Intervenção da Drª
Ana Gomes na homenagem e apresentação do Livro de António Monteiro Cardoso,
Boas Fadas que te Fadem, em Lisboa.
"Agradeço ao editor das edições "Âncora",
António Baptista Lopes, por este relançamento do livro "Boas Fadas que te
Fadem", que nos deixou o António Monteiro Cardoso - o Toné, para mim será
sempre o Toné. E ele, que desapareceu do nosso convívio faz hoje precisamente
um mês, queria tanto este relançamento de um livro que escreveu na base de
velhos documentos que descobriu no Convento de São Filipe Nery, em
Freixo-de-Espada-à-Cinta.
É muito mais que um romance histórico sobre a nossa
História, a da "Santa Inquisição" e das suas demoníacas intolerância
e perseguições: é voto que nos deixa um Homem que estudou e usou a História e
as histórias de cada um para aprender, para tirar lições e para ensinar a tirar
lições do que a Humanidade tem de empolgante e de vil, de progressista e de
assustador, do que o Ser Humano tem de potencial e de mesquinhez.
O António formou-se em Direito e doutorou-se em História
porque o que realmente lhe interessava era perceber o ser humano em sociedade e
tudo o que ele nela podia engendrar, de bom e de mau. Uma das últimas conversas
que, por acaso, ouvi o Toné manter com os nossos netos, Frederico e Mariana, já
a falar muito baixinho e com dificuldade, foi justamente sobre a importância de
distinguirem entre o Bem e o Mal, de como meninos e depois, já crescidos,
procurarem sempre estar do lado do Bem e combaterem o Mal.
Essa, no fundo, foi a sua regra de vida - a regra que lhe
incutiram Pais, família e as origens transmontanas, judias, de cristão-novo, em
Freixo-de-Espada-à-Cinta - terra onde nasceu, que sempre adorou, que claramente
também o moldou e onde repousa agora. E também os amigos, que foi escolhendo e
distinguindo com o seu convívio. No fundo, foi a regra que apreendeu e aplicou
nas diversas comunidades a que pertenceu, em que sempre se integrou sem perder
individualidade, originalidade, discernimento e capacidade de crítica e de
auto-crítica.
O António podia ser um intelectual de saber enciclopédico e
cérebro acutilante, de curiosidade irreprimível e incrível capacidade estruturante
do que apreendia, do que escrevia ou do que explicava. Mas não se distanciava
nunca das pessoas, da sociedade em que vivia e com quem comunicava sempre, na
linguagem mais adequada para realmente "estar em comunhão". Incluindo
quando praguejava - e como ele, por vezes, praguejava e precisava de praguejar!
Não era um intelectual diletante, nem um historiador
encafuado - adorava bibliotecas e livrarias, passava horas na Torre do Tombo,
mas não era um rato-de biblioteca. Nem jurista mercenário - dinheiro e bens
materiais nunca lhe interessaram: era frugal, bastava-lhe o conforto mínimo. Em
contrapartida, as pessoas contavam para ele, cada pessoa à sua volta e todas no
seu conjunto, tanto afectiva como intelectualmente, como actores e fazedores de
histórias, da História. Interessou-lhe o Direito e sobretudo interessava-lhe a
História, porque lhe interessava a vida da comunidade, da sociedade, do País,
do mundo, da Humanidade.
Porque era de esquerda, pensava à esquerda, sentiu sempre à
esquerda - os outros, homens e mulheres, contavam. Interessavam-lhe as causas
que faziam mover a Humanidade e que explicavam o País que somos e porque somos
como somos. Não era de saber apenas livresco: ele entregava-se a causas, dava
couro e cabelo, sacrificava o que fosse preciso, sacrificava-se.
