sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Um Freixenista Universal In “Almirante Sarmento Rodrigues 1899-1979, Testemunhos e Inéditos”, pág. 142-145



UM FREIXENISTA UNIVERSAL

PADRE FRANCISCO VIDEIRA PIRES
Catedrático de Ciências Sociais

Foi sempre à distância, fora do colóquio directo, que, no decorrer dos tempos, conheci o Almirante Sarmento Rodrigues. Só em 1961 tive o privilégio de o tratar directamente, apreciando-o com alguma intimidade.
A pintura modernista, ao ensinar-nos que uma discreta distância do quadro é o segredo para captar e integrar o esplendor das suas cores, linhas e volumes, traz-me sempre à mente o fino humor de Hegel, quando lembrou que ninguém é grande para o seu criado de quarto. Com efeito, a marca inconfundível da verdadeira grandeza moral reside na distinção da simplicidade com que aparece diante de nós, sem precisar de ensaiar gestos nem de compor antecipadamente as palavras com que nos fala.
 Já lhe sabia do nome. E um pouco do brilho singular da sua carreira de marinheiro e político. Mas foi em Freixo, na sua própria terra, que o volume e os contornos da sua personalidade pela primeira vez começaram a definir-se, para mim. E pela voz de uma excelsa dama à antiga, digna de figurar na galeria das heróicas de Camilo ou de Agustina — a Senhora Dona Ernestina. Taborda.
A admiração dela pelo "Sarmento", como sempre lhe chamava, na memória vivíssima dos tempos em que, rapazinho, frequentava as escolas da linda vila manuelina, não tinha limites. Com ternura lembrava que nunca ia a Freixo, que não lhe batesse à porta, para larga cavaqueira de amigos que não se esquecem. Cá fora, nas velhas ruas enviesadas ou nas pracetas ensolaradas, com os pequenos grupos de populares com que me ia familiarizando, nas estadas que por lá tive, a admiração de todos era a mesma. Admiração pelo brilho da sua inteligência, e também encanto, um imenso encanto, pela naturalidade com que os ouvia. Como se nunca dali tivesse saído e diariamente divagasse com eles pelo empedrado das suas calçadas, sentado até à mesa do mesmo café. Este me parece o primeiro traço, primeiro e mais indelével, do seu carácter, em tudo quanto esta grande palavra, de funda raiz helénica, consigo transporta. Amava Freixo até à raiz da alma. E sobravam-lhe razões para tanto, pois ela é não apenas a mais bela das nossas vilas, como até urna das terras mais fascinantes do mapa continental.

