Enquanto leio Documentos Medievais da Torre de Moncorvo de Assunção Carqueja, passam na televisão, na RTP, canal de serviço público, as marchas populares das freguesias de Lisboa, cheias de cor, lantejoulas, saias de balão aramadas, artifícios e jóias falsas,pechisbeques, como se fossem o retrato de um país de ficção que é o nosso país real .Chegara a Lisboa, ainda não fazia um dia, vindo do Nordeste Transmontano, onde comecei a regressar ( a expressão não é porventura feliz e pode ser objecto de análise linguística e acto falhado). Andante , regressei carregado de memórias e sons, sem saudades, mas com um desejo, por certo desajustado, de ajustar contas comigo mesmo e com a minha geografia original.
Diz-se, ou houve alguém que escreveu, nunca de deve regressar ao sítio onde se foi feliz. Não é o meu caso. Em questões de felicidade ( não de instantes tão intensos que perduram como eternidades), estamos conversados. De menino e moço me fui da casa dos meus pais, transgredindo o género de Bernardim Ribeiro. E regressei à aldeia onde apenas reconheço humanas ruínas em permanente solilóquio, como fantasmas que sobreviveram ao meu passado. Mas encontro como em Lisboa ou qualquer outro sítio, a liturgia do poder, mais canhestro,menos sofisticado, mas tão eficaz, salvas as proporções geográficas, económicas e os seus agentes. E ao reflectir na premonição do deserto, abordo-me das experiências do sofrimento. E às vezes a experiência não é boa conselheira. Conheço pessoas na minha aldeia que têm saudades do tempo em que sofriam.
Que regresso?!Lembro-me do olmo que já foi cortado, do som rascante dos pardais, do tronco do ferrador, dos suaves e tépidos crepúsculos de Setembro, da eira onde descansavam os olhos numa serenidade que nos reconciliava com a dia a dia feito de escassez e ausências.
Chego à aldeia e recordo os que já partiram ou os que ainda não chegaram, ressequida a carne e torturado o corpo noutras bandas.
Desço a estrada de montanha até ao Pocinho. Lavo os olhos na ternura agreste da paisagem que me puxa para geografias da infância onde a vista é como se fora um gravador de rotações rápidas ou um filme em movimento descontrolado.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas aqueles montes permanecem imutáveis, apenas mais povoados de vinhas que escondem o xisto e vestem a nudez de fantasia.
Sigo para as Cabanas de Baixo à procura do restaurante d Carromão, um abrigo hospitaleiro e,por vezes, imprebisível, onde como peixe do rio com migas de mílharas (ovas no português corrente e normalizado). Tenho saudades ( não gosto da palavra, tenho antes memória) do que, sendo simples, satisfaz tanto os sentidos.
Atravessei a pequena ponte, um pontão propriamente dito, que me conduz até à Foz e daqui às Cabanas, lugar de terra e gente que se debruça sobre o Sabor, onde ao luar de fim de Primavera, em noite de rumores, o barbo e a boga se oferecem à imolação.
Sinto-me entre aromas fortes, simples e ancestrais, como se estivesse no Gambrinus, na Tia Matilde ou no Solar dos Presuntos.
Sinto que só quando regressar de novo e de novo bater à porta ( sempre aberta…) do Carromão, é que conseguirei repetir os sabores e sentir uma plenitude, quase infantil, eu sei, de prazer e convívio com os meus amigos, aqueles que perduram e cultivo para lá da distância e das inquietações.
Cada um de nós tem a sua geografia sentimental que se manifesta de diversas formas, mas cada um de nós não esquece os tempos em que ainda não havia tempo de lembrar, nem a partilha com os amigos daquilo em que se transformou, naquilo em que o mundo, o nosso mundo foi transformado e nos transformou.
Com vossa licença, prometo reincidir.
Pedro Castelhano
Primeira fotografia:Peredo dos Castelhanos;segunda fotografia: fragas de Urros e Peredo sobre o Douro;terceira fotografia:vista geral da Foz do Sabor.
Publicado em 10/12/10
Bem-vindo a bordo!
ResponderEliminarProsa poética do Rogério. A um admirador, perdoa-se a indiscrição. Aparece pr aqui mais vezes. Um abraço.
ResponderEliminarMuito bem escrito este texto! parabéns Pedro Castelhano, por nos dar boleia neste nostálgico passeio descendo as encostas até ao Pocinho pela estrada antiga, beijar o Douro e dar um abraço ao Sabor na Foz e ala.... até ás Cabanas. Tmb gostei do adjectivo; «imprebisível» do Carromão sem pechisbeques! faça o favor de reincidir.
