Chamava-se Noitibó |
Mal cheguei à terra, o olhar cheio de urzes e estevas floridas, de maias e giestas pujantes e flocos de sabugueiro, a primeira notícia que me deram soou a raios, trovões e águas turvas na memória: "Sabes?, o Manel morreu".
Não ouvi o dobrar dos sinos do alto da torre por este meu amigo, um quasimodo franzino, com um curto respirar de pássaro.
"De que morreu?"
A resposta é vaga, não sabem por inteiro.
"Talvez dos pulmões". O corpo deformado, a corcunda, iam-no asfixiando aos bocadinhos. É o que se diz sem nenhum rigor científico, apenas com alguma fatalidade poética.
Há muitos anos entrei, já a noite ia longa, num bar, o primeiro que abrira na terra. Chamava-se o Noitibó.
A um canto, numa espécie de aquário de vidro, um dj frágil, como um peixe triste, ia servindo música. Com o seu olhar, como que entendia as necessidades de momento de cada cliente. Era sábio na sua administração.Conheci então o Manel.
Nas noites seguintes quando o bar fechava e no cheiro intenso a fumo flutuava uma suave melancolia, eu, o patrão e o Manel tomávamos a última bebida.
Num gesto de ternura escondida, colocava o último lp, expressamente para mim, da Maria Bethânia a cantar, num álbum de parceria com Caetano Veloso, o "Leãozinho", o "Meu primeiro amor" e o "Adeus, meu tempo de chorar".
Saíamos para a madrugada, havia silêncio na rua íngreme, da Cal se chama, e só muito ao longe se ouvia o ladrar de algum cão.Era um tempo sereno e medido.
O Manel não conheceu a paixão e eram ignorados os seus subterrâneos de afecto.
Mas um sonho houve que o acompanhou durante longos anos: cursar engenharia.
Depois de muitas e inúmeras noites de dj num aquário de sons, num bar de rua estreita, conseguiu matricular-se em engenharia.Terminava este ano o curso.
Faltavam poucos meses para realizar o sonho, o único que tinha de seu, além da casa herdada dos pais.Era a família que lhe custeava os estudos.
Só agora soube que o Manel, o meu amigo quasimodo franzino, se chamava Manuel Mota e já tinha 43 anos.Nunca o vi sem gravata e duas mangas. Receava o vento e algum resfriado.
O funeral passou ao lado do jardim. Mas no jardim já não havia amoras negras.
Ontem à noite regressei ao Noitibó. O aquário já desapareceu. Estava o patrão, completamente sozinho. A um canto do balcão, velhos lp's amontoados. Comecei a procurar a Maria Bethânia. O patrão pôs o álbum no gira-discos e serviu três bebidas, para nós e para o ausente.A lágrima furtiva não se percebeu na penumbra do bar.
Porra, o Manel morreu.
Rogério Rodrigues.
Reedição de posts desde o início do blogue
Publicado a 19/01/2011
Que a "pena" que escreveu estas palavras afague o calor do coração que as sentiu durante muitos anos. Consegui através delas viver todos os momentos descritos. Obrigado.
ResponderEliminarPaz à sua alma. O Manel será sempre o DJ da Noitibó!
Não conheci o Manel. Ia escrever : Lamento não ter conhecido o Manel. Mas não há como o desabafo do Rogério:
ResponderEliminarPorra, não conheci o Manel.
Júlia
uma descrição fidelíssima dum rapaz que sabia cultivar a amizade sem truques. A pequena e aconchegante Noitibó teve grande sucesso, graças ao bom desempenho do Manel e do Aires. Que o Rogério continue a patilhar a sua bela prosa neste blog de memórias.
ResponderEliminarEste texto devia ser escrito numa lápide de marmore e colocado na sua campa.
ResponderEliminarParece um templo da Igreja Universal do Reino de Deus.
ResponderEliminarJorge Campos Macedo:
ResponderEliminarViva Lelo ,
Ontem após ter lido o post de Moncorvo lembrei- me de um outro Manel .
Este Manel , era uma pobre e desgraçada alma que se perdia no vinho normalmente na Tasca por Baixo da Casa do Adriano Fernandes e vivia , por caridade do meu Avô Julio Manuel Macedo num pequeno casebre na nossa antiga vinha colada á estação dos caminhos de ferro de Moncorvo . De certeza que este pobre homem ha muito que ja faleceu , mas , sera que sabe ? sera k existe alguma foto ? sobre " o Manel ? Este Manel ? Não sei se é do sei tempo mas figura mais impar na vila , não haveria de certeza , ainda mais k sempre k podia e não podia estaria sempre bêbado.
SULTÃO DO SWING
ResponderEliminarSe possível que alguém publique uma foto do Manel; não me lembro dele!
Já vão longe as noite do Noitibó - que estava para ter o nome de Colmeia - do Sr Campos do Passarinho . . .
O alinhamento da música na noite de inauguração foi feita pelo Manuel Sangra, que foi o DJ, com a minha colaboração.
Decidimos que a música inaugural seria "Sultans of swing" dos Dire Straits. E foi.
Peço ao próximo DJ que seja ouvida numa noite em memória do Manel. Afinal ele foi um sultão do swing!
F. Garcia
Mirandela
Frequentei durante alguns anos a Noitibó. O Manel, que cheguei a conhecer era de facto uma pessoa franzina, recatada e de bom trato. Conhecedor da boa música, fazia a vontade às pessoas quando alguém lhe pedia uma música. Como alguém disse num destes comentários, há pessoas que acabam por passar ao lado e nem sequer os conhecemos em condições e por isso aqui presto homenagem aos que já partiram e devo dizer-vos que conheci alguns dos mais emblemáticos. Ao Manel, um muito obrigado.
ResponderEliminar