Toda a aldeia estimava a Amália da trança loura. Velhos e
novos, mulheres e crianças, ao passarem à porta do seu tear, entravam a
festejá-la e, indo com pressa, todos lhe davam ao menos as boas horas. Ela era
merecedora dessa benquerença geral. Nunca dos seus grandes olhos azuis saíra um
olhar que não fosse repassado de bondade, nem de sua boca saíram palavras que
não fossem cheias de sinceridade e revestidas de brandura. O modo de seu olhar
tinha alguma cousa de celeste e de angélico; parecia que Deus fundira nele, ao
vir da noute, a luz da Lua; ao vir do dia a luz do Sol. A tez da sua cara era
branca como o algodão em rama apurado nos liços do seu tear. Os lábios eram
orlados duma dupla ordem de pérolas, as quais impensadamente deixava ver nos
seus doces sorrisos. Os moços do lugar diziam que ela era o alívio das penas.
Efectivamente, na mulher existe uma alegria vaporosa que dissipa a tristeza no
homem. Quantos moços, seus vizinhos, a haviam desejado para noiva! Até um
mancebo de vinte anos, que estudava para padre, lhe prometeu que deixava tudo
para a receber como noiva. Num ímpeto de declaração apaixonada, disse-lhe: - se
pudesse roubar ao céu o setestrelo, fazia dele um colar de brilhantes para te
oferecer.
Igreja Matriz de Rio Frio |
Amália já tinha vinte e sete anos e era xorda aos devaneios
dos diferentes adoradores. A sua reputação, como a sua vida, eram duma pureza
imaculada. Vivia com sua mãe, uma santa viúva, objecto dos seus desvelos.
Ninguém cuidava como Amália das flores para ornamentar o altar da Virgem
Santíssima. Desde que fora mordoma da Senhora, ficara-lhe com especial devoção.
Nos domingos, o altar da Senhora parecia um jardim com os seus ramalhetes de
lindas flores e com vasos de majaricos e de clementinas. Aproveitava em todas
as estações as flores que poderiam servir-lhe. A frescura da alma e a santidade
do pensamento da Amália da trança loura, misturadas com o aroma das flores,
volatizavam-se pela igreja, robustecendo a consciência dos justos e tolhendo os
instintos malignos dos pecadores. O Reverendo Cura da paróquia não se cansava
de louvar as almas pias que cuidavam do adorno dos altares e do asseio da
igreja. O velho Reitor da paróquia havia afervorado mais o culto da Virgem,
depois da definição do dogma da Imaculada Conceição, no tempo do Padre Santo
Pio IX. Mais de quantas vezes haviam dito no catecismo, ao seu rebanho, que
Maria Santíssima é o refúgio dos pecadores, o auxílio dos cristãos, a
consolação dos aflitos, o amparo dos desgraçados; é a Ela que vós acorreis nas
vossas aflições, nos vossos trabalhos, nas vossas necessidades, e é de Ela que
vós recebeis todas as graças, por isso que todas elas se comunicam pelas suas
mãos benfeitoras, como diz São Bernardo: Ómnia per manus Mariae.
O encanecido Reitor queria apriscar todas as suas ovelhas,
devotamente, no altar da Virgem. Ansiava porque todos orassem, justos e
pecadores, estes ainda mais do que aqueles, porquanto entendia que de todos os
actos do homem o mais divino era o arrependimento. Ele procedia benevolamente
com as almas fracas, vítimas da tentação, exclamando: Vêem buscar em mim um
escudo para as proteger, não hão-de encontrar uma vara para as vergastar.
Outras vezes dizia em tom severo: Pior é para as aves o meigo assobio do
caçador que as convida, que o estrondo do lavrador que as espanta.
O génio da raça transmontana é laborioso, independente,
sofredor. Já diz João Salgado de Araújo, escritor do século XVII: “que habita a
província de Trás-os-Montes muito boa gente, não sabe vício algum nativo dela”.