Falava da sua paisagem sem par, dos seus monumentos, do seu artesanato, da sua riqueza agrária, da sua culinária, da maravilha única do seu porto, mais ainda da sua gente, a quantos o contactavam, sempre que as nossas terras vinham à baila. Creio não errar se disser que foi ele quem transformou a nossa vila na capital incontestável dai amendoeira florida. Lembro sempre uma frase dele, que deveria estar gravada em lápide, nalgum velho muro de' lá: O Algarve tem amendoeiras; só Freixo tem amendoais. Repito-a sempre, ao jeito de estribilho duma canção familiar, sempre que, entre fins de Fevereiro e primeiras semanas de Março, repito esse trajecto de deslumbramento, que é subir de Barca de Alva até um ponto acima do casario urbano, depois de nos debruçarmos sobre o Penedo Durão.
O tratamento de privilégio que os Monumentos Nacionais deram ao centro histórico da terra a ele se deveu. Do empedrado das ruas, ao arranjo das fachadas, com as suas janelas e balcões renascentistas, a confluir na praça da matriz, a igreja manuelina mais esbelta e opulenta, depois dos Jerónimos, com a esguia torre sobranceira, a marcar o ritmo dos séculos que por ela passaram, tudo o que ali se encontrava preservado, com saber e apuro, julgo ser obra sua.
Nunca se varrerá da lembrança a primeira vez que lá fui pregar o tríduo para a festa de Ano Novo. Esperaram-me longe, na estação, agora erma, do caminho de ferro. O automóvel não dispunha ainda de aquecimento. Quem pensava nesses requintes há quarenta anos? O nevoeiro rondava os altos; e só ao acercar-nos do povoado, a vila surgiu, iluminada e mágica, como num quadro de El Greco, estirada na encosta.
Mas o deslumbramento maior veio depois, quando entrei na matriz. Era a primeira vez. A luz indirecta coada dos capitéis, espraiando-se docemente pelo artesoado do tecto, ao mesmo tempo que escorria, em penumbra imperceptível até ao chão de bancos em que os fiéis ajoelhavam, invadiu-me tão intensamente, que as minhas primeiras palavras, mal subido ao púlpito, obra-prima dum jogo de harmonia entre a pedra lavrada e o lavor primoroso do ferro forjado, vogaram à deriva da emoção que me possuía todo.
Intencionalmente o recordo. É. que, em 1961, em meados do Verão, nos seis dias inolvidáveis que passei em Lourenço Marques, pude lembrar esta minha primeira impressão de Freixo ao Senhor Almirante. Em pleno Palácio da Ponta Vermelha, onde fui visitá-lo. E logo percebi que a minha emoção era também a dele, intensa e viva, como se os dois estivéssemos lá, envoltos na penumbra mística do templo distante.
Então se fortaleceu mais a admiração que de há muito eu nutria pela sua personalidade riquíssima. E aí terá nascido a sua pelo nome pequeno. Guardo escritos seus, que então me ofertou, com dedicatórias, que agora releio com saudade. E pena também de não já podermos contá-lo, entre nós.
Longe levou, por então, a sua generosidade, pois até quis presidir a uma das conferências que proferi na cidade maravilhosa, dentro do Salão Nobre da Câmara Municipal, a abarrotar de gente, que, por não caber toda no interior, inundou o átrio e a escadaria de acesso. Foi a primeira vez que a minha figura surgiu na televisão, para gáudio dos meus conterrâneos.
Voltei a despedir-me. E, apesar das numerosas ocupações de governo que o absorviam, a sensação que me transmitia o tom coloquial e amigo do seu discurso comigo, era que o tempo não contava, como se tudo estivesse por conta daquele encontro entre dois bragançanos, que há largos anos familiarizassem.
Esta espontaneidade, numa abertura de alma que nada trazia de estudado, mas que fluía tanquam amnis, sempre a considerei uma das constantes da sua vida social. Grandeza feita de naturalidade. E assim vinha à superfície, no decorrer do diálogo, a sólida sabedoria de quem estudara fundo os problemas, nos livros e no "saber de experiências feito", através do mundo e em especial do nosso Ultramar de então. Sem nunca pretender dar-nos lições, aprendíamos sempre a ouvi-lo.
Sabemos, desde os gregos de Sócrates, que o universal incarna sempre o particular, que, sem a seiva alentadora deste, não passa dum fantasma ou de "sonho duma sombra", para exprimir com um verso imortal de Píndaro. Assim com tudo e com todos. Daí que a visão ecuménica do Senhor Almirante, na política e na cultura, mergulhasse constantemente as raízes nos montados de Freixo, a cuja quinta, com a lâmina deslizante do Douro ao fundo, deliciava acolher-se, num repouso bem merecido do guerreiro de tantas batalhas pacíficas pela sua Pátria.