Quando o conheci arriscava tudo, a própria liberdade, a
própria vida! Estávamos no final de 1972, nos anos duros do estertor da
ditadura. Éramos estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa, eu no primeiro
ano, ele no quarto, ambos inconformados com a mordaça do regime
colonial-fascista, ambos desejosos de o contestar por todos os meios, sem medir
consequências. O António particularmente ferido, enraivecido, pelo assassinato
pela PIDE de José António Ribeiro Santos, um dos seus mais chegados amigos e
colegas de Faculdade, membro como ele da Direcção da Associação de Estudantes,
que a ditadura fechara. Ele estava lá, naquele anfiteatro de Economia, no
Quelhas, quando o PIDE disparou. Ele esteve lá no Largo de Santos, um dos que
pegou no caixão e pôs a multidão a urrar contra o regime. Ele nunca mais parou
de conspirar, escrever panfletos e organizar acções, legais e clandestinas,
contra o regime, incluindo pinturas murais contra a guerra colonial e as manifs
"flash" que os CLACs - "Comités de Luta Anti-Colonial"
improvisavam, do Cais do Sodré à Praça do Chile.
Foi numa destas manifestações na Praça do Chile, no dia 21
de Fevereiro de 1974, dia de Solidariedade para com os Povos das Colónias
(porque efeméride do assassinato pela PIDE de Amílcar Cabral) que mais nos
ligámos. Eu fiquei a sangrar da cara por ter apanhado uma vergastada de um
PIDE, ele cobriu-me com um casaco, puxou-me, guiou-me por umas ruelas, fez-me
entrar num prédio, onde aguardamos horas pingando de sangue a escada, até ser
noite e arriscarmos sair, para ir ter com companheiros que nos levaram ao
Hospital de Santa Maria, a um médico de confiança que providenciava tratamento
em segurança, sem nos referenciar à polícia política.
Ambos tínhamos já sido suspensos da Faculdade por
"actividades subversivas" em Janeiro de 1974 - éramos 11 alunos suspensos, o João Soares, o
Pedro Palhinha, o Garcia Pereira, a Liliana André, o Manel Pitta e outros. A defesa, organizada conjuntamente,
e as actividades políticas clandestinas a que nos entregávamos já mostravam
termos muito em comum. Mas, como é óbvio, aquele episódio da Praça do Chile em
que o António fora meu salvador, mais nos aproximou - tornou-se um herói, o meu
herói!
Bom, dois meses depois, no dia 25 de Abril, dia em que eu ia
entregar na Conservatória os papéis para o casamento - não fui! Às 7 horas da manhã, um telefonema do Toné
estremunhou-me: havia um golpe de Estado e desta vez é que era mesmo ( já tinha
havido um gorado 16 de Março, nas Caldas da Rainha...). Ele ia já sair para a
Praça do Comércio/ Rua do Arsenal para junto dos militares revoltosos. Eu que
fosse ter, logo que pudesse, ao Cineclube, na Almirante Reis,
encontrar-nos-íamos lá ao fim da manhã. Naquela altura não havia telemóveis,
mas assim aconteceu mesmo. Dali seguimos para o Largo do Carmo, onde estivemos
horas entre os populares a exigir o render do regime. Ao fim da tarde
arrancamos em manif "espontânea" pela rua Garrett acima: à PIDE, fora
com os carrascos! Estávamos na multidão ululante na Rua António Maria Cardoso,
quando os carrascos dispararam rajadas de metralhadora. Na confusão
esgueirei-me por uma porta, caímos muitos no apertado vão do prédio onde
funciona hoje o Centro Nacional de Cultura, uns soluçantes, outros gemendo,
devia haver feridos, não sei se algum dos que morreu. Algum tempo depois, já
noite cerrada, afoitei-me a sair: metros adiante encontrei o Toné, que
arriscava procurar-me pelos vãos de escada da rua. Juntamo-nos à nossa malta,
na Brasileira, havia um ferido, o jornalista Adriano, baleado num pé.
