A apresentação do livro ...e chegaram três Reis Magos em Agosto",de Júlia Guarda Ribeiro ,com ilustração de Guilherme Correia, teve lugar no auditório da Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo e ,além de Rogério Rodrigues , falou a professora Graça Abranches, filha do célebre advogado Abranches Ferrão, que foi o principal acusador no julgamento dos assassinos de Humberto Delgado, julgamento que demorou três anos.
O evento aconteceu em 14 de Janeiro, 15 e 30 h, sábado,2006
Os reis magos da liberdade
Rogério Rodrigues
Em escassas páginas, que se lêem em menos de um quarto de hora, Júlia Ribeiro retrata várias realidades, só possíveis de compreender desde contextualizadas.
Como estou a falar para adultos de um livro que poderia parecer, erradamente, escrito para crianças, netos ou netas, mereço alguma desculpa na rememoração histórica que poderei fazer sobre os acontecimentos e a realidade social e política da época.
O conto com ilustrações de fino traço, informa-nos sobre o nascimento da autora, em Agosto de1938, numa humilde casa de pedra, julgo que na Corredoura, com um burro na loja e a que faltam, para completar o presépio ( uma tardia invenção de Francisco de Assis) a ovelha e a vaquinha. Diga-se num aparte, que o nascimento de Cristo, marcado para 25 de Dezembro, tem pouco de festivo ou litúrgico, antes tem a ver, primeiro, com o solstício de Inverno; segundo, como culto de Mitra, um culto persa, espalhado pelas legiões romanas, também nascido naquele dia, em circunstâncias semelhantes, pois hoje é pacífico afirmar-se que não se conhece a data de nascimento de Cristo. Poderia perfeitamente ter nascido em Agosto.
Retomemos o fio à meada. O nascimento da autora do conto é um nascimento transgressor, tendo em conta os ditames conservadores e hipócritas da época.
Filha de mãe solteira significava rejeição social.Para cúmulo, nesse longo crepúsculo de Agosto., com a lua grávida iluminando vidas pobres, três guerrilheiros antifranquistas, esfomeados, barbudos e de boina suja apareceram na loja do burro, quais três reis magos da liberdade que traziam com eles, como dádivas, o ideal, o sofrimento e o sonho de uma pátria melhor e mais justa.
Beijaram o pezinho da recém-nascida, comeram uma sopa de unto e não conto mais sob pena de contar o conto todo, condenado pelos presentes como aquele jovem que pedia uma moeda à porta do cinema, sob a ameaça de que se não lha dessem contava o final da história e do filme.
Vou tentar, em palavras breves, explicar o calvário destes três reis magos, cujo futuro nos é desconhecido. Que um dia conseguiram chegar até Moncorvo.
Estamos a falar da chamada última guerra romântica do século XX, das mais sangrentas da história europeia, a guerra fratricida de Espanha, em que a teoria dualista do Bem e do Mal foi abolida, numa ressurreição da barbárie julgada impossível.
O êxodo dos derrotados pelas tropas implacáveis de Franco teve em Portugal uma barreira. Vivíamos então sob o fascismo salazarista, um aliado de Franco. E os republicanos espanhóis que aqui se refugiavam eram entregues pelas autoridades portuguesas ao regime de Franco. Eram presos e, não poucas vezes, fuzilados.(Continua nos comentários)
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ResponderEliminarO grande poeta espanhol Miguel Hernandez, companheiro de tertúlia em Madrid de Garcia Lorca e Rafael Alberti, fugiu para Alentejo. Apanhado, foi entregue a Franco. Condenado a prisão perpétua, acabou por morrer cedo, muito cedo, num cárcere franquista.
Nos arredores de Barrancos, junto ao castelo de Nudar, foi criado um campo de concentração para espanhóis que depois eram extraditados. A muitos, a população ofereceu abrigo e pão, numa solidariedade raiana que teve também grande expressão entre nós, transmontanos.
Sobre este assunto há relatos comoventes dos escritores Bento da Cruz (de Montalegre) e Viale Moutinho (de Figueira de Castelo Rodrigo) e a saga de uma família que tudo sacrificou e que tanto foi incomodada pela Pide, a família Mirandela a que esteve ligada uma filha de Moncorvo, Valentina Paiva, já falecida.
Há ainda hoje em Bragança filhas de refugiados republicanos espanhóis que foram adoptadas por famílias portuguesas.
O último guerrilheiro antifranquista detido em Portugal terá sido o lendário Cerreño, preso em Lisboa em 1949 e entregue às autoridades espanholas. O último dos últimos guerrilheiros antifranquistas acabará por ser abatido em 1965 pela Guarda Civil Espanhola.
