Martins Janeira - 1947 |
Transposto o pequeno portão do nº 40 dessa arborizada e sossegada
rua, galgados os primeiros degraus do jardim, estanquei, ao deparar com a
imagem do Sr. Embaixador, no alto do último patamar, trajado a rigor, com a
faixa azul de diplomata. Procurando desfazer o meu acanhamento, com o amável
sorriso que lhe era tão natural, interpelou-me desconstruindo a sua imagem
solene, dizendo algo como ‘ora veja só ao que um homem é obrigado na vida!’.
A verdade é que os Srs. Embaixadores Armando e Ingrid estavam
prestes a sair para o Palácio da Ajuda, onde se organizara uma recepção a sua
Majestade a Rainha de Inglaterra. Nessa noite, quebrando o protocolo da sessão
de cumprimentos, a Rainha dirigiu-se-lhes com total familiaridade exclamando: ‘’Oh, you are here!’, distinguindo-os
assim com o seu reconhecimento, lembrando-se dos amigos que recebera em Buckingham Palace.
Nessa casa do Estoril, envolta em exuberante vegetação,
respirava-se um ambiente sereno. Era da brisa suave e da refrescante verdura
que entrava pelas portadas dos generosos terraços; era dos livros que, aos
milhares, sem espaço entre eles, preenchiam toda a casa (excepto as paredes das
escadas, ocupadas por magníficas obras de pintura contemporânea); era das sonatas
de violino e de piano de Mozart ou das bellissime
canzoni do eclético Lucio Dalla, entre tantos outros temas que convidavam à
contemplação.
A arte era uma constante em todos os espaços, representada em
variados domínios. Completando a atmosfera, despontavam performances,
aproveitando a visita de muitos dos seus melhores intérpretes. A intervalos, um
silêncio profundo, entrecortado pela alegre cantoria das aves e o deslizar da
brisa na folhagem. O espaço natural e o construído equilibravam-se na justa
medida, estimulando a reflexão, resultando num ‘espírito de lugar’ sensível,
inspirador, propício à utopia, a um ideal de humanidade.
Durante alguns anos, por volta dos anos 80 do século passado,
frequentei essa admirável casa, pela amizade que me ligava e liga, aos filhos
do casal, que prosseguem hoje brilhantes carreiras internacionais. Como é
próprio dos 20 anos que então tínhamos, era nas casas familiares que nos
reuníamos com o pretexto de estudarmos as pesadas cadeiras de Direito. A sala
de estudos da avenida de Portugal era a mais acolhedora.
Chegada a hora de distracção, os amigos que nos aguardavam tinham
de esperar, a saída ficava adiada pelas conversas, da maior riqueza e franqueza
que já conheci. A relevância atribuída a Armando Martins Janeira pela juventude
que o conhecia não era apenas local. Um dia, em Roma, com o elenco de uma
moderna companhia teatral, mantivemos prolongada conversa acerca do seu
pensamento, confirmando a admiração que esse grupo de jovens italianos nutria
pela sua obra.
Durante esses anos, mostrando interesse pelas mais variadas
matérias, o vigor comunicativo do Sr. Embaixador estimulava o início das
conversas, dando-nos de seguida a melhor atenção, apesar de porventura pouco a
merecermos. Recordo que tinha um gosto particular pelo ciclo produtivo dos
mármores: perguntava-me tudo sobre as técnicas, a cadeia operatória, as
variedades, as pedreiras e os mercados. Mas o que mais o fascinava e procurava conhecer
era o que os artífices do ramo sentiriam ao lidar com essa pedra tão cheia de
vida e de elevado valor artístico.
Cultivava essa simplicidade rara que desinibia o
interlocutor, era atento no diálogo, respeitador como ninguém, bem-humorado,
conjugando a afectividade com o carácter livre e seguro dos que nasceram para
lá do Marão. Por algum forte motivo, nunca deixou de levar sempre consigo as
pedras transmontanas que lhe avivavam a lembrança da terra a que tanto queria.
Percebi, anos mais tarde, que essa marca de distinta
hospitalidade tinha raízes profundas nas maneiras transmontanas de acolhimento,
traduzida na fórmula ‘entre quem é!’. Na verdade, os hábitos que ganhara no
‘seu’ Trás-os-Montes de infância, parecem ter sido sempre o leme da sua
conduta, reforçada com a sua vasta cultura e experiência de mundo, da qual o
contacto com o oriente terá sido um reencontro venturoso com os seus valores
mais profundos.
Esses valores universais que se conjugaram num só homem, e
que são as virtudes que ele próprio destacou: a bondade, a coragem, o sentimento
de gratidão e a fidelidade à palavra dada. Talvez por isso eu tenha ousado ter
autoridade para lembrar recentemente a um dos seus descendentes mais jovens:
‘não te esqueças nunca que, além de português, serás sempre transmontano’.
João Azenha da Rocha
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