 Para de lá subir até aos largos da Vila, cavaquear com os amigos de sempre. Alargando o voo até Bragança, integrado na tertúlia do Abade de Baçal, cuja obra tanto patrocinou. Os companheiros de liceu afluíam logo. Esbatiam-se as distâncias. O Ministro ia-se embora, para ficar só o camarada dos bancos da mesma escola, repetindo sempre as mesmas pilhérias saborosas de mestres e contubernais, a levantar ainda a mão para a sombra extinta do velho Dr. Faria: "Alto aí, mestre. Atendo, mas não entendo."
As suas páginas mais belas que eu conheço pertencem justamente ao discurso que proferiu, no 1.° de Dezembro de 1953, quando, simples Capitão-de-Mar-e-Guerra, falou na sessão solene das comemorações do primeiro centenário do então Liceu de Emídio Garcia.
Toda a conferência merecia figurar numa antologia para a nossa juventude. Pela exemplaridade da sua nobreza. E até pelo recorte literário das suas linhas, agora que vai esquecido que a língua materna é também a nossa pátria, como lembra Fernando Pessoa, com todo o saber empírico das ciências sociais a falar por ele.
Começa por confessar que vinha de romagem ao santuário onde se guardam as mais belas e mais indeléveis recordações da minha mocidade. Tão belas e puras, tão imateriais e cristalinas, mas tão frágeis, que nunca mais as quis tocar, receando vê-las desfeitas e perdidas para sempre. Evoco-as nos dias serenos e momentos tranquilos, e elas desfilam perante os meus embaciados olhos, como nebulosa translúcida, onde avultam e apenas se desenham nítidos alguns oásis com saborosas cenas, doce amargor duma saudade.
De tudo, restam-lhe as lembranças dos bons amigos, das formosas ilusões, das aspirações indefinidas, dos primeiros triunfos. Amigos que, volvidos deze-144 nas de anos e sofridos os azares da vida, continuam sendo dos mais queridos; ilusões cujos restos de calor ainda hoje reanimam os nossos corações; aspirações que para alguns têm o travo da amargura; triunfos como outros não houve mais caros.
O ideal do 1.° de Dezembro, no amor idolatrado à Pátria, que incitou os restauradores, alentara, desde esses anos longínquos de Bragança, a vida grandiosa [...] que eu passei nessas vastidões ultramarinas, onde se caçam feras nas planícies infindáveis e nas florestas frondosas, onde se constroem cidades e se modelam espíritos.
O melhor auto-retrato de toda a sua vida surge precisamente nessas páginas vibrantes, quando confessa que as suas grandes paixões, nunca esmorecidas, cada vez mais intensas e absorventes, são depois da minha Pátria, a Armada, o Ultramar; a nossa terra transmontana, valores a que dediquei a minha vida, ideais que nunca sacrifiquei e sempre nortearam os meus passos.
Vê justamente na Armada a depositária ciosa das tradições e das glórias dos -descobrimentos; [...] e os seus navios [...] trazem consigo a própria alma da Pátria, são estrofes dos Lusíadas. A grandeza da Marinha e o reflexo da grandeza da Pátria.
Mas o freixenista universal que Sarmento Rodrigues sempre soube ser, tão exemplarmente, não esquece o seu terrunho nativo, esta faixa adusta de Trás-os-Montes, berço de santos e de mártires, de navegadores dos mais célebres, de poetas geniais, de guerreiros e heróis, de vice-reis e governadores, de sábios e de artistas, de missionários e pioneiros.
Alegra-me verificar que, neste renascer pelo culto dos valores perduráveis, se presta esta merecidíssima homenagem a um dos obreiros mais puros da nossa grandeza ultramarina, ainda hoje, a despeito de todas as loucuras, "pelo mundo em pedaços repartida". E tão viva, que, mesmo onde pretendem afogá-la em sangue, como em Timor-Leste, continua a falar português. Aqui fica, para depor no pedestal dessa homenagem, a pobreza das minhas palavras, pelo santo orgulho de um pouco me ter enriquecido com o seu convívio e a sua amizade. Tão pura, que chegou a idear para mim um alto posto na hierarquia de Moçambique. Excesso de generosidade sua, mas que, apesar da minha recusa, muito me comoveu.


In “Almirante Sarmento Rodrigues 1899-1979, Testemunhos e Inéditos”, pág. 142-145

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