Com um abraço da velha amiga Júlia Biló
Moncorvo -anos 20 |
Nós ainda não temos filhos, Luis. Claro que não. Mas eu quero ter filhos. Quero trazê-los às cavalitas e levá-los comigo para o campo. Qual campo, qual nada? Não hão-de ser escravos da terra como nós. Hão-de ter uma arte. Um ofício seguro. Quem sabe se não vão ser tão inteligentes que até hão-de estudar. É isso. É isso mesmo. Os nossos filhos hão-de ser alguém, Luís. E se não volto da guerra? E se te apanham como desertor e te matam? .
Eram ta~tos os ses. Tantas as dúvidas e as angústias. Os dias passaram sem nada terem decidido. E, em Janeiro, o Luís lá seguiu com mais alguns da sua idade. E a Laura ficou sozinha. Nem sequer engravidara. O inverno rigoroso como já não se via há muitos anos, foi-se arrastando na geada e na lama dura dos caminhos que o rancho de mulheres palmilhava para a apanha da azeitona. Havia outras como ela. E pior, ou melhor. A Luzia carregava um filho de mama atado com o xaile. Um filho que ainda não vira o pai. A todas unia a esperança. Pelo caminho juntavam-se as cinco ou seis sem darem por isso. Não falavam da guerra nem das escassas más notícias. Trincheiras, lama, frio, fome, piolhos e morte. Os lábios delas rezavam uma Avé-Maria. Primeiro em silêncio, depois em sussurro. Duas ou três começavam, as outras respondiam com a Santa-Maria. O rancho ia baixando a voz e calando risos e conversas. Juntava-se à oração das quase-viúvas-de-guerra. E iam fazendo o caminho e assim chegavam ao olival. A primeira a ter notícias, uns quatro meses depois do Luís partir, foi a Laura. Mas não foi o Luís a escrever a carta. Ele nem sabia escrever. Era uma carta de muito alto, de um comandante, com um grande palavreado de cumprimento do dever e amor à Pátria. Ainda a carta não ia a meio e já a Laura tinha entendido tudo. O Luís tinha morrido e ela estava viúva. Com dezanove anos. Nada lhe restava do Luís. Nem um filho. Era a Menina Graciete, a sua irmã, quem lhe lia a carta não era, Menina Judite? "Desaparecido em combate". Não pode ser. Há engano de certeza. Foi outro. É isso. É isso mesmo. Foi outro Luís. Que nome está na carta? Luis do Nascimento Silva, disse então a Menina Graciete Gregório. Estais a ver? O meu Luis é o Luis Malhógrão. Filha, minha filha, pára. Pára e pensa um bocadinho. Aquele era o nome dele. Malhógrão, era assim que a gente daqui lhe chamava. Mãe, cale-se. O meu Luís não morreu. Desapareceu. E que tem isso? Na guerra isso acontece, não é verdade? Mas há-de aparecer. O meu Luís vai voltar. Vai voltar para mim. O meu Luís está vivo. Laura, minha filha, tens de pôr luto. Vou buscar uma saia e uma blusa pretas. Laura, minha irmã, tens de pôr um lenço preto na cabeça. O lenço dou-to eu. Os sapatos pretos, servem os do teu casamento. Meu Deus, para que te casaste? Mais valia teres ficado solteira. Laura, minha amiga. Que agonia, pobrezinha. Mas olha que o tempo tudo apaga. Tem de ser, porque a vida continua com os vivos. Laura, tu estás viva. Vestiram-na de luto carregado. Toda de preto, da cabeça aos pés. A Laura deixou. E todas as madrugadas continuou a ir para o trabalho com as outras mulheres.
Veio a monda e ela mondou. Veio a ceifa e ela ceifou. Veio a vindima e ela vindimou. E continuou a trabalhar com as outras e como as outras à espera de notícias. E com as outras continuou a rezar e a esperar, a esperar e a rezar. E chegou Novembro e com ele as primeiras chuvas frias do inverno. Era dia de S. Martinho e o sol brilhou para o mundo e para as velhas ao soalheiro. Quem sabe se não era o último sol que elas apanhavam. E nesse dia ouviu-se dizer a guerra acabou. E a alma da Laura aqueceu também. Tirou o luto, vestiu o fatinho de ver a Deus e esperou o seu querido. Coitadinha da Laura. Enlouqueceu, está louca - diziam as amigas. Laura louca, diziam as velhas ao soalheiro.
