Texto de apresentação
do Livro de António Monteiro Cardoso, Boas
Fadas que te Fadem, em Lisboa, por Rogério Rodrigues
Uma declaração de interesses: Muito deste texto que vou ler,
deve-se, na parte histórica, ao valioso contributo do meu amigo Nélson que,
dois dias antes do falecimento de Monteiro Cardoso, ainda falou com ele.
Mas quem é o Nélson Rebanda? Com origens em Mazouco por
parte do pai e de Vilarinho dos Galegos (aldeia fustigada pela Inquisição) por
parte da mãe, ainda enquanto jovem estudante de História descobriu o cavalo de
Mazouco.
Já arqueólogo, sozinho, obstinado e com uma grande dose de
sacrifício, profissional e pessoal, descobriu e inventariou as gravuras do Côa.
Depois, vieram os ungidos e emplumados por resplandecentes currículos académicos
e às vezes profissionais, quais aves de rapina, transformaram as gravuras no
seu feudo, com o Nelson silenciado e injustiçado. Reponha-se a verdade e
faça-se-lhe a justiça.
Regressemos a António Monteiro Cardoso. Nos anos 80 o nosso
autor investigava, na área da sua especialidade (o século XIX) o liberalismo no
nordeste transmontano. Aterrou em Moncorvo e teve a sorte em encontrar um aluno
de História que o levou ao arquivo municipal que ele próprio, Nelson, tinha
acabado de organizar, em trabalho gracioso como, abusivamente, é seu hábito.
E aí começou uma admiração entre o arqueólogo e o autor que
hoje celebramos, cuja exemplar da primeira edição de Boas Fadas que te fadem,
de 1995, n mão do Nélson, está profusamente anotado.
Hoje, Nelson Rebanda que, em correspondência com o prof.
Vítor Serrão lhe sugeriu a leitura do livro de Monteiro Cardoso, é um
investigador do ferro e da arte sacra, director do museu de Ferro de Torre de
Moncorvo e com trabalhos publicados, inéditos muitos, sobre, entre outras, a
igrejas de Foz Côa, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta e Miranda do
Douro.
O seu a seu dono que a gratidão nunca é má conselheira,
ainda que nos tempos que correm seja pouco frequentada.
Posto isto, debrucemo-nos, numa leitura ligeira (que eu não
sou historiador, apenas um jornalista reformado de uma profissão que,
praticamente já não existe) sobre o romance cuja génese poderemos situar num
extenso artigo de Monteiro Cardoso sobre o Oratório de S. Filipe de Néri em
Trás-os-Montes: A Congregação de Nossa Senhora do Vilar em Freixo de Espada à
Cinta, publicado na Brigantia em 1989.
Em síntese, a Congregação do Oratório foi criada em 1565 em
Roma por S. Filipe de Néri, destinada à educação cristã da juventude e a obras
de caridade.
Foi fundada em Lisboa pelo padre Bartolomeu de Quental, em
1659, de quem descende um vulto enorme e santo da nossa literatura, o filósofo
e poeta Antero de Quental
A primeira sede dos oratorianos (deixem-me usar uma
expressão laica) situava-se bem perto de onde nos encontramos (a Livraria
Férin), ou seja, nos armazéns do Chiado.
Os Oratorianos gozaram da protecção de D. Pedro II e
competiram com os jesuítas na educação. Pelos oratorianos passou como aluno
Alexandre Herculano e foram seus membros, entre outros nomes insignes para a
época, o padre Manuel Bernardes e Luís António Verney.
Os oratorianos chegaram a Freixo em 10 de Setembro de 1673,
sendo seu mestre o padre Silva A primeira ideia de instalação terá sido na N.
Srª dos Montes Ermos.
O artigo de Monteiro Cardoso baseia-se, em parte, numa série
de documentos que consultou n Torre do Tombo sobre o convento de Freixo.
Surge como figura fundamental o padre António Geraldes que
escreveu memórias sobre o convento e a vila. A vila que se ia despovoando fruto
das guerras peninsulares e da perseguição aos judeus, os obreiros e
proprietários dos teares da seda, a ponto de ser pedido que, para o
repovoamento da vila, se transformasse de novo num couto dos homiziados.
Não será de todo abusivo opinar que o narrador de Boas Fadas
que te Fadem seja este padre Geraldes, natural de Ligares, um dos grandes
oradores do seu tempo, capaz de pôr os fieis a chorar com a veemência dos seus
sermões.
Sabe-se que esteve no convento de Freixo.
