Sinopse:
O Manco é uma figura que procura a sua unidade, enquanto
ser humano, entre a dura realidade em
que sobrevive e a busca de uma religiosidade que parece não lhe trazer
respostas. Uma figura que se busca entre o seu mundo interior e exterior.
O
Manco - Entre Deus e o Diabo é um grito em silêncio de uma revolta
contida.
Vai ser apresentado na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo, no 25 de Abril, pela dra. Teresa Leonardo Fernandes.
Um
romance alegórico
Este romance de António Sá
Gué conjuga várias linhas de força que o magnificam. Externamente, cada capítulo é precedido de um
poema, cuja função emotiva nos dá, em primeira pessoa, um sujeito depois
narrado na terceira. Conjunto de vinte e três peças, articula-se, aqui, uma
biografia psicológica. Esse direito à palavra ‒ qual didascália no teatro do
ser, não só definindo uma voz, mas orientando a leitura ‒ é um traço de
personagem tenaz procurando domar o seu destino. Rescende aos heróis antigos, e
não seria difícil encontrar concordâncias.
O ponto de partida e chegada
é o mesmo: a geografia moncorvense, a pouco e pouco, esclarecendo-se;
diferentes os pontos de uma existência, quando se é jovem ou já muito sofrido:
vimos dos cumes altivos de pegureiro às fundas gargantas de linfa onde se
percebe melhor o vivido.
Desde o início, pressente-se
uma indistinção, na silhueta de Manuel, ao longe, que o pai reconhece pela
«andadura». É um índice, ou indício, narrativo forte, também porque vai alterar
a regularidade das coisas. Numa diegese com poucos incidentes, e gloriosos
acidentes da natureza e linguagem transmontanas, inscreve-se vingança, e decide-se
futuro, entre Março e Novembro de 1881, quando, acusado de incendiário por Maria
das Dores, Manuel António Morgado, de 20 anos, pastor e camponês, declina identidade
em seu irónico apelido: embora inocente, perde-se no conceito do povo, de
iguais que o juram criminoso. É bem certo que Deus anda com o Diabo às costas,
reiterando «antigo ditado».
Essa perda do (bom) nome anuncia outras piores.
Afasta-se, assim, dos montes, trocados pela cadeia da Relação do Porto;
degredam-no da pátria para Ultramar então na moda, quando conferências
internacionais ‒ alude-se à de Berlim ‒ cobiçam as nossas possessões. Se a
Justiça lhe acrescenta uma naturalidade, Carviçais, já Manuel perdeu o pé da
própria realidade, e tão indiferente lhe e nos parece o silvo da locomotiva na
linha do Douro (cujos primeiros troços são de 1875, e, no dealbar de 80, chegam
à Régua e ao Pinhão) como a estada africana, onde se vê amputado de uma perna.
A figura dissolve-se em corrente de consciência, que o narrador persegue,
enquadra na atmosfera da época, deseja interpretar, num universo coetâneo
rasgado em cores impressionistas (quase logo, pontilistas) e tentames
simbolistas nas artes plásticas e na poesia. À luz destas homologias, é um
romance fora do nosso tempo, a requerer demorada exegese ‒ e mais se olhássemos
à teoria da vontade em Schopenahuaer, ao desvão do inconsciente freudiano…
Do terroso naturalista passa-se, entretanto, à ideia, a
uma conceptualização que, experimentado o Brasil ‒ outro destino nacional, onde
amealha dinheiro, mas retorna-viagem, quando a mãe adoece, que já não consegue
ver viva ‒, desemboca na concretização de um sonho, tanto mais difícil quanto
se quer empresa de indivíduo só, e deficiente, desafiador de homens e de Deus,
no esforço derradeiro de transportar as mós, qual anti-Sísifo.
O velho sonho de construir um moinho não visa, somente,
alimentar o corpo; busca ‒ talvez, o principal achado ‒ recriar a alegoria da
caverna platónica: «Foi além, entrou na caverna da sua existência, entrou no
mundo das sombras, no submundo da inconsciência humana. Esteve no mundo do
esquecimento.» É mais explícito noutra passagem: «Acordou agitado; sentia-se
distante de tudo, longe do mundo dos outros, que sempre o atormentou. A noite
não lhe trouxe a calma que procurava. Em boa verdade nada parecia dar-lhe satisfação
plena. Durante anos sonhou com o moinho, agora que moinho era uma realidade,
sentia-o como se tivesse encontrado o seu desterro, a caverna onde viveria
morrendo. Maldição dos insatisfeitos! Ternura dos incompreendidos! Madrugada
sem luz! Noite sem regresso!»
Que a satisfação, conquistado o objecto do desejo, vire
insatisfação, vai de si, nos heróis e semi-heróis. Estranho é que se transmude
em «desterro», como se o degredo africano fosse uma estação inevitável no
peregrinar da alma. Há uma condenação superior, já espelhada na sentença de
juiz terreno?
Seja como for, essa consciência é a verdadeira realidade, como se ameaçava desde a epígrafe. Negatividade,
no prefixo in- e na preposição sem, a par de outras fórmulas? Eterna
«dúvida inconsequente», que humedece o último poema? Ou puro desejo de, embora
sofridamente, objectivar-se, contra a «verdade» que só os outros dizem possuir?
O gesto vitruviano enfim revertido na horizontal (contra
a posição vertical) é um reforço dessa procurada harmonia ‒ reconhecidamente,
em falta ‒, que o Renascimento científica e esteticamente alicerçou; o
pensamento medieval, contudo, adaptou-o à cruz de Cristo, e, agora, humana (ou
bicho da terra), num sentido salvífico. Vislumbra-se esta convergência, no cair
do pano.
Eis como, de um andamento originariamente rural, localizável,
à vista da Serra do Reboredo, se passa à enxovia da dignidade, da amputação
familiar, social e pátria, até à morte dos seus e desprezo que lhe votam
semelhantes; como um discurso fortemente enraizado, com boa enxertia no léxico
regional, se atenua, para recrescer na frase autopsicográfica, em gradual
romance-ensaio de propósito alegórico, feição raríssima entre nós.
O incêndio é um incidente, seguido dos trâmites
judiciais, que também faltam à literatura nacional: são factos sociais,
análogos de sentido, motores narrativos; mais do que um contra todos, perdendo-se
quando mais se diz no nome e lugar de nascimento, é um herói psicológico em trânsito
de maioridade, até se afastar para fundas terras e magoar no chão «de onde lhe
vinha toda a vitalidade». Este inesperado elogio à vida é timbre dos melhores.
Ernesto
Rodrigues
Viva, Sá Gué:
ResponderEliminarAh, grande trabalhador! O 25 de Abril fica sempre mais rico com a obra que o Sá Gué produz.
Mil parabéns e muito êxito.
Espero ler "O Manco entre Deus e o Diabo" o mais brevemente possível.
Um grande abraço
Júlia