Para melhor compreendermos o gesto da avó da Júlia Ribeiro, ao dar abrigo aos três guerrilheiros espanhóis, é necessário recordar alguns factos.
Só na seqüência da queda de Barcelona em 26 de Janeiro de 1939 ( seria interessante ler o livro Homenagem à Catalunha de George Orwel, o mesmo autor do 1984), mais de 500 mil espanhóis tomaram o caminho do exílio. Nesta leva iam mais de uma quarta parte dos catedráticos de Espanha, mais de 50 mil técnicos e operários especializados, inumeráveis intelectuais e artistas.
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ResponderEliminarRecebidos nos campos de concentração de Argèles-sur-Mer e de Sainta Cyprien, em França, sofreram as maiores humilhações – sem água, nem comida, foram abandonados ao trato arbitrário prepotente das tropas coloniais francesas, compostas por senegaleses e argelinos.
Se do lado português tínhamos Salazar, aliado devoto de Franco, do lado francês estava um ambíguo Daladier, presidente da República, que não queria estar a mal com Deus nem com o Diabo.
A assinatura do pacto germano-soviético em Agosto de 1939 veio agravar ainda mais a situação dos refugiados espanhóis considerados comunistas, uma espécie de Quinta Coluna.
Alguns dos refugiados, cerca de 15 por cento, preferiram regressar a Espanha a sofrer as humilhações dos campos de concentração franceses. Os outros dispersaram-se pela América Latina sobretudo México e Cuba) e União Soviética.
Mas muitos encontraram apenas a morte, provocada pela fome, frio e epidemias.
Vale aqui recordar a evacuação de Madrid, em que apenas as hostes anarquistas se ofereceram para resistir.
Outros, preferiram procurar refúgio em Alicante, onde lhes fora prometido uma frota para embarcar rumo ao norte de África. Cercados pelas tropas italianas,aliadas de Franco, foram presos e, em muitos casos, fuzilados. Perante o desespero geral, houve mesmo a necessidade de pedir às pessoas, numa crueldade de vencedor, que não se suicidassem, a bem da saúde pública.
Um correspondente inglês A. V.Philips fala em 100 mil execuções em Madrid entre Março de 1939 e o mesmo mês de 40.
À margem destes trágicos números, lembremos que o avô do actual primeiro-ministro espanhol, Zapatero, foi fuzilado pelas tropas franquistas.
O conde de Ciano, genro de Mussolini e seu importante colaborador, fala de 200 a 250 execuções diárias somente em Madrid, 150 em Barcelona, 80 em Sevilha.
Os números oficiais do Ministério da Justiça espanhol falam de 192.684 pessoas executadas ou vencidas pela fome e pelo frio, entre o mês de Abril de 39 e 30 de Junho de 44.
É também importante lembrar que quando vergonhosamente a França caiu em três dias ao avanço do exército nazi, e De Gaulle lança o apelo da resistência, os refugiados espanhóis, apesar de muitas humilhações, estão nas primeiras linhas dos heróicos maquisards.
Nesta guerrilha está um português que morreu o ano passado à beira de fazer 106 anos, o professor Emídio Guerreiro, e que foi colega de curso, em Matemáticas, no Porto, do dr. Ramiro Salgado.
Com o nome de guerra de capitão Hélio conquistou a cidade de Montbaun.
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ResponderEliminarO gesto da avó de Júlia Ribeiro é não só um gesto de hospitalidade, mas também de resistência.
Se este admirável conto me levou a memória até às margens sangrentas do heroísmo espanhol., remete-me também para a realidade portuguesa da época salazarista.
Perdoem-me se a conversa já vai longa, mas não resisto a recordar um almoço que tive com Palma Inácio e Pereira Marques, hoje, o primeiro, doente, num lar; o segundo, professor na Universidade Nova de Lisboa.
Dirigentes da Luar foram presos em Moncorvo em Agosto de 68. Palma Inácio tinha vindo a comprar comida para levar a companheiros que estavam escondidos em matas de Mogadouro.
Por razões, azares ou casualidades que seria agora longo explicar, há cenas de tiros e fogem. Sem conhecerem a zona, são facilmente apanhados. São dados como criminosos comuns. Mas Palma Inácio diz a uma mulher da aldeia: “Nós não somos criminosos. Lutamos contra Salazar.”
A mulher olha-o e, mais tarde, tenta dar-lhe um pedaço de pão.
