A
primeira obra publicada pelo escritor António Sá Gué foi “As duas Faces da Moeda” e
pode ser encarada, de certa maneira, como a carta de apresentação do autor ao
sues leitores, apesar de o escritor não se dirigir a eles, de forma explícita,
como é prática corrente nas obras subsequentes.
O
romance recupera dois temas que marcaram, de forma significativa, a vida do país
e, em especial, a vida dos transmontanos. Num primeiro momento, o leitor vê-se
confrontado com o ciclo da emigração clandestina para a Europa, ocorrida nos
anos 60 do século passado, onde muitos transmontanos, para fugir à fome, à
miséria e à pobreza da terra, empreenderam uma viagem, que foi uma autêntica odisseia,
quando a travessia das fronteiras se fazia a pé, pela calada da noite, muitas
vezes perdidos, orientando-se apenas pela sua vontade de triunfar na vida.
O
segundo, mas não menos importante, refere-se à Guerra Colonial que assolou
Portugal na década de sessenta do século XX. Para se cumprir a ordem de Salazar,
“Para Angola e em força” muitos
jovens, corroborando as palavras de Pessoa, perderam a vida, muitas noivas
ficaram por casar e muitas mães jamais abraçaram os seus filhos. Cabe à
personagem “Gaio” estabelecer a ligação entre as duas temáticas. Emigrante
inadaptado acaba por regressar, comprar umas ovelhas e viver feliz, entre os
montes e o céu, numa vida simples de pastor. Todavia, este sossego foi curto, uma
vez que se viu obrigado a ir para a Guerra Colonial da qual regressará com muitas
cicatrizes físicas e o cansaço da alma que o hão de atormentar o resto da vida.
O
livro “Contos dos Montes Ermos” é constituído
por onze contos. O leitor confronta-se com breves narrativas, que são significativos
quadros da vida do Nordeste Trasmontano, mais especificamente, da região de
Torre de Moncorvo terra natal do autor, que o leitor transmontano ainda
reconhece pelas vivências da infância.
Não querendo ser exaustivo, chamo a
vossa atenção para dois contos: “O eucalipto” e o “Colégio”. O primeiro relata
a desilusão de um proprietário rural que entristecia com a indiferença que os
dois filhos, em especial o varão, dedicavam às propriedades do pai. Assim, ao
agricultor não restou outra alternativa a não ser ceder as terras para florestar.
O
segundo dá-nos contra da transformação que a escola pode fazer na vida de uma
pessoa, representada na narrativa pela personagem Toino Silvestre. É certo que
o Toino começa por não valorizar a escola, pois, como era mais consentâneo com
a sua idade, preferia a brincadeira e o desinteresse pelo saber, mas com o
decorrer dos tempos começou a ganhar gosto pela leitura e pelas aulas e passou
a ser um leitor compulsivo e, como é óbvio, a ser bom aluno. Claro que, no
início, foi criticado e censurado pelos que se diziam seus amigos e colegas.
Mas foi forte e não valorizou as críticas destrutivas, continuando o seu
estudo. Como resultado, o Toino Silvestre ficou preparado para a vida encarando-a
sem grandes dificuldades.
No ano de 2008 publica a obra “Fantasmas
de uma revolução” em que nos dá a sua visão do PREC, um período, cheio
de contradições e acontecimentos marcantes. Nesse tempo as palavras cortavam
como facas e a canção era uma inquietante e irónica arma de revolta, como já o
tinha sido na fase final da ditadura salazarista. Na obra, o autor ficciona
este momento conturbado da história do país e recorda, com nostalgia, mais uma
oportunidade perdida, personificada pelo personagem central do romance.
Seguindo
a ordem de publicação encontramos, em 2009, a obra “Na Intuição do Tempo”
título significativo a todos os níveis. Desde logo, somos confrontados com o
pensamento do autor, mediado pelas diversas personagens, sobre os acontecimentos
e as ideias que enformaram o século XX. Convém salientar que as personagens são
passageiros de um comboio que, durante a viagem, vão interagindo. Esta locomotiva
representa, por vezes, o País, outras a Europa e, ainda, a Humanidade que
caminha descontrolada em direção ao abismo. A obra é um hino à força de vontade,
ao querer, ou nas palavras do autor ao “FAZER É PRECISO” que tudo transforma e
acaba por transformar o ser humano. E diga-se, em abono da verdade, que é para
isso que autor escreve, isto é, para auxiliar a autognose do Homem. A obra
termina com a crença nas potencialidades do ser humano, muitas vezes apelidado,
ironicamente, de “homo pouco sapiens”, ao qual está reservada uma vida plena de
sentido se o mesmo tiver a coragem, a ousadia e a sabedoria de “fazer é
preciso” continuamente.
No ano de 2010 o autor publica o livro
“Ultreia! Caminho Sem Bermas” que é o resultado da sua peregrinação pelo “Caminho
Francês” de Santiago de Compostela. É significativa a epígrafe inicial do livro,
retirada de Arquimedes, “Deem-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei
o mundo”. Esta frase remete para a força de vontade e a persistência do ser
humano que tudo vence pela ousadia e pelo querer. É de salientar que este ambicionar
já está patente na obra anterior.
