o seu engenho a ninguém. E superou-se na
arte de bem-fazer rodar as pedras do moinho que pela força das águas do ribeiro
se moveram e num êxtase sentiu-se Deus porque Deus estava dentro dele!
Mas Manuel Morgado, O Manco, não queria ser Santo, não
queria ser Deus nem o Diabo, queria antes “ser simplesmente humano, duro e
ternurento, triste e feliz, cáustico e compreensivo, silencioso e verborreico,
enfim, ele só queria confessar-se na nudez das palavras”.
Entre Deus e o Diabo, o Manco e o seu criador, na urdidura
textual de um romance que magistralmente aborda temas sensíveis em todos os
tempos e de modo universal, confrontam-nos com os atentados à dignidade, as
cicatrizes de uma amputação “familiar, social e pátria”, como assim se diz no
prefácio, aproximam-nos da morte, da angústia face ao desprezo a que tantas
vezes somos votados, à emergência de nos superarmos para que a existência e o
Ser façam sentido!
Sonho concretizado. O moinho é obra de Manuel Morgado, O
Manco, que se sente Deus, e da semelhança se redime, sossega o cansaço físico e
mental em posição vitruviana, deitado em posição horizontal no chão, de terra e
pedra, que o magoa, mas revitaliza, esperando, desse modo, o tempo que sobrava!
Narrativa que se entrelaça com poemas que antecedem
episódios, onde cabe o narrador que tece comentários e nos deixa antever a
revolta perante a injustiça; romance de 3.ªpessoa em comunhão e simbiose
perfeita, diria magistral, com a 1.ªpessoa que habita cada poema, cada grito,
cada lamento, a emoção, o sentimento e a alma desnudada de quem, do início até
ao final do romance, partilhou as cicatrizes da personagem principal, Manuel
Morgado, quase em perseguição da própria tessitura textual que faz da escrita
criação, obra de arte, documento de vida, testamento literário que António Sá
Gué teima em nos legar!
Teresa Leonardo Fernandes
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