quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Manco - Entre Deus e o Diabo . Novo livro de António Sá Gué


Sinopse:

O Manco é uma figura que procura a sua unidade, enquanto ser humano, entre a dura realidade  em que sobrevive e a busca de uma religiosidade que parece não lhe trazer respostas. Uma figura que se busca entre o seu mundo interior e exterior.
O Manco - Entre Deus e o Diabo é um grito em silêncio de uma revolta contida.

Vai ser apresentado na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo, no 25 de Abril, pela dra. Teresa Leonardo Fernandes.


Um romance alegórico

Este romance de António Sá Gué conjuga várias linhas de força que o magnificam.  Externamente, cada capítulo é precedido de um poema, cuja função emotiva nos dá, em primeira pessoa, um sujeito depois narrado na terceira. Conjunto de vinte e três peças, articula-se, aqui, uma biografia psicológica. Esse direito à palavra ‒ qual didascália no teatro do ser, não só definindo uma voz, mas orientando a leitura ‒ é um traço de personagem tenaz procurando domar o seu destino. Rescende aos heróis antigos, e não seria difícil encontrar concordâncias.
O ponto de partida e chegada é o mesmo: a geografia moncorvense, a pouco e pouco, esclarecendo-se; diferentes os pontos de uma existência, quando se é jovem ou já muito sofrido: vimos dos cumes altivos de pegureiro às fundas gargantas de linfa onde se percebe melhor o vivido.
Desde o início, pressente-se uma indistinção, na silhueta de Manuel, ao longe, que o pai reconhece pela «andadura». É um índice, ou indício, narrativo forte, também porque vai alterar a regularidade das coisas. Numa diegese com poucos incidentes, e gloriosos acidentes da natureza e linguagem transmontanas, inscreve-se vingança, e decide-se futuro, entre Março e Novembro de 1881, quando, acusado de incendiário por Maria das Dores, Manuel António Morgado, de 20 anos, pastor e camponês, declina identidade em seu irónico apelido: embora inocente, perde-se no conceito do povo, de iguais que o juram criminoso. É bem certo que Deus anda com o Diabo às costas, reiterando «antigo ditado».
Essa perda do (bom) nome anuncia outras piores. Afasta-se, assim, dos montes, trocados pela cadeia da Relação do Porto; degredam-no da pátria para Ultramar então na moda, quando conferências internacionais ‒ alude-se à de Berlim ‒ cobiçam as nossas possessões. Se a Justiça lhe acrescenta uma naturalidade, Carviçais, já Manuel perdeu o pé da própria realidade, e tão indiferente lhe e nos parece o silvo da locomotiva na linha do Douro (cujos primeiros troços são de 1875, e, no dealbar de 80, chegam à Régua e ao Pinhão) como a estada africana, onde se vê amputado de uma perna. A figura dissolve-se em corrente de consciência, que o narrador persegue, enquadra na atmosfera da época, deseja interpretar, num universo coetâneo rasgado em cores impressionistas (quase logo, pontilistas) e tentames simbolistas nas artes plásticas e na poesia. À luz destas homologias, é um romance fora do nosso tempo, a requerer demorada exegese ‒ e mais se olhássemos à teoria da vontade em Schopenahuaer, ao desvão do inconsciente freudiano…  
Do terroso naturalista passa-se, entretanto, à ideia, a uma conceptualização que, experimentado o Brasil ‒ outro destino nacional, onde amealha dinheiro, mas retorna-viagem, quando a mãe adoece, que já não consegue ver viva ‒, desemboca na concretização de um sonho, tanto mais difícil quanto se quer empresa de indivíduo só, e deficiente, desafiador de homens e de Deus, no esforço derradeiro de transportar as mós, qual anti-Sísifo.
O velho sonho de construir um moinho não visa, somente, alimentar o corpo; busca ‒ talvez, o principal achado ‒ recriar a alegoria da caverna platónica: «Foi além, entrou na caverna da sua existência, entrou no mundo das sombras, no submundo da inconsciência humana. Esteve no mundo do esquecimento.» É mais explícito noutra passagem: «Acordou agitado; sentia-se distante de tudo, longe do mundo dos outros, que sempre o atormentou. A noite não lhe trouxe a calma que procurava. Em boa verdade nada parecia dar-lhe satisfação plena. Durante anos sonhou com o moinho, agora que moinho era uma realidade, sentia-o como se tivesse encontrado o seu desterro, a caverna onde viveria morrendo. Maldição dos insatisfeitos! Ternura dos incompreendidos! Madrugada sem luz! Noite sem regresso!»
Que a satisfação, conquistado o objecto do desejo, vire insatisfação, vai de si, nos heróis e semi-heróis. Estranho é que se transmude em «desterro», como se o degredo africano fosse uma estação inevitável no peregrinar da alma. Há uma condenação superior, já espelhada na sentença de juiz terreno?
Seja como for, essa consciência é a verdadeira realidade, como se ameaçava desde a epígrafe. Negatividade, no prefixo in- e na preposição sem, a par de outras fórmulas? Eterna «dúvida inconsequente», que humedece o último poema? Ou puro desejo de, embora sofridamente, objectivar-se, contra a «verdade» que só os outros dizem possuir?
O gesto vitruviano enfim revertido na horizontal (contra a posição vertical) é um reforço dessa procurada harmonia ‒ reconhecidamente, em falta ‒, que o Renascimento científica e esteticamente alicerçou; o pensamento medieval, contudo, adaptou-o à cruz de Cristo, e, agora, humana (ou bicho da terra), num sentido salvífico. Vislumbra-se esta convergência, no cair do pano.
Eis como, de um andamento originariamente rural, localizável, à vista da Serra do Reboredo, se passa à enxovia da dignidade, da amputação familiar, social e pátria, até à morte dos seus e desprezo que lhe votam semelhantes; como um discurso fortemente enraizado, com boa enxertia no léxico regional, se atenua, para recrescer na frase autopsicográfica, em gradual romance-ensaio de propósito alegórico, feição raríssima entre nós.
O incêndio é um incidente, seguido dos trâmites judiciais, que também faltam à literatura nacional: são factos sociais, análogos de sentido, motores narrativos; mais do que um contra todos, perdendo-se quando mais se diz no nome e lugar de nascimento, é um herói psicológico em trânsito de maioridade, até se afastar para fundas terras e magoar no chão «de onde lhe vinha toda a vitalidade». Este inesperado elogio à vida é timbre dos melhores.
Ernesto Rodrigues
                   

1 comentário:

  1. Viva, Sá Gué:

    Ah, grande trabalhador! O 25 de Abril fica sempre mais rico com a obra que o Sá Gué produz.
    Mil parabéns e muito êxito.
    Espero ler "O Manco entre Deus e o Diabo" o mais brevemente possível.

    Um grande abraço
    Júlia

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