“Dei
quinhentos escudos por ela. Sabe lá o tempo que eu andei para poupar os
quinhentos escudos para a bicicleta nova”
Aos
95 anos diz só ter “um bocadinho de falta de ouvido” mas parece estar informado
sobre todos os assuntos. A cada frase parece esboçar um sorriso, ainda que
disfarçado pelo bigode rigorosamente aparado. Américo Massa já conheceu muitos tempos
e de alguns preferia não se lembrar, “íamos para a escola, andávamos descalços
e, às vezes, quando íamos a fazer o exame da 4ª classe, era quando usávamos
umas alpercatinhas de borracha por
baixo; aquele que não tivesse posses, fosse mais pobrezinho, nem isso tinha
para calçar, ia descalço à mesma a fazer o exame da 4ª classe”. Foi resistindo,
e o tempo que por ele foi passando não o fez vergar. Via-o antes como aliado,
para conhecer coisas que muitos não chegariam a conhecer e diz sem ironia “apesar
de tudo, a vida ao mesmo tempo era alegre”.
Trabalhou
desde cedo, as crianças à época pareciam tornar-se adultas mais cedo. Ainda fez
a 4ª classe mas a miséria dos tempos não permitiram que continuasse, “a pobreza
era muita e tínhamos de ir a ajudar os pais naquilo que calhasse, numa hortinha
que se tivesse plantado, com pimentos, com tomates, com a batatinha, com o
feijão; ajudávamos lá na horta para termos as farturinhas para casa, para comermos, senão tinham que se ir a
comprar, mas dinheiro não havia, era pouco”. Mais tarde foi cantoneiro e não
conheceria outro ofício durante 20 anos, até que concorreu a cabo e “ficou
bem”. Foi cabo de cantoneiros mais de vinte anos, até à reforma, 590 escudos na
altura.
Conheceu
o tempo em que não havia luz elétrica “nessa altura nós não tínhamos ainda luz
aqui em Freixo; mais tarde veio dali de Espanha, atravessava aqui em baixo na
Congida o rio, uns paus, em cima os fios que vinham ali para a porta do
cemitério, era onde era a cabine da luz elétrica, e depois tinha um homem que lançava
a luz, ia lá abrir a luz nas manivelas, e tirava”. A instalação elétrica em sua
casa só viria mais tarde, quando teve possibilidades, tal como a canalização da
água, “havia alguns cinco ou seis fontenários cá na Vila, na minha altura, com
uma torneira, mas a água era pouca no depósito; tínhamos um depósito grande ali
em cima, e vinha a água lá de onde estava captada; depois do depósito, então é
que era distribuída para as casas que já a tivessem, aquele que não a tivesse
distribuída ia com os cântaros para ao pé dos marcos, de madrugada a tomar a
vez, mas tinha de estar lá a Guarda, porque senão as mulheres batiam-se, tudo
queria encher os cântaros, era por vez , senão era o diacho”.
A
vontade de viver não o deixava estar quieto e já depois de reformado Américo
Massa continuou a trabalhar, “tinha uns Matuelinhos,
como se costuma dizer, eram uns prediozinhos
pequenos, trabalhava-os eu e colhia umas arrobitas
de azeitona, umas arrobitas de
amêndoa, umas quantas uvas, era assim sucessivamente”. O tempo foi passando por
ele mas não passaram as memórias que ainda guarda com exatidão, como a carta de
condução de bicicleta que era obrigatória na época. Também ainda guarda a sua
2ª bicicleta, era o seu instrumento de trabalho, “sabe lá o tempo que eu andei
para poupar os quinhentos escudos para dar pela bicicleta nova”, que muitas
vezes o haveria de levar a Barca D’Alva e a Ligares e onde transportava os
“fiarpinhos” de bacalhau e por vezes uma tortinha de ovos, que faziam parte do
farnel de um dia inteiro de trabalho.
A
vida não foi fácil. Estava casado há 17 anos quando a mulher faleceu mas o
compromisso haveria de ser pra sempre, pois ainda mantém a aliança
rigorosamente cuidada. Desde esse dia que se habituou a fazer tudo sozinho, a
cuidar da casa, da sua comida e de si, que sempre completava com o sobretudo e
o chapéu, marcando a figura que, olhando, parecia estar em esquadria.
Quem
olha mais perto, de Américo Massa conhece a ponta de teimosia que o mantinha em
sua casa, em volta das suas coisas, sem querer dar “enfado” aos mais próximos,
como quem quer, para sempre, lutar sozinho contra a passagem dos dias.
Joana
Vargas
Nota
do Editor
A
entrevista foi gravada em Abril de 2015. Américo Augusto Massa faleceu a 19 de
Dezembro de 2015. A LB Produções presta através desta crónica, uma pequena
homenagem a este senhor e as sinceras condolências à família.
Leonel Brito
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.