UM FREIXENISTA UNIVERSAL
PADRE FRANCISCO VIDEIRA PIRES
Catedrático de Ciências Sociais
Foi sempre à
distância, fora do colóquio directo, que, no decorrer dos tempos, conheci o
Almirante Sarmento Rodrigues. Só em 1961
tive o
privilégio de o tratar directamente, apreciando-o com
alguma intimidade.
A pintura
modernista, ao ensinar-nos que uma discreta distância do quadro é o
segredo para captar e integrar o esplendor das suas cores, linhas e volumes, traz-me
sempre à mente o fino humor de Hegel, quando
lembrou que ninguém é
grande para o seu criado de quarto. Com efeito, a marca inconfundível da verdadeira grandeza moral reside na distinção da
simplicidade com que aparece diante de nós, sem precisar de ensaiar gestos nem
de compor antecipadamente as palavras com que nos fala.
Já lhe sabia do nome. E um pouco do brilho
singular da sua carreira de marinheiro e político.
Mas foi em Freixo, na sua própria terra,
que o
volume e os contornos da sua personalidade pela primeira vez começaram a definir-se, para mim. E pela voz de uma excelsa dama à antiga, digna de figurar na galeria das heróicas de Camilo ou de Agustina — a Senhora Dona Ernestina. Taborda.
A admiração dela pelo "Sarmento",
como sempre lhe chamava, na memória vivíssima dos tempos em que, rapazinho, frequentava as escolas da
linda vila manuelina, não tinha limites. Com ternura
lembrava que nunca ia a Freixo, que não lhe batesse à porta, para larga
cavaqueira de amigos que não se esquecem. Cá fora, nas velhas ruas enviesadas
ou nas pracetas ensolaradas, com os pequenos grupos de populares com que me ia
familiarizando, nas estadas que por lá tive, a admiração de todos era a mesma.
Admiração pelo brilho da sua inteligência, e também encanto, um imenso encanto,
pela naturalidade com que os ouvia. Como se nunca dali tivesse saído e
diariamente divagasse com eles pelo empedrado das suas calçadas, sentado até à
mesa do mesmo café. Este me parece o primeiro traço, primeiro e mais indelével,
do seu carácter, em tudo quanto esta grande palavra, de funda raiz helénica,
consigo transporta. Amava Freixo até à raiz da alma. E sobravam-lhe razões para
tanto, pois ela é não apenas a mais bela das nossas vilas, como até urna das
terras mais fascinantes do mapa continental.
Falava da sua
paisagem sem par, dos seus monumentos, do seu artesanato, da sua riqueza
agrária, da sua culinária, da maravilha única do seu porto, mais ainda da sua
gente, a quantos o contactavam, sempre que as nossas terras vinham à baila.
Creio não errar se disser que foi ele quem transformou a nossa vila na capital
incontestável dai amendoeira florida. Lembro sempre uma frase dele, que deveria
estar gravada em lápide, nalgum velho muro de' lá: O Algarve tem amendoeiras; só Freixo tem amendoais. Repito-a
sempre, ao jeito de estribilho duma canção familiar, sempre que, entre fins de
Fevereiro e primeiras semanas de Março, repito esse trajecto de deslumbramento,
que é subir de Barca de Alva até um ponto acima do casario urbano, depois de
nos debruçarmos sobre o Penedo Durão.
O tratamento
de privilégio que os Monumentos Nacionais deram ao centro histórico da terra a
ele se deveu. Do empedrado das ruas, ao arranjo das fachadas, com as suas
janelas e balcões renascentistas, a confluir na praça da matriz, a igreja
manuelina mais esbelta e opulenta, depois dos Jerónimos, com a esguia torre
sobranceira, a marcar o ritmo dos séculos que
por ela passaram, tudo o que ali se encontrava preservado, com saber e apuro,
julgo ser obra sua.
