Num destes dias, necessitando
de aceder ao blogue num outro computador, fiz uma pesquisa no Google e, entre
muitos “Farrapos de Memória”, surgiu um que me chamou a atenção pelo tipo de
letra e o nome ser um título de um texto e não de um blogue (http://wwwdeprofundis.blogspot.pt/). Enviei
então esta mensagem à autora:
Anna,
Procurando o meu blogue
"FARRAPOS DE MEMÓRIA", apareceu o seu texto. Coisas que o google
tece.
Gostei muito,é literatura a
jorros,as comportas da alma estavam abertas.Posso reproduzir no meu blogue?
Obrigado
Leonel Brito
No dia seguinte, a autora
respondeu-me:
Leonel,
Muito obrigada pela ternura
das suas palavras... É um texto já com uns anos e lembro-me perfeitamente de o
ter escrito... Na noite anterior, tinha sonhado com esse pintor, que vinha do
passado mostrar-me que as coisas que guardamos no coração não morrem nunca...
Escrevi-o com os olhos cheios de lágrimas e fico feliz por ter gostado dele!
Aceite-o como um presente, é
seu, pode levar...
Deixo-lhe um beijo
Anna
O texto em questão é o
seguinte:
Nas traseiras da casa da
minha avó, a seguir ao quintal, havia uma série de casinhas pequeninas
clandestinas a que chamavam ilha. Na última casa da ilha, morava um pintor.
Ninguém sabia o seu nome, a sua idade, a sua proveniência... De estatura alta e
evidente magreza, tinha o cabelo todo branco e um bigode amarelecido pelo
tabaco. Vivia sozinho, não falava com ninguém e nós, as crianças, tínhamos dele
um medo terrível... Ninguém se atrevia a dirigir-lhe a palavra e eu gostava de
o espreitar pela janela escancarada, enquanto pintava. Com o queixo apoiado no
peitoril de madeira corroída e em bicos dos pés, ficava a observá-lo,
fascinada, pintando indiferente ao mundo, ao correr das horas, o cigarro
eternamente pendurado nos lábios, arrastando as palavras lentamente numa
melopeia estranha, incompreensível, quase inaudível. Hoje acho que ele sabia
que eu ali estava mas a minha presença era para ele tão indiferente como a das
dezenas de gatos vadios que encontravam guarida naquele ateliê inusitado. O
universo era dentro dele. A vida acontecia num lugar a que só ele tinha acesso,
onde não deixava entrar mais ninguém. Na ponta dos seus dedos, nasciam
fantasticamente mares muito azuis, sóis alaranjados, ondas verdes e amarelas de
uma praia que só ele via... De vez em quando assobiava... e era uma música
alegre, sem escorrências de nostalgia, de saudade ou solidão alguma, uma música
que estalava ao sol como fogo de artifício na pequena ilha... e eu ficava ali,
seduzida pela estranha criatura, supostamente escondida na minha inocência
infantil, a vê-lo criar mundos coloridos e fazer nascer sons que lhe ecoavam lá
dentro...
Um dia as janelas da casinha
não se abriram. Os vizinhos estranharam... Outro dia, mais outro... E depois o
relato breve, feito sem pormenores pela minha avó: o pintor morrera,
encontraram-no morto em casa, na sua solidão, no estranho mundo paralelo que
habitara entre nós. Partira tão só como chegara...
Ninguém lhe sentiu a falta.
Talvez só para mim, a ilha nunca mais foi a mesma, com as janelas da última
casa encerradas para sempre, vedando-me o olhar aos quadros pintados
grosseiramente, vozes e gritos de liberdade de um ser humano estranhamente só,
que assobiava a felicidade em ondas de alegria pura e pintava o mar de um tom
inesquecível.
Publicada por Anna
Belo texto,ainda bem que não tinha o seu P.C.à mão.
ResponderEliminarNas traseiras e na frente da casa havia outras casas e ao todo faziam a aldeia que, vista do céu, parecia uma ilha rodeada de verde pela primavera. Na última casa, um pintor. Ninguém sabia o seu nome, a sua idade, a sua proveniência. O seu escudo era outro. Bigode amarelecido pelo tabaco, vivia sozinho. Gostava de o espreitar pela janela escancarada enquanto pintava. Com o queixo apoiado no peitoril de madeira corroída e em bicos dos pés, ficava a observá-lo, fascinado, pintando indiferente ao mundo, ao correr das horas, eternamente, arrastando as palavras lentamente numa melopeia estranha, incompreensível, quase inaudível. Hoje acho que ele sabia que eu ali estava.
ResponderEliminarO universo era dentro dele. A vida acontecia num lugar a que, ali, só ele tinha acesso. Na ponta dos seus dedos, nasciam fantasticamente mares muito azuis, sóis alaranjados, ondas verdes e amarelas de uma praia. De vez em quando assobiava sem solidão.
Um dia as janelas da casinha não se abriram. Os vizinhos estranharam.
As fazendas é fazendo-as, segundo Aquilino Ribeiro, autor de A Casa Grande de Romarigães. Aquela deveu muito à arte que, no recôndito, nela tinha espaço favorável para se firmar. Talvez por isso sejam as casas, mesmo em ruínas, povoadas não apenas por quem as habita mas também por quem as visita com a demora da solicitude.
Parafraseando, sintetizando, modificando e cumprimentando Anna.
Carlos Sambade
Fiquei sensibilizada com a partilha, pois é um lindo texto...!
Um sonho de menina, adorei lelo uma linda história, a imaginação das crianças não tem limites...
E acompanhando um dos símbolos de DALI, O estranho relógio!!!
Saudações de Célia Sousa.
Luisa Fernandes escreveu:Li e adorei.... Abraço
ResponderEliminarLindo texto Ana!Parabéns!
ResponderEliminarMande mais para nos deliciar...Um abraço.
Lelo,
ResponderEliminarÉ com profunda comoção que releio o meu, agora seu, texto.
Obrigada por ter gostado dele; obrigada pela generosidade da partilha :)
Deixo-lhe um beijo
Um texto onde cabem a estranheza, o medo infantil do que é estranho, o encantamento, o espanto, a beleza das cores, o mar , o sol, a alegria de um assobio ... em suma: onde cabem e convivem a vida e a morte. Através dos olhos de uma criança.
ResponderEliminarObrigada à autora pela partilha. Obrigada ao Lelo por tê-lo postado.
Abraço
Júlia Ribeiro