Algumas notícias sobre este orador sacro do século XVIII,
aparecem na tese do prof. Eugénio dos Santos, “O Oratório no Norte de
Portugal”.
São três as personagens principais do romance, aureoladas
por destinos trágicos: o noviço Francisco, a hebreia Helena e o médico
Bartolomeu Álvares. Todos de Freixo, os seus caminhos vão-se encontrar pela
última vez em Salamanca.
Depois há personagens marcantes porque a sua presença, seja
benéfica, seja maléfica, são os alicerces em que o autor constrói a sua
narrativa: o padre-mestre, o abade de Ranhados, o estanqueiro Luís Almeida e
Bento Espinosa.
Como geografia, a trama desenvolve-se em três lugares:
Freixo de Espada à Cinta, Salamanca e Amesterdão.
Freixo a aparece como uma terra farta em trigo, figos,
olivais e amendoais. Monteiro Cardoso fala já nas amendoeiras em flor. É
notório o seu amor à terra ele que, na sua genética, terá sangue de
cristão-novo (Monteiro e Cardoso são apelidos de cristãos-novos).
Em Salamanca, a Universidade era frequentada pelos jovens
raianos. O médico Bartolomeu aqui se licenciou em Medicina, numa Salamanca em
que português era sinónimo de judeu.
Boas Fadas que te Fadem e Tempo de Fogo de Amadeu Ferreira
são os dois romances fundamentais para a compreensão do papel da Inquisição no
Nordeste transmontano. Ambos assentam numa aturada pesquisa de processos da
Inquisição na Torre do Tombo. Ambos os autores, nascidos em 1950, com um mês e
meio de diferença, já falecidos, eram licenciados em Direito, sendo Amadeu
Ferreira vice-presidente da CMVM e paladino do mirandês como língua oficial.
Não sei se alguma vez se conheceram, mas se se encontrassem tenho a certeza que
se tornariam grandes amigos.
A linguagem de Monteiro Cardoso é clássica, tem o rigor de
um historiador que utiliza a ficção como roupagem para o corpo histórico.
Francisco é um enjeitado que o padre-mestre recolhe. Não
sabe quem é, nem donde veio, abandonado pela mãe, ainda muita criança, e criado
numa família de Ligares
Recebido pelo padre-mestre Manuel Guerra (como sabem, Guerra
é um nome comum em Freixo), entra no convento como noviço
Os oratorianos, diga-se, não eram frades mas sim padres
seculares.
Um dia o noviço conta ao seu padre – mestre que teve um
sonho em que uma voz feminina lhe sussurrava: Boas Fadas que te fadem.
Atormentado, o padre-mestre ordena-lhe que nunca mais pronuncie esta frase,
“pois estaria perdido se o fizesse”.
Boas Fadas que te Fadem é para os judeus o que para os
cristãos seja Que Deus te ajude, Vai com Deus.
Muitas vezes os oratorianos foram testemunhas abonatórias
dos judeus.
A chegada de um familiar do Santo Ofício, o abade de
Ranhados, vem perturbar a pacatez do convento e mesmo da vila, com a
perseguição ao médico Bartolomeu, muito conceituado entre os cristãos-velhos. O
médico, acusado de judaísmo, foge para Salamanca, atravessando o Douto numa das
três barcas então existentes, com o Abade e os seus lacaios em perseguição.
Freixo despovoa-se. Monteiro Cardoso, em prosa seca, retrata os estropiados da
guerra, os pedintes, as crianças abandonadas. E os judeus fogem e Freixo vai
precisar de mais gente
Numa das suas idas à vila a comprar tabaco e paramentos para
o convento, Francisco encontra Helena Nogueira, cristã-nova, tecedeira de seda,
de sangue hebreu, cuja beleza o perturba.
Este encontro pode funcionar como a antecâmara da tragédia.
Tudo corre bem no convento, que vai acumulando relíquias
sobre relíquias ossadas de um santo que espalhados por tantos países e
conventos mis necessitariam de um exército. Sobre o culto das relíquias, as
mais preciosas seriam as do Santo Lenho, não a camisa de noite de Madalena do
Raposão da Relíquia de Eça de Queirós, o medievalista holandês Huizinga tem
notabilíssimas descrições.
O penedo Durão e a Calçada de Alpajares são, no fabulário
popular, pousio de animais mitológicos, de serpentes vorazes.
O padre-mestre morre e as últimas palavras que dissera a
Francisco: Raba Raba, parecendo incompreensíveis, são o nome de uma poderosa
família de judeus de Bragança que poderiam saber do paradeiro dos pais de
Francisco, apontando como possível a cidade de Bordéus.