Nunca se
varrerá da lembrança a
primeira vez que lá fui pregar o tríduo para a festa de Ano Novo. Esperaram-me longe, na estação, agora erma, do caminho de ferro. O automóvel não dispunha
ainda de aquecimento. Quem pensava nesses requintes há quarenta anos? O
nevoeiro rondava os altos; e só ao acercar-nos do povoado, a vila surgiu,
iluminada e mágica, como num quadro de El Greco, estirada na encosta.
Mas o
deslumbramento maior veio depois, quando entrei na matriz. Era a primeira vez.
A luz indirecta coada dos capitéis, espraiando-se docemente pelo artesoado do
tecto, ao mesmo tempo que escorria, em penumbra imperceptível até ao chão
de bancos em que os fiéis ajoelhavam, invadiu-me tão
intensamente, que as minhas primeiras palavras, mal subido ao púlpito,
obra-prima dum jogo de harmonia entre a pedra lavrada e o lavor primoroso do
ferro forjado, vogaram à deriva da emoção que me possuía todo.
Intencionalmente
o recordo. É. que, em 1961, em meados do Verão, nos seis dias inolvidáveis que
passei em Lourenço Marques, pude lembrar esta minha primeira impressão de
Freixo ao Senhor Almirante. Em pleno Palácio da Ponta Vermelha, onde fui
visitá-lo.
E logo percebi que a minha emoção era também a dele, intensa e viva, como se os
dois estivéssemos lá, envoltos na penumbra mística do templo distante.
Então se
fortaleceu mais a admiração que de há muito eu nutria pela sua personalidade
riquíssima. E aí terá nascido a sua pelo nome pequeno. Guardo escritos seus,
que então me ofertou, com dedicatórias, que agora releio com saudade. E pena
também de não já podermos contá-lo, entre nós.
Longe levou,
por então, a sua generosidade, pois até quis presidir a uma das conferências
que proferi na cidade maravilhosa, dentro do Salão Nobre da Câmara Municipal, a
abarrotar de gente, que, por não caber toda no interior, inundou o átrio e a
escadaria de acesso. Foi a primeira vez que a minha figura surgiu na televisão,
para gáudio dos meus conterrâneos.
Voltei a
despedir-me. E, apesar das numerosas ocupações de governo que o absorviam, a
sensação que me transmitia o tom coloquial e amigo do seu discurso comigo, era
que o tempo não contava, como se tudo estivesse por conta daquele encontro
entre dois bragançanos, que há largos anos familiarizassem.
Esta
espontaneidade, numa abertura de alma que nada trazia de estudado, mas que
fluía tanquam amnis, sempre a
considerei uma das constantes da sua vida social. Grandeza feita de
naturalidade. E assim vinha à superfície, no decorrer do diálogo, a sólida
sabedoria de quem estudara fundo os problemas, nos livros e no "saber de experiências feito",
através do mundo e em especial do nosso Ultramar de então. Sem nunca pretender
dar-nos lições, aprendíamos sempre a ouvi-lo.
Sabemos, desde
os gregos de Sócrates, que o universal incarna sempre o particular, que, sem a
seiva alentadora deste, não passa dum fantasma ou de "sonho duma
sombra", para exprimir com um verso imortal de Píndaro. Assim com tudo e
com todos. Daí que a visão ecuménica do Senhor Almirante, na política e na
cultura, mergulhasse constantemente as raízes nos montados de Freixo, a cuja
quinta, com a lâmina deslizante do Douro ao fundo, deliciava acolher-se, num
repouso bem merecido do guerreiro de tantas batalhas pacíficas pela sua Pátria.
Para de lá subir até aos largos da Vila,
cavaquear com os amigos de sempre. Alargando o voo até Bragança, integrado na
tertúlia do Abade de Baçal, cuja obra tanto patrocinou. Os companheiros de
liceu afluíam logo. Esbatiam-se as distâncias. O Ministro ia-se embora, para
ficar só o camarada dos bancos da mesma escola, repetindo sempre as mesmas
pilhérias saborosas de mestres e contubernais, a levantar ainda a mão para a
sombra extinta do velho Dr. Faria: "Alto
aí, mestre. Atendo, mas não entendo."