Um dia, quando chegou do trabalho, a Laura viu o Luís. Viu-o nos seus olhos, risonho, à sua espera. Eu sabia que voltavas. Eu sabia. E foram beijos e abraços. E preparou a ceia para dois. Pôs a toalha branca na mesa e dois pratos, dois garfos e dois copos. Acendeu a candeia e conversou com o Luís. Conversou enquanto a ceia ia cozinhando. Depois serviu o Luís e serviu-se a si. E falava, falava. Havemos de ter um filho. Três ou quatro. São eles a nossa vida. E lavou a louça cantarolando. Andas com pouco apetite. Estás a comer quase nada. Olha que temos que criar os filhos que vierem. E parava à espera da resposta dele. E ria e passava-lhe a mão pelo cabelo. São horas de ir para a cama. Amanhã tenho de levantar cedo. Tu podes dormir mais um bocado. Precisas muito de descansar antes de começares a trabalhar. E quem escutasse ao postigo, ouviria os beijos dela, ouviria os seus suspiros sob as carícias do Luís, ouviria os gemidos de amor da Laura. E na manhã seguinte cantava, alegre como uma cotovia. Nos seus olhos ainda se derramava o prazer de uma noite de amor. E aprontava-se e lá seguia com as outras, que trabalhar era preciso. E ninguém se atrevia a olhá-la de frente e dizer-lhe cara a cara: o Luís morreu, estás a enganar-te a ti própria, ou ... ou então estás louca. Fazia-se um silêncio de morte quando ela dizia: o Luís está a comer pouco. Foi aquela guerra maldita que o marcou, que marcou toda a gente. Mas eu trato bem dele. Qualquer dia fica bom. Qualquer dia temos um filho. E continuava a falar, a rir e a fazer amor verdadeiro, sentido, com o seu fantasma. Até já me parece que estou grávida. E esticava o vestido sobre o ventre liso. Não acha, mãe? Os olhos da mãe, e das outras mães ficavam rasos de lágrimas e, com voz sumida, claro, filha, se calhar estás grávida. E a felicidade brilhava nos olhos da Laura. Para quê roubar-lha? E assim viveu mais vinte anos. Morreu a sorrir para o Luís que, docemente, lhe cerrou os olhos.
Júlia Ribeiro
In "Contos ao Luar de Agosto II"
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Que conto espantoso! Ainda estou arrepiada! Não sou capaz de dizer mais nada.
ResponderEliminarTeresa Graça Mendes
Brilhante, este texto! Lindo, muito lindo!Venham outros tantos, como este!Fiquei deliciada!
ResponderEliminarBeijinhos, Julinha
Tininha
Simplesmente lindo e comovente!
ResponderEliminarBeijinhos para a julinha e parabéns pelo seu talento.
Ireninha
Vilarandelo Umdiaumaimagem escreveu: "Fabuloso conto! Felicitações à autora."
ResponderEliminarObrigado Júlia
ResponderEliminarSó alguém com um coração enorme pode escrever assim...
É uma história bonita, que nos deve fazer pensar
Aníbal
Dra. Julia: é a mais linda história de amor que já li.
ResponderEliminarObrigado
Nuno Santos
Também eu estou com os olhos rasos de lágrimas.
ResponderEliminarNunca li nada que tanto me comovesse.
Um beijinho
Maria do Carmo
Julinha, já li o conto centos de vezes e sempre me parece que sou uma das mulheres que vai no rancho da azeitona. Eu até estou a ouvir a Laura e a responder-lhe e a rezar com ela e com as outras. Eu sou uma analfabeta, mas gosto do que é lindo. Este conto é uma maravilha.
ResponderEliminarBeijinhos
Maria Augusta
"Histórias de perto e de longe,histórias de ontem e de sempre,histórias maravilhosas,umas tristes,outras mais alegres,vividas ou envoltas em fantasia".São palavras da Autora,na nota introdutória aos seus "Contos ao Luar de Agosto I".Esta,triste,agora (re)lida,admiravelmente escrita,foi,creio,vivida,o que a torna ainda mais triste.Faço meus todos os justíssimos adjectivos usados nos comentários anteriores:espantoso,brilhante,lindo,comovente,fabuloso,bonito conto e,porque muito comovida,...também não consigo dizer mais nada.
ResponderEliminarUma moncorvense
Li o conto esta tarde, mas não tive tempo para deixar o meu comentário. Todos os adjectivos registados pelos comentadores já dizem muito, mas não tudo. O conto é um libelo contra a guerra, contra todas as guerras e um hino ao amor inteiro, mesmo para lá da morte. Os olhos da Laura louca "onde e derramava o prazer de uma noite de amor" quase me deixaram sufocado! O conto é também um hino à amizade e à solidariedade.Todo ele é poesia.