Na esquadra de Moncorvo, onde são esbofeteados por alguns gnr’s, junta-se a populaça ignara. Exige um linchamento. Entre os agitadores estavam alguns que hoje, infelizmente, se dizem homens de esquerda. Moral da história: nunca devemos confundir o perdão com o esquecimento.
Muito haveria mais a dizer sobre gerações que sofreram clandestinidades e exílios, em nome de um ideal, que passaram fome, a ponto de serem apanhados a roubar fruta, na época em que vigorava o racionamento, como Soeiro Pereira Gomes, autor dos Esteiros e Engrenagem, entre outros, livros que devem existir nesta biblioteca.
Soeiro Pereira Gomes que chegou a ser professor na Escola Agrícola de Coimbra, cuja biblioteca ostenta o seu nome, acabaria por morrer, ainda jovem e tuberculoso, em 1949, sem enterro digno porque, sendo clandestino , não tinha identidade. Apenas ideal.
Desculpem-me, mas não lhes revelo o fim do conto. Quero dizer-vos que, infelizmente, há muito tempo que não vou ao cinema. Estejam descansados. Não vos vou pedir nenhuma moeda. Mas não resisto: o conto tem um final feliz.
Rogério Rodrigues.
Este texto ajuda a "ver" a foto do carro de bois.O contrário ,também.
ResponderEliminarRelido o livrinho,lido o texto da sua apresentação,confirmada a certeza da existência de pessoas generosas e altruístas.Pessoa admirável a avó da autora,não menos admirável o gesto final do pai.Mas,como sugere o apresentador(também admirável o que escreve e como escreve),o melhor é mesmo ler este conto exemplar.
ResponderEliminarUma moncorvense
Que lindo texto escreveu o Dr.Rogério. Aprendo sempre muitas coisas com os textos que ele escreve.
ResponderEliminarAgora tenho de arranjar o livro da Dra. Júlia. Até estou augada para o ler.
Maria Augusta
Também eu aprendo coisas quando venho ver os blogues da nossa terra. Por estas bandas há sempre coisas que eu não sabia . Principalmente o que se aprende com o Rogério com o Nelson e com o A. J. Andrade. E depois também há coisas interssantes das nossas escritoras e as vezes bem divertidas como aquelas cenas do teatro. Já para nem falar das fotos que muitas delas são um espanto e enchem o olho.
ResponderEliminarObrigado a todos.
João da Torre
É lindíssimo este conto da Júlia Ribeiro, como outros seus desta colecção ou conjunto: "Duas rosas vermelhas que nunca cheguei a receber" e "Primeira Comunhão".
ResponderEliminarDe facto, "... e chegaram três Reis Magos em Agosto" é uma história surpreendente e riquíssima. Numa leitura de 'menos de um quarto de hora', somos levados, com excelência, pela autora para uma época que está ainda na memória de muita gente e em que a vida nos dois países ibéricos era bem diferente da dos dias de hoje. Convulsões várias, a nível de afectos, relações familiares e sociais, política e história, aliadas à simbologia natalícia conferem a esta história verdadeira, carregada de valores humanos, uma doçura e uma ternura especiais, que encantam...
Pegando ainda nas últimas palavras de Rogério Rodrigues (cuja análise e explicações muito contribuem para uma compreensão mais alargada do enredo deste livro e para tudo o que ele nos pode remeter), também já não vou ao cinema há bastante tempo, com muita pena minha, mas estou já a ver este conto no grande ecrã, com mais um final feliz... Fica o repto à maravilhosa escritora e aos seus grandes amigos e profissionais de experiência e mérito, o jornalista Rogério Rodrigues e o realizador Leonel Brito.
'Contchi'
Conceição Ferreira
Muito obrigada ao Rogério por este texto fabuloso e que muito esclareceu os leitores sobre esta estorinha de vida, muito obrigada à Contchi pelas impressões que aqui deixou registadas e muito obrigada a todos os Blogueiros e Amigos que por aqui passam.
ResponderEliminarE, last but not least, muito obrigada ao patrão do barco, o amigo Lelo.
Abraços
Júlia
O conto da Júlia é belíssimo, e recomenda-se, vivamente, a quem ainda não o leu.
ResponderEliminarO texto do Rogério, esse, além de ser um convite à leitura da narrativa da autora, vale por si, tem força autónoma...com a qualidade e erudições a que já nos vai habituou.
Amigo José Albergaria:
ResponderEliminarVisito o seu Blog frequentemente. Com muito gosto e proveito.
Aqui lhe deixo um grande abraço.
Olá, Amigos Blogueiros:
Vou estar ausente por uma semana.
Abraços para todos
Júlia