Toda a gente em Moncorvo sabia que o meu pai nunca teve um carro novo, digamos um carro comprado no stand, em primeira mão e em primeiro pé. Mas o que ninguém sabia é que também nunca tinha tirado férias.
Um dia, em Agosto de 1953, tinha eu feito o exame de 5º Ano, combinou com a minha irmã e comigo tirar uns dias de férias. Precisava só de fazer uma boa revisão ao carro. Três dias na oficina, dois empregados do Sr. Moreira (aprendizes de mecânica) e o meu pai deixaram o carro impecável, considerando a vetusta idade do bólide. Era um Ford Prefect, preto, de calça-arregaçada, que ainda fazia lembrar os citro-arrastadeiras.
Uma de nós poderia levar uma amiga consigo. Nesse ano coube à minha irmã, que era mais velha. Convidou a Maria José Simões, filha do Dr. Simões. A Zé tinha um amigo indiano em casa a passar férias e não o poderia deixar. Fomos todos. O nosso pai revelou-nos então o itenerário: iríamos até ao Minho, sua terra. Daríamos uma volta e acabaríamos as férias nas festas da Sra. da Agonia, em Viana. Assim fizémos. No primeiro dia ficámos em Viana, para o pai deixar dois presuntos a dois amigos, colegas de escola primária, que já não via há mais de vinte anos: o João Meira, dono da pensão onde ficaríamos alojados e a Zefa Carqueja, dona do restaurante onde comeríamos.Todo o passeio correu lindamente . Dormíamos num anexo da pensão Meira, que ainda andava em obras. Era um espaço enorme destinado a ser dividido em vários quartos . Pendurados de uma corda, esticada de parede a parede, havia vários lençóis que separavam a zona feminina da zona masculina. As anedotas e risadas duravam até às desoras. Percorremos o Minho de ponta a ponta mas, à noite, vinhamos sempre aterrar no nosso poiso.
Depois das festas da Agonia, vieram as despedidas. Ao final da tarde, comemos uma bucha à Zefa Carqueja, e preparámo-nos para regressar a Trás-os-Montes. A amiga Zefa ofereceu ao meu pai dois garrafões de vinho verde. “Vem mais amiúde, se não a gente nem se conhece”. “Tá bem, adeus , até pró ano” . O amigo Meira também lhe deu dois garrafões de um vinho verde que ambos tinham achado excelente. “Gostei de te ver. Volta mais vezes”. “Tá bem, Amigo. Até pró ano. Saúde”. E lá começámos a viagem de regresso.O primeiro tema da conversa foi o carro e como ele se portara bem. Eram só elogios e gabanços : “ Formidável! O gajo portou-se aqui que nem um Mercedes” . “Uma beleza, não deu problema nenhun ” . “ Ouçam o que eu vos digo: este tipo vai durar uns anos largos”. Cantámos umas cantiguinhas e eu adormeci. Acordei quando o carro parou e, apesar de estremunhada, vi que estávamos parados no meio da estrada e que saía fumo debaixo do capot. O meu pai saiu, saímos todos . Tentou abrir o capot, mas estava a escaldar. O moço indiano perguntou : “O que será? ” “Radiador roto”, respondeu o meu pai. “A estrada está cheia de buracos e pedras. Ali mais atrás, senti uma pedra bater no radiador, mas não pensei que tivesse causado dano” . “Então, temos de ir ver onde há água e ir-lha deitando”, alvitrou a minha irmã. “Esperai. Tive uma ideia” . O meu pai foi à mala do carro e veio de lá com um garrafão de vinho verde que despejou quase todo no radiador. “Será que vai trabalhar?”, perguntou a Zé Simões. O carro pegou e vai de rodar todo contente. Um pouco adiante vimos a placa que dizia Murça. “Já não falta muito. Vai aguentar”. Mas não aguentou muito. Aí por alturas de Vila Flor o tipo já tinha bebido dois garrafões. O meu pai começou a ficar muito calado. “Está preocupado, Sr. Barros?” “E é caso para menos? O gajo já me bebeu dois garrafões de vinho”. Todos rimos, mas mais uns quilómetros andados e foi preciso o terceiro garrafão.
Talvez já perto da Junqueira, não sei que estrada o meu pai tomou e fomos dar a uma eira. Estavam lá homens a dormir. Levantaram-se assarapantados, piscos com os faróis do automóvel, sem perceber o que se passava. O meu pai espreitou pela janela, um dos homens chegou junto dele e perguntou : “Como é que o senhor veio aqui parar?” e, ao mesmo tempo, outro homem gritava : “Fujam, que o carro está a deitar fumo” . O meu pai saiu e disse: “ Calma! O safado quer é beber” . Foi à bagageira , tirou o último garrafão de vinho verde, abriu o capot, desrrolhou o garrafão, bebeu um golo e disse : “Ah, ladrão, bem podes animar-te, que são os últimos cinco litros que bebes” e enquanto despejava o garrafão de vinho no radiador, explicou : “Com este, são 20 litros de vinho que o gajo bebe”. Os malhadores riam tanto, mas tanto, que nós rimos também às gargalhadas. Um deles conseguiu parar de rir para dizer : “O carago do carro veio aqui parar, porque traz uma grande borratcheira”. “Temos de ir. Boa noite, fiquem bem”. “Boa noite, boa viagem”. Chegámos a casa, mas sem um pingo de vinho verde.
Leiria 14 de Setº de 2011
Júlia Ribeiro
Ora esta, já me parti a rir.
ResponderEliminarFartei-mr de rir. Conte mais do seu pai, ouço dizer que dele há muitas cenas engraçadas.
ResponderEliminarJulinha, tudo isto em livro para o Natal, sem falta.
ResponderEliminarMaria do Carmo
Estou bêbeda de riso.