ResponderEliminarObrigado, Dra. Júlia, por estes momentoos de intenso prazer da leitura.
Onde posso comprar o livro?
José Carlos Andrade
Belíssimo! Fabuloso!
ResponderEliminarUm visitante que vai passar a ser fã.
A nossa Julinha é o orgulho da Querdoira.
ResponderEliminarMaria da Querdoira
Caríssimos Amigos , blogueiros, comentadores e comentadoras e demais visitantes:
ResponderEliminarObrigada pelas vossas palavras de apreço, tão amáveis, e que , embora inflacionadas, me deixam muito feliz. Palavras de amigas e amigos.
Abraços para todos e um abraço muito especial para o Aníbal que tem andado muito arredado.
Júlia
José Carlos Andrade: Não sei quem é, mas desafio-o a visitar Torre de Moncorvo e sentir o pensamento da Autora, visitar o cantinho da Corredoura onde cresceu e viveu, e assistir ao Enterro do Senhor na Quaresma.A foto é do Enterro do Senhor - vê-se à frente o Esquife com o Corpo de Cristo Morto acompanhado atrás pela Mãe. As duas Imagens pertencem à Igreja da Misericórdia, na Rua com o mesmo nome - não sabemos o ano da fotografia, mas era de certeza Quinta-Feira Santa.
ResponderEliminarE quando sair da Misericórdia visite o Museu de Fotografia.
Quanto ao Conto a sua profundidade é proporcional à elevação da Autora.
Tem que ler os outros e verá que para cá do Sabor há pessoas geniais.
F. Garcia
A loucura da guerra sempre criou condições para grandes estórias de amor, mas a loucura de amor manifestado pela Laura retrata a mais bela luocura que se pode ter, a loucura de amar, essa ilusão que faz viver e vibrar...
ResponderEliminarBela estória.
Manuel Sengo
Ainda voltei aqui para um agradecimento muito especial ao Fernando Garcia, o miúdo mais inteligente que conheci. Obrigada pelas tuas palavras quanto ao conto. Quanto à autora, querido Fernando, é a tua amizade a falar.
ResponderEliminarEste "miúdo" é, como já todos viram, o Dr. Fernando Garcia.
Um abraço muito grande
Júlia Ribeiro
Olá, Amigo Manuel Sengo:
ResponderEliminarGosto muito dos seus comentários. Acho que coloca sempre o dedo na questão.
Abraço
Júlia Ribeiro
A inteligência já foi !
ResponderEliminarAgora será mais experiência.
Qualquer dia lá terei uma visita do meu tio alemão, o tio Alzheimer; eu bem o escorraço ... mas eles agora metem o bedelho em tudo, até nas almas tementes a Deus.
Um grande abraço, que me faz rever os anos 60 e a Academia da Figueira
F. Garcia
Menina Júlia, estou a começar a conhecer a sua escrita, a sensibilidade e grande que e a sua formação e o seu coração..quem me dera te lá conhecido há 40 anos..! Mas, já que foi agora, vou usufruir o mais que eu puder..iate se a menina Júlia nao se cansar destas coisas dos " blogs".. E eu já agora sugiro a menina, e a outras pessoas com o coração grande e cheio de amor pela vida..que ouçam ou vejam o vídeo de José luis perales, nosso irmão espanhol com a canção " lhe lhamavam loca" e depois digam se nao há gente GRANDE ...
ResponderEliminarTenho que fazer um reparo à minha propria escrita.. Estava sem óculos e baralhei por ali umas letras..Ficou um bocado dislexico...desculpem..
ResponderEliminarLucília Rebouta escreveu: Linda história de amor e sofrimento e a guerra criou algumas e algumas loucas...de amor e sofrimento.
ResponderEliminarUma bela forma de contar um triste fado.
ResponderEliminarCorre-se as linhas, bebe-se as letras e, apesar de triste, tem-se pena de chegar ao fim.
E, fico na incerteza se é mais belo o conto se a forma de contar.
Pelo meio, vejo a Laura na demanda do seu ideal, aliás, como todos os transmontanos.
Os meus parabéns por este belo momento.
Armando Sena
Não tenho palavras. Já acima tudo ficou dito.
ResponderEliminarMuito obrigado. Estes são os nossos contos!!!
Urgel Fernando Barros Martins .....nascido mesmo no cantinho da corredoura.....Ola madrinha ....lindo como sempre,----beijinhos
ResponderEliminarUrgel Fernando Barros Martins.....nascido mesmo no cantinho da corredoura....Ola´madrinha....lindo como sempre,----beijinhos
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