domingo, 12 de maio de 2013

"Farrapos de Memória" por Anna

Num destes dias, necessitando de aceder ao blogue num outro computador, fiz uma pesquisa no Google e, entre muitos “Farrapos de Memória”, surgiu um que me chamou a atenção pelo tipo de letra e o nome ser um título de um texto e não de um blogue (http://wwwdeprofundis.blogspot.pt/). Enviei então esta mensagem à autora:

Anna,
Procurando o meu blogue "FARRAPOS DE MEMÓRIA", apareceu o seu texto. Coisas que o google tece.
Gostei muito,é literatura a jorros,as comportas da alma estavam abertas.Posso reproduzir no meu blogue?
Obrigado
Leonel Brito

No dia seguinte, a autora respondeu-me:

Leonel,
Muito obrigada pela ternura das suas palavras... É um texto já com uns anos e lembro-me perfeitamente de o ter escrito... Na noite anterior, tinha sonhado com esse pintor, que vinha do passado mostrar-me que as coisas que guardamos no coração não morrem nunca... Escrevi-o com os olhos cheios de lágrimas e fico feliz por ter gostado dele!
Aceite-o como um presente, é seu, pode levar...
Deixo-lhe um beijo
Anna

O texto em questão é o seguinte:


Nas traseiras da casa da minha avó, a seguir ao quintal, havia uma série de casinhas pequeninas clandestinas a que chamavam ilha. Na última casa da ilha, morava um pintor. Ninguém sabia o seu nome, a sua idade, a sua proveniência... De estatura alta e evidente magreza, tinha o cabelo todo branco e um bigode amarelecido pelo tabaco. Vivia sozinho, não falava com ninguém e nós, as crianças, tínhamos dele um medo terrível... Ninguém se atrevia a dirigir-lhe a palavra e eu gostava de o espreitar pela janela escancarada, enquanto pintava. Com o queixo apoiado no peitoril de madeira corroída e em bicos dos pés, ficava a observá-lo, fascinada, pintando indiferente ao mundo, ao correr das horas, o cigarro eternamente pendurado nos lábios, arrastando as palavras lentamente numa melopeia estranha, incompreensível, quase inaudível. Hoje acho que ele sabia que eu ali estava mas a minha presença era para ele tão indiferente como a das dezenas de gatos vadios que encontravam guarida naquele ateliê inusitado. O universo era dentro dele. A vida acontecia num lugar a que só ele tinha acesso, onde não deixava entrar mais ninguém. Na ponta dos seus dedos, nasciam fantasticamente mares muito azuis, sóis alaranjados, ondas verdes e amarelas de uma praia que só ele via... De vez em quando assobiava... e era uma música alegre, sem escorrências de nostalgia, de saudade ou solidão alguma, uma música que estalava ao sol como fogo de artifício na pequena ilha... e eu ficava ali, seduzida pela estranha criatura, supostamente escondida na minha inocência infantil, a vê-lo criar mundos coloridos e fazer nascer sons que lhe ecoavam lá dentro...
Um dia as janelas da casinha não se abriram. Os vizinhos estranharam... Outro dia, mais outro... E depois o relato breve, feito sem pormenores pela minha avó: o pintor morrera, encontraram-no morto em casa, na sua solidão, no estranho mundo paralelo que habitara entre nós. Partira tão só como chegara...
Ninguém lhe sentiu a falta. Talvez só para mim, a ilha nunca mais foi a mesma, com as janelas da última casa encerradas para sempre, vedando-me o olhar aos quadros pintados grosseiramente, vozes e gritos de liberdade de um ser humano estranhamente só, que assobiava a felicidade em ondas de alegria pura e pintava o mar de um tom inesquecível.
Publicada por Anna 


7 comentários:

  1. Belo texto,ainda bem que não tinha o seu P.C.à mão.

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  2. Nas traseiras e na frente da casa havia outras casas e ao todo faziam a aldeia que, vista do céu, parecia uma ilha rodeada de verde pela primavera. Na última casa, um pintor. Ninguém sabia o seu nome, a sua idade, a sua proveniência. O seu escudo era outro. Bigode amarelecido pelo tabaco, vivia sozinho. Gostava de o espreitar pela janela escancarada enquanto pintava. Com o queixo apoiado no peitoril de madeira corroída e em bicos dos pés, ficava a observá-lo, fascinado, pintando indiferente ao mundo, ao correr das horas, eternamente, arrastando as palavras lentamente numa melopeia estranha, incompreensível, quase inaudível. Hoje acho que ele sabia que eu ali estava.
    O universo era dentro dele. A vida acontecia num lugar a que, ali, só ele tinha acesso. Na ponta dos seus dedos, nasciam fantasticamente mares muito azuis, sóis alaranjados, ondas verdes e amarelas de uma praia. De vez em quando assobiava sem solidão.
    Um dia as janelas da casinha não se abriram. Os vizinhos estranharam.
    As fazendas é fazendo-as, segundo Aquilino Ribeiro, autor de A Casa Grande de Romarigães. Aquela deveu muito à arte que, no recôndito, nela tinha espaço favorável para se firmar. Talvez por isso sejam as casas, mesmo em ruínas, povoadas não apenas por quem as habita mas também por quem as visita com a demora da solicitude.
    Parafraseando, sintetizando, modificando e cumprimentando Anna.

    Carlos Sambade

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  3. Fiquei sensibilizada com a partilha, pois é um lindo texto...!
    Um sonho de menina, adorei lelo uma linda história, a imaginação das crianças não tem limites...
    E acompanhando um dos símbolos de DALI, O estranho relógio!!!

    Saudações de Célia Sousa.

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  4. Luisa Fernandes escreveu:Li e adorei.... Abraço

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  5. Lindo texto Ana!Parabéns!
    Mande mais para nos deliciar...Um abraço.

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  6. Lelo,
    É com profunda comoção que releio o meu, agora seu, texto.
    Obrigada por ter gostado dele; obrigada pela generosidade da partilha :)

    Deixo-lhe um beijo

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  7. Um texto onde cabem a estranheza, o medo infantil do que é estranho, o encantamento, o espanto, a beleza das cores, o mar , o sol, a alegria de um assobio ... em suma: onde cabem e convivem a vida e a morte. Através dos olhos de uma criança.
    Obrigada à autora pela partilha. Obrigada ao Lelo por tê-lo postado.

    Abraço
    Júlia Ribeiro

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