As suas páginas mais belas que eu
conheço pertencem justamente ao discurso que proferiu, no 1.° de Dezembro de
1953, quando, simples Capitão-de-Mar-e-Guerra, falou na sessão solene das
comemorações do primeiro centenário do então Liceu de Emídio Garcia.
Toda a
conferência merecia figurar numa antologia para a nossa juventude. Pela
exemplaridade da sua nobreza. E até pelo recorte literário das suas linhas,
agora que vai esquecido que a língua materna é também a nossa pátria, como
lembra Fernando Pessoa, com todo o saber empírico das ciências sociais a falar
por ele.
Começa por
confessar que vinha de romagem ao
santuário onde se guardam as mais belas e mais indeléveis recordações da minha
mocidade. Tão belas e puras, tão imateriais e cristalinas, mas tão frágeis, que
nunca mais as quis tocar, receando vê-las desfeitas e perdidas para sempre.
Evoco-as nos dias serenos e momentos tranquilos, e elas desfilam perante os
meus embaciados olhos, como nebulosa translúcida, onde avultam e apenas se
desenham nítidos alguns oásis com saborosas cenas, doce amargor duma saudade.
De tudo,
restam-lhe as lembranças dos bons amigos,
das formosas ilusões, das aspirações indefinidas, dos primeiros triunfos.
Amigos que, volvidos deze-144 nas de anos e sofridos os azares da vida, continuam
sendo dos mais queridos; ilusões cujos restos de calor ainda hoje reanimam os
nossos corações; aspirações que para alguns têm o travo da amargura; triunfos
como outros não houve mais caros.
O ideal do 1.°
de Dezembro, no amor idolatrado à Pátria, que incitou os restauradores,
alentara, desde esses anos longínquos de Bragança, a vida grandiosa [...] que eu passei nessas vastidões ultramarinas,
onde se caçam feras nas planícies infindáveis e nas florestas frondosas, onde
se constroem cidades e se modelam espíritos.
O melhor
auto-retrato de toda a sua vida surge precisamente nessas páginas vibrantes,
quando confessa que as suas grandes
paixões, nunca esmorecidas, cada vez mais intensas e absorventes, são depois da
minha Pátria, a Armada, o Ultramar; a nossa terra transmontana, valores a que
dediquei a minha vida, ideais que nunca sacrifiquei e sempre nortearam os meus
passos.
Vê justamente
na Armada a depositária ciosa das
tradições e das glórias dos -descobrimentos; [...] e os seus navios [...]
trazem consigo a própria alma da Pátria, são estrofes dos Lusíadas. A grandeza da Marinha e o reflexo da grandeza
da Pátria.
Mas o
freixenista universal que Sarmento Rodrigues sempre soube ser, tão
exemplarmente, não esquece o seu terrunho nativo, esta faixa adusta de Trás-os-Montes,
berço de santos e de mártires, de
navegadores dos mais célebres, de poetas geniais, de guerreiros e heróis, de
vice-reis e governadores, de sábios e de artistas, de missionários e pioneiros.
Alegra-me
verificar que, neste renascer pelo culto dos valores perduráveis, se presta
esta merecidíssima homenagem a um dos obreiros mais puros da nossa grandeza
ultramarina, ainda hoje, a despeito de todas as loucuras, "pelo mundo em pedaços repartida". E
tão viva, que, mesmo onde pretendem afogá-la em sangue, como em Timor-Leste,
continua a falar português. Aqui fica, para depor no pedestal dessa homenagem,
a pobreza das minhas palavras, pelo santo orgulho de um pouco me ter
enriquecido com o seu convívio e a sua amizade. Tão pura, que chegou a idear
para mim um alto posto na hierarquia de Moçambique. Excesso de generosidade
sua, mas que, apesar da minha recusa, muito me comoveu.
In “Almirante Sarmento Rodrigues 1899-1979, Testemunhos e Inéditos”,
pág. 142-145
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