O amor não se conjuga no passado,
ou se ama sempre ou nunca se amou.
Fernando
Pessoa
Um livro de poemas (não
confundir com versos) só deveria ser apresentado por quem lhes deu vida, por
quem os sente como pertença sua, por quem os deixou voar, partindo do aconchego
da alma para o infinito, para o incógnito, para a admiração ou para a rejeição.
Quem somos nós, leitores de
poesia, para interpretar os sentidos implícitos, os meandros e as entrelinhas
de um texto poético pelo que ele encerra de enigmático, de plurissignificativo,
de ambíguo? Mais insinuações do que afirmações, verdades vividas, expressão de
sonhos e de ideais, palavras translúcidas porque, muitas vezes, veladas por um
"manto diáfano" de fantasia e onirismo.
Percorrendo aquilo a que podemos chamar a poesia da
modernidade actual (passe a redundância), deparamo-nos, não poucas vezes, com
um hermetismo à la page, garante de
recensões em páginas da imprensa cultural. A orgânica intrincada e enrodilhada de
certos textos ininteligíveis em vez de dar prazer estético a quem os lê,
cria-lhe complexos de estupidez...Ora,
os poetas têm uma missão a cumprir, eles, os privilegiados de entre o comum dos
mortais. Francisco José Viegas chama a atenção para isso: "A poesia não
tem a ver com a literatura. Releva do domínio do sagrado indizível". E
Miguel Torga proclama: "Os poetas são como os faróis: dão chicotadas de
luz na escuridão".
Credenciada com uma experiência longa na
leccionação da disciplina de Literatura e como leitora apaixonada de muitos dos
nossos poetas de todos os tempos, sinto-me à vontade para afirmar que José Braga-Amaral,
sendo moderno, é legível, embora não seja linear nem transparente a sua
expressão poética. Aliás, na minha opinião, a poesia é para ser lida e relida,
saboreada como o mais requintado manjar, sem obediência a imposições de Cronos.
Exige momentos solitários, propícios à concentração e à meditação. É uma mística,
uma transcendência, uma espiritualidade.
Dissecar um livro deste tipo
só se justificaria em ambiente escolar em que professores bem intencionados
andam à pesca de aspectos formais, à cata de metáforas e sinestesias, de
paradoxos e antíteses. Não estragaram os Lusíadas
dos da minha geração ao fazerem-nos, de lápis em punho, qual lança de combate,
perseguir ferozmente complementos para todos os gostos (ou desgostos...)
esgueirados sonsamente pelas oitavas camonianas?
Só se dissecam cadáveres e este
livro respira saúde por todos os poros. Se saúde e dor não são termos antagónicos. Incentivando a vida,
é um hino a essa vida. Torga escreveu no Diário "A vida é um absurdo
maravilhoso e a morte um escândalo sem remissão". Por muito que ela nos
roube, por muitas rasteiras que nos tenha passado, restam ainda muitos motivos
para amá-la. Porque nos dá o dom de amar e a capacidade de sofrer
ausências, o alvorecer de um novo dia prenhe de promessas, os
prazeres sensoriais prodigalizados pela natureza. Da imensidão do mar ao
sibilar do vento, do sabor a framboesa ao cheiro a jasmim, do voo pesado das
gaivotas, à leveza das garças, da majestade dos plátanos ao rubro efémero das
papoilas.
Serve este intróito de
justificação para o meu embaraço. Sugeri ao José Braga-Amaral, que arriscou em
mim a apresentação desta sua nova produção poética, que estava tentada a fazer
algo diferente. Ele confiou, eu vou arriscar. Em que sarilhos se irá meter, interrogar-se-ão?
Vou, tão só, tentar "traduzir" para prosa o texto do poeta, tentando
respeitar as suas emoções, vivências e angústias ligadas a esse sentimento
sublime e paradoxal que é o "amor que arde sem se ver". Um amor
polissémico, porque se ama carnal ou platonicamente uma mulher, como se ama um
irmão, um amigo, um botão de rosa, as conchas do mar, a luz da lua. A vida.
Ora aí vai o que me apeteceu escrever para hoje:
Quero dizer-te, amor, aqui e
agora, pela enésima vez, com a mesma segurança e pureza de alma, a mesma
segurança na voz, o mesmo alvoroço no peito. Uso as palavras porque quero
partilhar com os outros, os cépticos, os insensíveis, o meu mundo interior. De
contrário bastariam os meus olhos nos teus olhos, a minha boca na tua boca, a
minha mão na tua mão, a minha pele na tua pele.