ResponderEliminarOlá, Rogério. Belo texto, carregado de autenticidade. Um texto do género daqueles que me fazem ver que há uma literatura trasmontana. Da liturgia do poder, carrego a minha experiência. Júlio Andrade.
ResponderEliminarDizem que o Peredo é maior por dentro do que por fora. Só agora percebi o que queriam dizer.
ResponderEliminarDepois das migas e do tinto/branco da Quinta da Palmeira,olhar para a serra e ver Moncorvo lá longe, não há socrateiros nem crises...
ResponderEliminarO texto (gostei muito) vem assinado por Pedro Castelhano e nos comentários saúdam Rogério(Rodrigues?).É a mesma pessoa?
ResponderEliminarAcabei de ler ,respirei fundo e voltei ao principio, li, reli , de cada vez que o lia, lia-o pela primeira vez. Meti-me no carro e fui ao Peredo, senti-me turista numa catedral, eu que já tinha ido tantas vezes .Vi a casa da foto, ruínas, casas grandes fechadas e dois velhos ao sol. Abro o portátil e volto ao blog. Releio os textos do padre Narciso e da família de Urros; fome ,miséria, mortes, doenças ,filhos sem conta,monarquia,república Ásia ,América…não consigo acompanhar.Dickens, jonh Steinbeck Kasan ,Naipaul,não ajudam ,estou só ,nú,tapo-me com estes farrapos,entro no carro com portátil no lugar do morto, abro ,ouço a canção do José Mário Branco ,Viúva de Emigrante enquanto desço ao Douro.A fotografia foi tirada da nova ponte do Pocinho,falta a do alto das fragas.IP2 ,Foz ,Cabanas, corromão .Não há migas .Comi peixe frito e bebi Cistus, tinto. Regressei à vila pela estrada antiga, obras ,obras ,tractores amarelos ,camiões , a ponte e a quinta da Laranjeira a aguardar que sejam engolidas. Colinas de socalcos ,novas vinhas mini barragens, casas em construção ,tractores agrícolas e ventoinhas gigantes no roboredo. A praça estava vazia, escondida ,num canto junto ao viaduto, uma nova pastelaria, livros espalhados pelas mesas e de uma qualidade que mexeu comigo. Esta é a minha terra. mudam-se os tempos muda-se a paisagem que nos rodeia, mas não se muda a necessidade de partir e a vontade de voltar. Tomo um café e volto ao texto de Pedro Castelhano.” Com vossa licença, prometo reincidir”.Será amanhã?
ResponderEliminarM.C.
Aí vai o c.v. do Rogério.Quanto ao Pedro Castelhano, o melhor é perguntar-lhe(ao Rogério)
ResponderEliminarRogério Rodrigues
-Jornalista, natural de Peredo dos Castelhanos, concelho de Torre de Moncorvo.
-Foi professor do Ensino Secundário, jornalista no Diário de Lisboa, O Jornal, a revista Sábado( Ia série), o Público (grande repórter desde a sua fundação), a Visão ( de que foi fundador), pertenceu ao Gabinete dos Projectos Especiais da LUSA, esteve na fundação do semanário O Ribatejo,fundou e dirigiu o semanário GrandAmadora.
Ganhou o prémio de poesia António Botto, com o original Nome Nomeio Está antologiado na Poesia70 (Editorial Inova).
-Publicou o "Livro de Visita(poemas), "História da Educação em Portugal" (editorial Vega), "A Outra Face da Morte" (ficção), organizou e prefaciou "Vida e Mortes de Faustino Cavaco".
-Ganhou em 1984 o primeiro Prémio de Reportagem, instituído pela Associação 25 de Abril para o melhor trabalho sobre "Abril: 10 anos depois".
-Começou a trabalhar para a televisão em 1976.
-É autor dos textos de "Colónias e Vilões", "Gente-do Norte", prémio Internacional da Crítica no Festival da Figueira dà Foz, "Encomendação das Almas", filmado em Freixo de Espada à Cinta e em Urros (Torre de
Moncorvo)
-Escreveu para a série de televisão "Escritores da Província", o documentário "Guerra Junqueiro"
-Foi o autor da primeira série televisiva do "Homem e a Cidade"
Escreveu, de parceria com Afonso Praça, "Portugal de Faca e Garfo" (também para a televisão)
Foi autor de três filmes sobre Macau, um dos quais transmitido nos "Sinais dos Tempos" (RTP2), grande reportagem de 50 minutos com o título "Macau, 40 anos depois".