Outrora como povo serrano, viveu da caça e da pastorícia; depois tornou-se
essencialmente agrícola. Além das plantas alimentícias, há as plantas
industriais, sendo a principal o linho, que precisa de uma longa série de
trabalhos antes de ser utilizado. É necessário, depois de semeá-lo, sachá-lo,
regá-lo, mondá-lo, arrancá-lo, esbagaranhá-lo no eirado, cozê-lo no pego de
água corrente, escorrê-lo, secá-lo ao sol, maçá-lo, esfregá-lo, espadá-lo,
estrigá-lo, assedá-lo no sedeiro para tirar-lhe a estopinha, fiá-lo à roca em
maçarocas, ensarilhá-lo em meadas, corá-lo, dobá-lo com ergadilho em novelos, urdi-lo, pô-lo no tear, tecê-lo,
embarrelar as teias muitas vezes e corá-las ao sol, regando-as com um regador
até que estejam bastante brancas.
A Amália da trança loura ocupava-se de outros trabalhos
referentes ao linho; mas em tecê-lo é que ela gastava uma grande parte do ano.
O tac, tac, tac, do seu tear tinha uma cadência especial que soava como uma
nota melancolicamente risonha do eco longínquo de tear argentino de moura
encantada. Os tecidos que fabricavam estes teares são: linho, estopa, ou
tecidos para toalhas, guardanapos de olhos de sapo, colchas lisas ou de
borbotos, que são urdidas com estopa e tapadas com lã, enxerga que serve para
capas de mulher ou para saias, enxerga de lã branca de que se faz saiotes. O
burel pardo que se usa no vestuário dos homens é tecido num tear especial, mais
largo, em que tecem ao mesmo tempo dois, geralmente um homem e uma mulher. O
tear ordinário consta das seguintes peças: duas mesas aos lados – o órgão e o
entre-peito diante do aperto da tecedeira, que forma os quatro lados,
desenhando um quadrado. Há dois órgãos, espécie de eixos; num está a teia ainda
urdida e enrolada; no outro está a teia já tecida. Seria longo descrever a
função de cada uma destas peças, por isso apenas as vamos enumerar: as canas,
os liços, que são de duas ou quatro prechadas, segundo a qualidade do tecido,
os canais dispensos das parafitas que com os dois troçais defendem o pente. O
pente varia segundo se tece linho, estopa ou lã; é a lançadeira que com a
vareta segura a canela e os tempereiros, que são de ferro; os liços estão
pendurados nas carrilhetas que, por sua vez, estão suspensas de altas
travessas. Os cachorros seguram as apremedeiras, que são uma espécie de pedal.
As peças auxiliares são: o compostor, o restrelo, as cavilhas da postura da
teia, as cavilhas desandadeiras e o gancho. No rodeleiro é que se fazem as
canelas com que se fabrica a tecedela.
Havia três noites que não saía a ronda da mocidade de Rio
Frio. A viola chuleira, os ferrinhos, o bombo, a guitarra, tudo estava em
triste descanso. A voz engraçada e vibrante de Joaquim Vara já não entoava ao
passar diante de Amália da trança loura, as duas cantigas que naquele sítio
costumava cantar:
Tendes
o cabelo louro
Pelas
costas ao comprido,
Parecem
moedas de ouro
Ao
martelo rebatido
Nasce o
Sol, corre o céu todo,
Põe-se
e torna a renascer.
Eu
contigo na lembrança
Eis
aqui o meu viver
A roda da fortuna ora livela, ora deslivela a sorte humana,
é como o rodeleiro da tecedeira, tanto anda como desanda. Havia já três dias
que Joaquim Vara fora mordido na testa por um coxo, (qualquer animal venoso) e
que estava às portas da morte. A mordedura parecia haver sido de insecto
carbunculoso, encubado em pele de ovelha, o qual lhe inoculou a pústula
maligna, funestamente conhecida na terra por ferida má. Tinha a cabeça e o
pescoço inchados como um boto (odre). Uma bruxa viera tratá-lo com mezinhas,
benzeduras e esconjuros, mas a inchação não diminuía. Empregava todos os
recursos da sua arte sem obter a cura que desejava. Começou com a bênção com o
guedelho de lã, tirada do lombo do rexelo:
Bênção
para curar coxos
Jesus,
nome de Jesus,
Eu te
benzo coxo
De sapa
ou sapão,
De
cobra ou cobrão,
De
aranha ou aranhão,
De
rigor ou salteador.