Dali fomos para Caxias - era urgente libertar os presos,
antes que os carrascos se vingassem neles. Aguardamos horas nas matas, noite
escura - estava por ali muita gente, como nós ansiosa por recuperar os seus. Um
dos primeiros libertados que abracei foi o Tó Luis Cotrim - que no dia 20 de
Maio de 1974, na Conservatória de Alcântara, havia de ser um dos nossos
padrinhos de casamento, junto com o Manuel Gavião Carvalho Costa, que hoje aqui
está connosco.
Não vos vou contar as peripécias da vida aventurosa de ambos
no MRPP, depois do 25 de Abril - nem das rondas que o Toné fez pelo país na
nossa "Diane" amarela a fazer ver "O Couraçado Potemkine"
por recônditas aldeias; nem nas viagens loucas dele a distribuir o "Luta
Popular" pela periferia de Lisboa; nem dos seus trabalhos como advogado
para libertar as catrefas de MRPP's que os MJTs e a 5a Divisão do MFA levavam
presos... Nem do dia em que eu decidi afastar-me do MRPP, em Janeiro de
1976, e em que o António me disse que se
fosse obrigado a escolher entre mim, a nossa filha e a "Revolução a todo o
vapor", nos escolhia a nós. Não foi forçado a escolher, mas um ano depois
afastou-se ele, desapontado com o fosso entre a retórica e a prática dos
dirigentes e compreendendo que valia a pena tentar aproveitar a abertura
política para trabalhar pela democracia no país. Foi uma entrega genuína e
altruísta, a dele, a minha e de tantos outros ao MRPP e a toda a actividade
clandestina e perigosa que a precedeu: o António nunca tolerou aquela conversa
maledicente dos que atribuíam o MRPP a esquema da CIA, para escamotear a sua
própria impotência na luta contra o fascismo e o colonialismo.
Sete anos e sete dias dias depois de nos casarmos,
divorciamo-nos de comum acordo, civilizadamente, ficando amigos e dando-me
sempre ele, seus Pais, Manuel e Nair, sua Irmã Madalena, sua dedicada
empregada/ama Celeste e toda a sua Família, todo o apoio na minha vida
profissional atribulada para criar a nossa filha, Joana. Lembro-me como tirou
uma semana de férias e veio passá-la connosco em Genebra só para tranquilizar a
Joana que, ao saber que vinha lá um irmão, o João, temia pela perda do estatuto
reinante de filha, neta e sobrinha única... O Toné foi um pai dedicado e
atento, embora não tivesse sido formatado para por fraldas nem aquecer
biberões... Mas tornou-se ainda mais presente quando começou a poder ter
conversas sobre História e sobre a vida com a Joana adolescente, Joana que já
na Universidade viria morar com ele, na Junqueira. Joana e João que, na doença
que o levou, se uniram terna e desveladamente a cuidar dele, como ele sempre se
desvelara como Pai de ambos.
Uma das maiores penas que tenho - que todos temos, de
certeza - é termos perdido a possibilidade de estar horas a conversar e ouvir o
Toné desfiar histórias e História, com a graça, o sentido de humor, o riso
inteligente, o saber erudito salpicado de saborosa "petite
histoire"... Resta-nos a consolação de que muita da capacidade de
observação e de criatividade sarcástica e inteligente que o João plasma nas suas
"produções fictícias" foram herdadas do Pai... Como a Joana é, em
tanta coisa, muito, muito, Pai e Avó Nani.
Resta-nos também a consolação de que os netos do António, os
nossos netos que ele adorava e pelos quais sempre se pelou por fazer o que não
tivera, tantas vezes, ocasião de fazer pela filha - (por exemplo, ir buscá-los à escola) ainda
tiveram a sorte de o poder ouvir, de viva voz, contar histórias da guerrilha do
Remexido, das lutas entre miguelistas e liberais, dos portugueses e timorenses
"abandonados" mas resistentes em Timor. E manterão assim viva a
imagem de um Avô muito querido, muito presente, inteligente, culto, divertido
e, sobretudo, muito bonzinho e advogado do Bem contra o Mal.