Francisco acaba por matar com uma pedra (mão certeira de
quem tinha sido pastor) o Abade inquisidor.
Com a ajuda do estanqueiro Luís Almeida, ele e Helena fogem
para Salamanca. Repousam em Vitigudino ainda hoje povoação frequentada pelos
freixenistas.
Luís Almeida conta, durante a viagem, a história da sua
vida, defendendo o conde-duque de Olivares como o protector dos judeus
portugueses em Madrid. Na capital espanhola está instalado o pintor Diego
Velasquez Rodrigues da Silva, cujo pai era do Porto.
Em Salamanca são abrigados pelo médico que fugira de Freixo
e que regressara a Espanha depois de uma vida aventurosa em Amesterdão de cuja
sinagoga fora expulso por ter sangue de cristão velho enquanto em Portugal e
Espanha era perseguido por ter sangue de cristão-novo.
Teve também contacto muito próximo com o filósofo e polidor
de vidro, Bento Espinosa, filho de judeus portugueses que, antes de morrer, lhe
ofereceu o Tractatus Theologico-Politicus e três lentes.
Pela voz do médico Bartolomeu que se transforma no mestre de
Francisco, vamos seguindo o percurso dos judeus portugueses em Amesterdão.
Uriel de Costa, é sujeito ao herem, imposto pelo rabi. Herem é uma excomunhão,
ficando os judeus proibidos de fala, ler sequer obras do excomungado. Uriel da
Costa retrata-se, sofre todas as humilhações, mas não aguenta mais, nem
consegue abdicar das suas dúvidas. E suicida-se.
Em 1666, o misterioso número da besta do Apocalipse, surge
um tal Sabbatai Zevi, declarando-se como Messias. Preso pelos turcos prefere
converter-se ao islão do que ser morto. Os seus discípulos embarcam com o sonho
de tornar Palestina a sua Nação. São capturados pelos marroquinos e vendidos
como escravos.
Todo o conhecimento acumulado pelo médico, também ele vítima
do fundamentalismo judaico, leva-o a concluir, e esta a grande mensagem do
romance, que, e passo a citar”Não nasci para assim acreditar, antes para
descrer e duvidar, que esta é a minha desventura”. Ou seguindo o pensamento de
Espinoa: ”Deus e a natureza são como uma e a mesma coisa constituindo a única
substância”.
Francisco e Helena e o médico Bartolomeu Álvares são presos
pela Inquisição. O médico fica em Salamanca para ser levado para Valladolid e
os dois jovens seguem para as masmorras de Coimbra.
Ainda em Salamanca, já no cárcere, diz Francisco para o
médico “Eis-nos chegados ao reino de Klippot”. Na Kabbalah surgem duas forças
antagónicas: tikkim, centelhas dispersas da divindade; klippot, as forças do
mal.
Em Coimbra, perante o inquisidor Pais do Amaral, Francisco
nega culpas de judaísmo, mas manifesta dúvidas sobre a existência de Deus. E
morre no cárcere.
Helena confessa, abjura e sai em liberdade.
Vai já longa e aborrecida a apresentação de um livro que se
lê de um fôlego, tal o ritmo narrativo. Li pela primeira vez o livro em 1995,
reli-o agora (duas leituras tal a intensidade narrativa e o acumular de
erudição). Falei no livro ao editor Baptista Lopes e aqui o temos.
Já muito doente, alguns dias antes de ser internado, fomos
almoçar a um restaurante de Campo de Ourique onde bebemos vinho branco não da
excelência do de Freixo, seja o Maritávora, seja o Montes Ermos ou Castelares.
Tínhamos encontro marcado em Freixo. Não foi possível. Que
Boas Fadas te tenham em descanso, António Monteiro Cardoso.
Rogério Rodrigues, natural de Torre de Moncorvo, foi
jornalista fundador do Público, subdiretor do jornal A Capital, e Membro da Direção da Academia de Letras de
Trás-os-Montes.
Foi-me completamente ir a Freixo no passado domingo. Por isso quero agradecer a ocasião que aqui se me proporciona para ler este belo texto de apresentação do romance de Monteiro Cardoso que li com todo o interesse quando comecei a dar os primeiros passos no estudos dos judeus em Trás-os-Montes. Aliás, já antes da publicação do livro tive o prazer de lidar e partilhar eventos culturais com o amigo Monteiro Cardoso, nomeadamente do congresso dos 550 anos da fundação da diocese de Miranda e nas primeiras jornadas culturais de Balsamão. J. Andrade
ResponderEliminar