Eu te
corto e recorto,
Coxo de
toda a nação
Com o
guedelho da lã ludra,
Do
lombo da ovelha viva,
Azeite
da oliva
Do
monte Olivete;
Queimada
sejas tu
Como a
lã no lume (queima a lã)
Com
honra de Deus
E da
Virgem Maria
Um
Padre-Nosso
E Avé -
Maria
O coxo cura-se também com ponta de veado metida na água
fazendo nela nove cruzes, a três cada vez, e repetindo a cruz no sítio enfermo
todas as vezes, pronunciando certas rezas ao mesmo tempo. No princípio do
mundo, afirma a benzedeira, o veado benzia a água fazendo as nove cruzes para
que depois bebessem os outros animais. Nenhum bebia sem ele beber primeiro,
porque assim estava determinado para que a água não fizesse mal. Se alguém não
esconjurar o bicho venenoso, nasce ele próprio no sítio da mordedura e de trás
da chaga vive escondido, sendo preciso alimentá-lo com carne, posta sobre a
ferida, e não tendo este alimento, vai comendo o padecente até lhe devorar o
coração.
A Amália tecedeira também foi visitar o enfermo, Joaquim
Vara, e na povoação soube-se que pelas melhoras dele fizera uma grande promessa
a Nossa Senhora da Ribeira. Esse dia marcava particularmente na sua alma,
grandíssima devoção mariana, pois era dez de Dezembro, em que a Igreja Católica
comemora a prodigiosa trasladação da Santa Casa do Loreto. Com efeito, Joaquim
Vara rapidamente melhorou.
Os votos da bondosa Amália, dizia toda a gente, foram escutados
no céu. Ninguém acreditava todavia que a Amália da trança loura se rendera às
repetidas cantigas e às constantes garridices de Joaquim Vara, porque não era
homem que servisse para uma moça daquelas qualidades. O Joaquim Vara era um
cabeça tonta; fora soldado que descera até às companhias de correcção. Bebia,
fumava, jogava, namorando-se de todas as raparigas e gabando-se de cousas que
não fazia. Era muito divertido, dançava, tocava e cantava como ninguém; mas em
recompensa era um mandrião, que estragava o pouco que herdara. Não admira pois
que todos estranhassem a promessa dela a Nossa Senhora da Ribeira, por um moço
que não era seu parente.
No Santuário Mariano, diz-se que Nossa Senhora apareceu na
Ribeira a uma pastorinha que era muda e que por milagre lhe desimpediu a fala,
constituindo-a embaixadora perante os moradores da sua aldeia para que lhe
edificassem uma casa. (Santuário Mariano, pág.611)
A Ermida de Nossa Senhora da Ribeira já existia em 1281,
pois que Santa Isabel, filha de D. Pedro III, de Aragão, que esposou D. Dinis,
Rei de Portugal, entrando por ali, foi piedosamente visitar a ermida. D. Dinis
protegeu-a junto do mosteiro de Castro de Avelãs e mais tarde junto do alcaide
do castelo de Outeiro, que ele mandou edificar. Há vestígios de que a ermida da
Ribeira foi uma próspera confraria; hoje está pobríssima. Os documentos que
existiam sobre esta confraria foram queimados com a casa do juiz dela, o
morgado da Paradinha, por uma guerrilha da luta civil em 1829, entre D. Miguel
e D. Pedro.
Antigamente havia três grandes romarias a esta ermida, a
primeira a 25 de Março, a segunda dia dos Prazeres, segunda-feira de Pascoela;
a terceira, última de ladainhas, véspera da Ascenção do Senhor.
Hoje, em regra, só se festeja a das ladainhas, vindo os
párocos de muitas freguesias em numerosas procissões acompanhando as
respectivas Nossas Senhoras, graciosamente enfeitadas pelas suas mordomas.
Lembra talvez esta festa o que no sul do reino chamam um círio. Vão nesse dia
visitar a Senhora da Ribeira, as Nossas Senhoras das seguintes povoações:
Palácios, Deilão, S. Julião, Vilameão, Babe, Milhão, Réfega, Veiga,
Quintanilha, Argoselo, Pinelo, Outeiro, Paradinha, Paçô, Rio Frio. A Nossa
Senhora visitada, vem esperar ao cruzeiro, que é assaz distante, com os
capelães e fiéis, as Nossas Senhoras visitantes que vão chegando, cada uma por
sua vez, e acompanha-as até dentro da igreja, cantando todos os fiéis em coro.
Repete-se igual cerimónia à despedida, partindo primeiro, gradualmente, as das
aldeias mais distantes.