Nesta
obra são narradas duas ações, ou melhor dois caminhos, um físico que relata as
dificuldades exteriores do caminhante e outro simbólico ou interior que
transforma o ser humano por dentro em busca da vida e do seu significado,
sempre num constante e permanente aperfeiçoamento do ser humano.
Outra
particularidade deste livro prende-se com o facto de o mesmo se organizar em
sumários o que nos remete para o universo escolar onde o professor, na obra
representado pela personagem Daniel, um artífice de consciências, apresenta a
intenção, o propósito, o sumário, ou seja, o caminho a percorrer nessa
aula/etapa.
A
obra “Fermento de Liberdade” aparece em 2011. Este é um livro que
inflete, de certa forma, o percurso que o autor vinha trilhando, uma vez que é
mais referencial e denotativo do que os anteriores. Nele o autor apresenta-nos
a sua “Visão” do Estado Novo, pela mão de três personagens transmontanas: Zé
Bernardo, O Coronel Fontelo e a sua filha Marília. Esta consegue “abrir” os
olhos do pai para as injustiças e crueldades do regime e levá-lo a entrar pela
porta da democracia que já se adivinhava. A obra apresenta duas partes e está
estruturada em 25 capítulos, tendo o último o título sugestivo de “Liberdade”. Esta
liberdade pode, segundo creio, ser o prémio e a recompensa dos resistentes pela
luta abnegada que travaram para implementar a democracia em Portugal. Julgo,
ainda, ser pertinente assinalar que a obra apresenta dois paratextos, um
prefácio e um posfácio, que auxiliam a leitura e compreensão do livro.
Em 2012 dá à estampa a obra “Quadros
da Transmontaneidade” com a qual, o autor, regressa ao Nordeste
Transmontano e mais precisamente ao seu concelho, Torre de Moncorvo. Estou em
crer que esta obra é como que o regresso às origens, às frangas e à terra de
onde foi arrancado, pelas demandas da profissão, sempre em busca de um outro
ser, ou melhor, de uma outra maneira de encarar o Ser, que tinha ficado adormecido
no livro “Contos dos Montes Ermos”. A obra pode ler-se como um documento
etnográfico, uma vez que os quadros que apresenta nos ajudam a conhecer a
cultura e os hábitos das gentes de Torre de Moncorvo. No entanto, também ressoam
nas suas páginas a grandeza e a mesquinhez humanas, e, ainda, os
ressentimentos, as canseiras, os tédios e as angústias que alimentam o homem. Por
fim, menciono o valor documental das fotografias que, para além de valorizarem
a obra, nos ajudam a compreender a realidade narrada.
O livro “O Manco Entre Deus e o Diabo” vê a
luz em 2013 e é prefaciado pelo escritor transmontano Ernesto Rodrigues, que o
apelida de romance alegórico. Este romance, em meu juízo, apresenta pontos de
contacto com o livro “Ultreia! Caminho Sem Bermas”, uma vez que o Manco procura
a sua unidade, enquanto ser humano, na dura realidade da vida, buscando-se
entre o seu mundo interior e exterior. A ação do romance situa-se nos finais do
século XIX, mais precisamente no ano de 1881 e o espaço físico privilegiado é,
de novo, Trás-os-Montes. Nesta obra, o autor inicia um estilo novo que
aprofundará na próxima. A nova técnica consiste num permanente diálogo entre
prosa e poesia que concorrem para o mesmo fim e prendem o leitor ao texto.
O
último livro de António Sá Gué foi publicado em 2014 e apresenta o
significativo título de “Em Busca do Ser”. Trata-se de um
romance polifónico, onde são audíveis três vozes que dialogam entre si com o
mesmo propósito, conhecer o mistério da vida e do homem.
O
autor, também, foi feliz na associação/alternância que fez entre prosa e poesia,
pois ambas laboram para o entendimento do Ser, propósito último desta e de
todas as obras do autor. Os poemas são todos intitulados e o texto narrativo,
apenas, está subordinado ao título inicial “A Prometeu”. Este primeiro segmento
narrativo, para além de ser uma espécie de dedicatória, pode também funcionar
como um manifesto de vida, ou uma carta de intenções do narrador/autor, que
como temos vindo a dilucidar passa por levar o outro, isto é, o leitor à
reflexão e à ação para que transformando-se ajude a transformar o mundo.
A
escrita do autor é cativante e dinâmica, notando-se um progressivo apuramento de
obra para obra o que confirma as suas potencialidades de artífice da palavra,
tanto poética como narrativa.
Por
último, refiro que o livro está eivado de muitas referências literárias, que
funcionam, de certa forma, como argumentos de autoridade. Nota-se, também, uma
constante preocupação do autor em confrontar o leitor com as ideias e os pensamentos
dos grandes escritores, o que enriquece o texto e permite ao leitor fazer várias
inferências que o auxiliam a responder a estas duas questões, imortalizadas na
letra de José Niza, na música de José Calvário e na Voz de Paulo de Carvalho,
“Quis saber quem sou” e “O que faço aqui”, do conhecido tema, “E depois do
adeus”.
Face
ao exposto, posso concluir que toda a atividade e produção literária de António
Sá Gué tenta dar resposta e estas duas questões e levar o leitor a
responde-lhes, também.
Agrupamento
de Escolas de Alfândega da Fé, 18 de março de 2015
Norberto Veiga
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