Têm eles, e nós todos, outra fortuna: a de que sempre poderão
voltar a recuperar ânimo na obra que o António deixou, toda ela impregnada dos
valores que nortearam a sua vida, pessoal, profissional e política. Quando o
conheci, já ele tinha escrito e publicado com o Alberto Arons de Carvalho e o
Nuno Godinho de Matos, um livro arrojado no tempo da ditadura sobre "A
Liberdade de Imprensa" - um estudo jurídico-científico que era um libelo
contra as perversidades censórias da ditadura que amordaçava os portugueses.
O António adorava dar aulas. Pouco depois de casarmos, já
depois do 25 de Abril, foi um dos organizadores, professor-assistente e
escritor das sebentas das aulas de "História Económica e Social de
Portugal" na Faculdade de Direito de Lisboa. Tinha uma capacidade incrível
de estruturar o pensamento, de escrever rapida e afincadamente e de falar
simplesmente, descontraidamente, para interessar, ensinar e passar a outros o
tanto que sabia. Sei que adorou dar aulas na Escola Superior de Comunicação
Social, imagino que os alunos ali estariam particularmente despertos para
absorver tudo o que eles lhes procurava incutir.
Julgo que o que ele ali aprendeu com os seus alunos - como a
sua Mãe, o Toné era um genuíno professor, que quanto mais ensinava, mais
aprendia também e avidamente - foi decisivo para aquela que eu considero a sua
obra mais refinada e com potencial de chegar a mais gente: uma obra que poucos
ainda conhecem, sou uma das privilegiadas que pude já ler o argumento que ele
escreveu sobre o seu livro "O diário do Tenente Pires" para o filme
que o Francisco Manso há-de fazer em Timor Leste, sobre a heróica resistência
de timorenses e portugueses, como o Tenente Pires e Cal Brandão, contra os
ocupantes japoneses na II Guerra Mundial e contra a ditadura de Lisboa que os
abandonara. Lê-se o guião e estamos a ver o filme: é prodigiosa a capacidade do
intelectual que desenterra a História e a consegue transpor para o écran,
contando através das histórias emocionantes dos personagens que anima, e dos
que inventa, a gesta dos que em Timor se mobilizaram contra os invasores - a
gesta universal dos que lutam pela liberdade contra a opressão. Esse filme tem
de ser realizado, o guião escrito pelo António é fabuloso! E eu prometo aqui,
em sua memória, que farei tudo o que estiver ao meu alcance para podermos
desfrutar um dia, numa sala de cinema ou em casa, do filme "Abandonados".
O que o António mais gostava de estudar, de ensinar e de
falar era de História, porque a história é a vida, e sem História, sem
histórias, a vida não tem sentido. A dele teve, para todos nós os que aqui
estamos: eu e a Cristina, mães dos seus filhos; para a Joana e o João, seus
filhos; para os netos; para a irmã Madalena; para a mãe, Sra. D. Nair; para os primos, primas e
amigos e amigas, alunos e professores, colegas e velhos camaradas.! E para muito
mais, que hoje aqui não estão e nem sequer tiveram a sorte de o conhecer
pessoalmente, como nós, mas que vão poder ter o prazer de ler a obra que ele
deixou.
O António fadou-nos com a sua vida e com uma obra que tão
benfazejamente continuará a fadar as nossas vidas! "Boas fadas que vos
fadem!" A todos!"
(Intervenção ontem, 11.2.2016, na Livraria Férin, no
relançamento do livro "Boas Fadas que te Fadem!" e tributo ao Autor,
António Manuel Monteiro Cardoso, nascido em Freixo-de-Espada-à-Cinta em 8 de Setembro
de 1950, falecido em Lisboa, em 11 de Janeiro de 2016).
Ana Gomes é eurodeputada pelo Partido Socialista, foi casada
com António Monteiro Cardoso.
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