Depois da missa, sermão, procissão e jubileu, é o jantar de
saborosas iguarias, sobre brancas toalhas estendidas na relva ao longo da
encosta e à margem da ribeira. A compra das amêndoas às donzelas, em geral,
causa briosas disputas entre os moços.
Aquela devoção sincera, aqueles fervorosos penitentes, os
trajes indígenas daquela gente castelhana e portuguesa, mergulham o nosso
espírito cristão num ambiente que tem mais da poética Idade Média do que da
positividade mesquinha e desconsoladora de nossos dias.
O céu é de um azul límpido, admirável, a primavera ostenta
já esplendentemente as suas galas, as faceiras verdejantes começam a
amarelecer; aqui há um adil coberto de espessa erva, além a peonia com a sua
vistosa flor, a que ali chamam rosas de lobo, lança manchas vermelhas no tom
verde da paisagem. A terra é ondulada com múltiplas colinas, semeadas de
grandes fragas musgosas, com ladeiras adornadas pelo verde-escuro dos estevais,
encimados graciosamente pelas suas flores de um branco suavíssimo de camélia.
Entre as romarias milagrosas daquela redondeza, citam-se a
da Nossa Senhora do Naso, a de Tuiselo e a da Serra; a da Ribeirica é mais
modesta, mas nem por isso é menos escutada pela inefável Mãe de Deus. Na guerra
dos franceses, em 1810, um esquadrão de cavalaria, roubou e profanou, segundo o
seu odioso costume, a igreja de Quintanilha e tentava repetir a mesma acção na
Nossa Senhora da Ribeira, porém o ermitão fez uma fervorosa prece diante do
altar, suplicou-lhe que defendesse o templo daqueles guerreiros sacrílegos. Com
efeito, as tropas francesas subiram até meio da encosta, perto do cruzeiro, mas
aí os cavalos pararam milagrosamente, e zombando dos inúteis esforços dos
cavaleiros, recuaram deixando incólume a ermida.
Havia pouco um ganadeiro ovelhum que ensurdecera, prometeu a
Nossa Senhora, para guarecer, em memória das Sete Dores, sete rexelos das suas
manadas. O gado nessa época estava desdobrado em alavão e alfeire. Trouxe o
rebanho no dia da festa da Anunciação a dar três voltas à ermida e sete das
melhores cabeças que entrassem por qualquer das portas eram oferecidas à Rainha
do Céu para despesas de culto. Assim se cumpriu o voto e de tal guisa que o
ganadeiro recuperou o ouvir, aparecendo asinha de sembrante cheio de ledice.
Exclamava: Bendito e louvado seja o Senhor! Pois tinha sido desenganado de
cirurgião e boticário! Agora nunca recusaria ao necessitado um cibo de pão e um
cacho de carne.
O pouco
que Deus nos deu
Cabe
numa mão fechada;
O pouco
com Deus é muito
O muito
sem Deus é nada.
A ideia de Deus enraizada amorosamente na consciência
humana, é lâmpada de ouro, cheia de óleo santo inconsumível, que alumia sempre
com eterna luz, e amacia pela graça o caminho da verdade, da fortaleza e do
bem.
O tear só sossegava na ânsia de tecer quando a Amália
cuidava em cirandar centeio ou se çavava a ouvir os cegos tocar çanfona no
xaguão ou na rua vendo ao mesmo tempo os moços dançarem o sapateado a essa
toada. Às vezes xordia do cortinheiro ansiosamente um coqueiro que dançava o
sapateado fazendo grande arruído com os seus çocos de amieiro. A Amália andava
sempre muito asseada desde o lenço ao bajú e aos çapatos. Ela era branca como a
açucena, um nadinha xardosa e usava um xale preto como a çamarra do senhor
Reitor, cercado de uma çanefa ruça. Era esse xale que a livrava do sol e das
zurbadas de água quando ia aos sumarentos pêrsigos aos persegueiros da horta e
às sumosas cerejas ao cerdeiro, porque preferia o fruto lampo ao tardego. Usava
enterrar as carunhas dos pêrsigos e dos damascenos para que nascessem
persegueiros e albricoqueiros.