ResponderEliminarObrigada.E aquele abraço.
Uma moncorvense
Antero Neto Lopes disse:Fantástico! Mais uma bela história da Júlia Ribeiro.
ResponderEliminarVítor Santos disse :
ResponderEliminarÉ a 2ª ou 3ª vez que por aqui passo. Estou encantado com estes Farrapos. Estou numa de riso despregado, como já há muito tempo não me acontecia. A minha mulher está a fazer-me sinal que lhe doi a barriga de tanto rir.
Também queremos 5 livros no Natal.
Só uma palavra: Fantástico!
ResponderEliminarNuno
Finalmente entendi para que serve o vinho verde.
ResponderEliminarUm amigo meu chama-lhe o champanhe dos pobres ou a gasosa vaidosa.
Comecei bem o dia. Ri com gosto e não é fácil rir logo pela manhã. O conto é uma maravilha e o vinho verde também. A Pensão Meira em Vila-Praia de Âncora - agora Hotel Meira - ainda existe e é propriedade do Quim Barreiros. O restaurante da Zefa Carqueja também existe e é uma neta quem o explora. Excelente em marisco, passe a publicidade.
ResponderEliminarUma Minhota.
Era o vinho, meu Deus, era o vinho
ResponderEliminarEra a coisa q'eu mais adorava....
Vitor Santos
Lembrei-me doutra:
ResponderEliminarBinho berde, binho berde
criado nas berdes latas
a uns fazes errar as portas
a outros andar de gatas.
Alguns carros erram o caminho.
Bitor Santos
Obrigada a todos os que visitam o Blog e tornam estas páginas mais animadas.
ResponderEliminarUm abraço
Júlia
Olá, Julinha!
ResponderEliminarEu a ler e a saborear a graça deste conto. É sempre um prazer a sua escrita.
Deixo aqui a sugestão, é sempre bom lembrar, que também tenho alguns textos neste blogue,sobre Trás-os-Montes, em tempos que já lá vão.
Como me foi prometido, se me quiserem incluir nessa publicação, para mim seria muito gratificante.Aqui no blogue, estão alguns; o administrador do blogue tem outros; e escrever para mim, é um prazer; sobre a minha gente, muito mais.Deixo aqui, eu, a autora Arinda Andrés, a sugestão, a quem de direito.
Com muita amizade, sempre, um abraço para todos,
Tininha
Espectacular, menina Júlia..! As suas historias são maravilhosas. Imagino a festa que fizeram..ao seu pai nao se lhe metia nada para a frente..os PAIS são uns heróis..
ResponderEliminarOlá Julinha!
ResponderEliminarJá me ri com o seu carro "ecológico"!
Por acaso era verde,agora a Menina imagine que era maduro e do Douro...
Que "pena" eu tenho no dia em que o Sr.Lelo encerrar o bogue!
Beijinhos para todos e um especial para a nossa querida Julinha.
Ireninha
OLá, Ireninha, agradecida pelas suas palavras, pelos beijinhos e, sobretudo, pela Amizade que retribuo.
ResponderEliminarAbração
Júlia
Olá, Tininha:
ResponderEliminarEssa coisa de falar em editar livros é muito linda. São palavras bonitas e belas intenções. Mas editar mesmo, é outra conversa. É que editar um livro não sai barato e ninguém se oferece para o patrocinar. Eu estou à espera há três ou quatro anos que uma Câmara pague os 800 euros que prometeu pagar à minha Editora ou terei de pagar eu essa quantia, porque já sinto vergonha.
Tenho um livro de contos pronto há cerca de dois anos, mas ninguém para o apoiar.
Bom, Tininha, não quero tirar-lhe as esperanças.
Um abraço muito grande e muito amigo
Júlia
Olá Julinha:
ResponderEliminarObrigada pela prontidão da sua resposta.
Mas que era bonito, era!
Mesmo assim, continua o meu apelo, já que, sendo, também, filha de Moncorvo, contar com esse apoio, a alguém que se inicia nestas lides, é expectável.
Nunca fui uma escolhida da sorte, ou de reconhecimento, mas ainda continuo à espera.Obrigada, julinha.
Com muita amizade.Ainda hei-de conhecê-la.Se não, que fiz eu do tempo?!
Um beijinho para a Julinha da sua amiga,
Tininha
Olá meus amigos blogueiros!
ResponderEliminarE os que ainda não o são, que passem a sê-lo.
Pois bem, a palavra encerrar anda-me aqui a zumbir.
Eu não acredito, então digam-me lá como é que eu vou falar da amizade que se vê, que se sente, dos meus amigos, vizinhos, a minha família do larga Fonte Nova?Como é que eu hei-de recordar a crancice dos que partiram par fora do seu país e desses verdadeiros heróis, que ainda não foram homenageados?! E quero ainda lembrar todos, todos os artesãos da minha terra.Eu quero ainda falar de um pastor com os olhos da cor dos campos e que fazia de um qualquer pedacinho de madeira, sonhos para todos. Eu quero falar da minha terra.Urros, Terra de rebanhos de azeite, mel e amêndoas. Urros, terra de tecedeiras. Pois então, meus amigos, toca a partilhar e todos, vamos levar, sempre, este blogue por esse mundo fora. Eu quero continuar a falar da minha gente!De tempos muito duros, mas de tanta amizade.Um abraço, para todos,
Tininha
Avó Julinha o seu carro gostava de vinho?O do pai e o da mãe só gostam
ResponderEliminarde gasolina.beijinhos do Luís
Olá, Luis:
ResponderEliminarO vinho não era para o depósito da gasolina. Era para o radiador que se tinha rompido num pedregulho da estrada.
Mas nessa noite o malandro do carro embebedou-se a sério.
Beijinhos
Avó Júlia.