-Adaptou para a televisão o romance de Camilo,"A Queda de Um Anjo"eml2episódiosde50 minutos.
-Escreveu para a RTP2 as biografias políticas, de 50 minutos cada uma, de Salazar, Marcelo Caetano, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral.
-Foi consultor dos programas televisivos "Portugalmente" e "Loja do Cidadão".
-Colaborou com uma crónica diária, durante mais de um ano, no RádioClube Português.
-Foi director-adjunto de "A Capital".
-Colaborou ainda no Jornal de Letras, no Jornal de Notícias (onde durante dois anos teve uma crónica semanal, na edição de Lisboa), no Jornal do Fundão, no Bisnau, no Jornal de Educação, no Fiel Inimigo, na Máxima, na Península (revista de Barcelona, com um texto sobre a Linha do Douro), no Expresso, no Ribatejo, na Voz do Nordeste, entre outros.
Só agora tive possibilidade de aceder ao Blog.
ResponderEliminarEste texto do Rogério é um espanto ! A certa altura quase me deixava sem fôlego : faltava-me a pedalada para o seguir no percurso.
Uma maravilha !
Abraço
Júlia
Sempre que leio os pensamentos escritos do Rogério, revejo-o,nos anos do reboliço democrático com aspirações a mudanças nas contra -curvas do nosso ( e dele ) destino propulsionador de mudar circunstâncias maiores que nós.
ResponderEliminarReleio, nos sulcos da memoria,com outra face da morte,aquela reportagem " Requiem por um alferes miliciano",que foi e continua a ser sangue do seu sangue,amaciados ma mesma placenta.Através dele recordo,seu irmão a ser enterrado, ao som de tiros fardados e magoadores de inocentes debruçados ,em parapeito granítico e de atalaia, sobre sagrado chão que rememora lágrimas e aflições de mães naquele cemitério de Moncorvo...
Reproduzindo,com muitas imperfeições do nosso magro engenho e conhecimento: " e pelas curvas da estrada ,por alturas do Marão,o corpo de seu irmão era velado pela companhia de uma floresta de periscas e de um solitário garrafão...
E da sua força de vontade se respiga a persistência rija,mais dura que xistos pisados nos sulcos das curvas da vida e de outras que revoltam o estômago a necessitar de ser almofado pelos cheiros de alecrim e de laranjeira,sobranceiras aquelas pedras que tão macias alimentam nectares de passar para a outra margem em " Barca Velha",capaz de dar um soco de alegria e de afastamento aos taninos do Cistus.
E a persistência foi de tal ordem que, telegraficamente, se conta num ápice o que lhe demorou o bornal de dias que o ano tem. Sim foram 365 vezes,sucessivas,curiosas e metódicas aquelas que telefonou para uma antifascista exilada,renascida para a sua cidadania, e da qual foi o primeiro a conseguir entrevista saciadora de ventos de Leste..È obra! E conseguiu, porfiadamente,que a entrevistada cedesse ao fim de 365 solicitações.
Revejo-o,algumas vezes no Noitibó,com as barbas que ainda hoje são seu talismã e personalidade idiossincrática na companhia de voz pausada e de fumos fartos se despedir e dizer: ainda tenho que ler hoje umas boas trezentas páginas e depois escrever sobre amêndoas e suas mães floridas e símbolo de Moncorvo pascal. Outras falas se questionam,indagando memórias e alunos amigos: então tens visto O Cristino? E o Camilo como anda? Preocupações amigas e autênticas. Recordo -o,experiente em coberturas jornalísticas e eleitorais, assessorado pela objectiva do Inácio Ludgero,sinalizando a próxima fotografia a registar dedo apontador do Salgado Zenha ao seu nariz salgado e candidato a Belém,quando um miúdo,na sua inocência politica, interrompia discurso na Casa do Campino.. Recordo outros títulos " A culpa foi do morto e uma outra , cortante e premonitória,como que dizendo para Soares Carneiro em elevador de Viseu: O General não tem futuro e.. que o Rógério, irmão do Pedro Castelhano,não saia de onde nunca saiu,ainda que tenha corrido e escrito sobre vidas que nunca deixará morrer.