A Amália da trança loura havia orado contrita e num domingo
florido do mês de Abril depois da missa, partiu só, e com o seu lenço branco na
cabeça e saia de dous refegos, pela beira do ribeiro da Malhada, que leva de
Rio Frio em direitura à ermida. É neste ribeiro que há um moinho inverniço onde
um ladrão no começo do século XIX, em extrema escassez, furtou um saco de
farinha, escrevendo sobre a porta a curiosa quadra seguinte:
A este
moinho entrei
Um saco
de pão levei
Para o
ano lho tornarei
Porque
a fome não tem lei.
Amália ia pensando, infinitamente agradecida, no cumprimento
da sua sagrada promessa, mas a ideia de Joaquim Vara não lhe saía da cabeça.
Recordava-se enleada da última vez em que ele a apelidara de amor-perfeito:
Não
chames amor-perfeito
Às
cousas que a terra cria
Amor-perfeito
há só um,
O filho
da Virgem Maria
Ele seria talvez um estroina, mas ela nunca gostara assim de
ninguém como agora gostava deste moço. Talvez seja uma tentação do demónio,
reflectia ela aterrada. Lembrou-se de rezar a coroa gloriosa, mas naquela
algibeira não trazia rosário. Recolhe do chão para a algibeira sete pedrinhas,
correspondentes aos sete mistérios, e contando as dez Ave-marias pelos dedos,
vai deitando fora uma pedrinha sempre que acaba um mistério, e ao tirar a
última estava já em frente do cruzeiro, onde fez a oração do oferecimento.
A sobrinha do ermitão era sua amiga. Conversaram por alguns
minutos as duas a meia voz. Dos olhos da Amália rolaram duas grandes lágrimas
da cor de opalas. Encerraram-se num quarto terreiro. A sobrinha do ermitão com
tesoura corta sem piedade, muito rente, toda a enorme trança da Amália.
Ataram-na com uma fita de seda branca. Não teve outra mortalha. O sacrifício
estava consumado. A promessa estava cumprida. Dirigiram-se ambas, como um
cortejo fúnebre, a sepultar aqueles formosos despojos que durante a vida
fizeram pecar de inveja tantas mulheres. O seu jazigo era humilde. Permanece
pendurada ao lado dumas carinhas de criança e peitos de mulher feitos de cera.
Viam-se penduradas interiormente nas paredes do outão
manifestações simbólicas dos miraculados, moldadas em cera: gargantas ofertadas
a São Braz, advogado contra essas doenças, corações a Santo Arnaldo, olhos a
Santa Luzia, etc. Fazem voto a esta Santa, uns de uns olhos vivos, isto é, de
uma galinha, canhona ou vitela, outros de uns olhos de prata trabalhados por um
ourives, e vendidas essas ofertas, o seu produto é aplicado às despesas do
culto.
Estas piedosas manifestações populares de agradecimento
pelos votos realizados são toleradas pela Igreja e representam, na evolução do
sentimento religioso uma necessidade da alma humana satisfeita pela Divindade
Já os sacerdotes do paganismo romano, chamados Fictores, faziam vítimas
fingidas de pão ou cera, pois nos sacrifícios consideravam as vítimas fingidas,
como verdadeiras.
As duas ajoelharam, por momentos, juntas primeiro no
altar-mor, depois no de Santa Isabel, a benfeitora daquele templo.
No domingo da próxima quinzena recebia a sobrinha do ermitão
um recado para assistir em Rio Frio às bodas da Amália da trança loura com o
Joaquim Vara.
De Manuel António Ferreira Deusdado, in Escorços
Transmontanos, Ensaio de Literatura Regional, edição Livrarias Aillaud e
Bertrand, Lisboa - Angra do Heroísmo, 1912. Trata-se da versão original, já
que, inexplicavelmente, nunca foi reeditado.
Texto e foto enviados por António Coelho
Obra fundamental da literatura de raíz etenográfrica esquecida pelos poderes de responsabilidade cultural.Tanto dinheiro gasto em projectos vazios mesmo no campo editorial. Não há uma associação ,centro,ou um simples grupo defendedor de causas perdidas?
ResponderEliminarLeitor
Fantástico e elucitavivo este texto!
ResponderEliminarParabéns ao autor.
Leitora
Desconhecia por completo a obra, cujo excerto acabo de ler. Tanto saber, tanto conhecimeto, para além da fantástica história da Amália da trança loura! A ideia que fica é que a obra é excepcional.
ResponderEliminarO autor, Manuel António Ferreira Deusdado, merece reconhecimento e a sua obra merece reedição.
Júlia Ribeiro