Quero dizer-te, amor, sussurrando-te
com a minha boca colada ao teu ouvido, com essa boca que "não tem sentido
senão quando te absorve". Quero dizer-te do "peso da tua
ausência", falar-te dos sonhos que estão por sonhar, assegurar-te que
ainda "saboreio o teu sorriso de quartzo hialino". Quero lembrar-te
que te falam por mim o céu e o mar, a lua e as estrelas, o dia e a noite. Entre
nós, sabe-lo bem, não há tempo nem distância. Richard Bach escreve longe, em
vez de tempo. Também é verdade. Não há tempo (nem longe) porque vives em mim,
vives na memória dos dias ao recordar "o sabor do teu sexo", "os
sorrisos teu corpo de cetim".
"Ainda não é tarde, meu
amor", é apenas urgente: É urgente o amor / é urgente permanecer", ensinou-nos o "meu"Eugénio
de Andrade.
Estou sequioso da água dos
teus olhos, seja ela doce ou salgada.
Quero dizer-te, amor, no mais
calado dos cantos íntimos como no mais estridente dos ruídos, porque "não
há palavras para dizer o amor". Confesso-te um dos meus pedidos: "...peço
ao sol que me leve ao fim do teu olhar, e aos pássaros que me tragam o teu
aroma". E acredita: aguardo
pacientemente "o cheiro do teu sorriso", "candeia que ilumina os
passos do chão por onde passeia o amor".
Por ti me fiz místico e dou
comigo, na ausência de ti, a "repetir em surdina a oração do nosso
amor". Sinto que vens até mim na "maresia do sul" trazida pela
manhã.
A noite propicia a
concentração, o estado de vigília. É-nos mais eloquente o negro do "céu
cinzento", mais poéticas as luzes da aldeia, quais "estrelas
cintilantes e turvas". Noite. Mistério. Fantasia de "duendes caindo
como penas descendo do dossel / onde tudo acontece".
Os teus olhos, amor (quantas
vezes to disse?) "são de água cor de terra, / sublinhados pelo aroma do
incenso". Os teus olhos não podem ter, como os meus, "lágrimas
salgadas". Porque são, na terra, "o outro olhar de Deus".
Não estranhes que te
divinize. Se és o meu "anjo da guarda, tens um estatuto que transcende o
humano.
Nasceste para ser adorada, eu para te adorar. Se faço a Deus uma
"oração pessoal e intransmissível" em que lhe peço por mim,
"pecador", em que lhe imploro a ajuda para "respeitar o mundo
que me rodeia", o que Dele mais espero está contido no último verso, como
que a culminar o que mais desejo da vida: "ajuda-me, Senhor, a ter o
direito de amar".
Quero perguntar-te, amor, por
que "ficas sempre encostada à entrada do meu mundo". Esse mundo é um
ninho. Fofo, aconchegado, onde sempre
terás lugar, onde sempre espero
"pelo calor da tua pele com aromas a jasmim".
Quero dizer-te, amor, que
quando penso em ti, no teu corpo, nos teus lábios, nas tuas mãos (para mim sem
sentido sem as minhas), nos teus pés,
roubo à natureza o que ela tem de mais belo: "As dez borboletas exactas
são os dedos dos teus pés".
Deixa-me dizer-te, amor, que
o teu sorriso é benfazejo. Todos os sorrisos aquecem almas, iluminam cegueiras,
emprestam esperanças. "Porque é único o teu sorriso de cristal",
parecido com o que Jesus espalhou na terra, porque ele é "de alegria / que
apaga espíritos vacilantes", peço-te: Sorri, sorri a toda a hora, / não
pares mais de sorrir a toda a gente". Não te esqueças que, para mim, o
"teu sorriso incandescente / é o pão e a água, a noite e o dia, o açúcar e
o sal", ou seja, a vida.
Quero dizer-te, amor, que as
palavras que aqui te deixo são desordenadas, descontínuas e desconexas, atabalhoadas.
Porque nasceram do cáos da emoção, não existem para elas freios, regras,
lógica. São tão espontâneas como sinceras. Em todo o caso, nem sei se por acaso,
guardei para o fim as mais belas frases: rezar-te, ajoelhado "no altar de
cada dia", a ti que és "amante e mãe", qual Pietá a embalar-me
como seu menino.
Quero dizer-te amor, que és a
minha mulher poesia.
Hercília Agarez
Vila Real, 1 de Julho de 2015
Esta senhora escreve muito bem.
ResponderEliminarAntónio Carvalho
O livro está à venda? Onde?Por que o s senhores do blog não fazem uma livraria online? Comprava já este livro e o das mulheres transmontanas.
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