sábado, 15 de fevereiro de 2014

LINHA DO SABOR - Flores amarelas para o comboio

 Do Pocinho a Duas Igrejas é um longo estirão (105 quilómetros, segundo contas oficiais) que o pobre comboio ofegante da linha do Sabor parecia estender ainda mais, nos seus solavancos de velho cansado que teimava em resistir contra o tempo impiedoso.Até Moncorvo — menos de uma dezena de quilómetros, sempre a subir — dava a sensação de que lhe saíam das entranhas os últimos restos dos pulmões gastos, embrulhados em fumo negro, sufocante. Mas o comboio avançava imponente apesar de tudo, trôpego e pesadão, sempre muito pouca-terra, pouca-terra, atravessando as terras que se estendem do vale do Douro ao planalto mirandês.
Muita gente achava graça, pensava que comboios assim só antigamente ou nos museus e nos filmes americanos, sobretudo aqueles que já tinham corrido mundo e davam prosápia de viajantes achavam que aquilo era o máximo, digno de ser preservado como uma anta ou uma pintura rupestre. Pois bem: aquele comboio era mesmo de antigamente, contavam por lá que foi recebido à pedrada como se fosse obra do diabo, há quem diga que a linha ficou quilómetros afastada de algumas povoações em consequência das hostilidades feitas aos engenheiros que a traçaram, recebidos com manifestações de varapau e foices roçadoiras, talvez com a ameaça de uma escopeta de carregar pela boca mais asada para caçar lebres ou perdizes no Reboredo ou em Vale de Ladrões. Mas isto são vozes do povo, transmitidas de pais a filhos, vá lá agora saber-se até que ponto correspondem à verdade.

Afonso Praça
In “ Um Momento de Ternura e Nada Mais”.
Há dez anos que faleceu o Afonso.Em sua homenagem,o blogue vai publicar, durante este ano, textos seus e de outros autores sobre ele.

 Fotografias,de cima para baixo: entre o Larinho e Moncorvo;
entre o Carvalhal e o Felgar ; saída da estação de Moncorvo ;Ponte do Pocinho (2009),
Publicado em 19/02/2011

4 comentários:

  1. Vilarandelo Umdiaumaimagem: belas imagens de um passado que poderia ter tido um outro futuro!

    ResponderEliminar
  2. " Um momento de Ternura e nada mais " foi-me oferecido pelo autor e, depois de lido, não posso deixar de dizer que, na altura, pensei que o titulo era mais do que apropriado aos contos que com ternura o Afonso Praça nos legou.

    Agora, que passaram 10 anos da sua morte, não vou dizer nada de novo sobre o Afonso Praça,que não tenha já sido dito, digo só que, para mim, era um Homem bom e um bom Homem.

    Recordo tb., com ternura, que no próprio dia do seu funeral a 3/5/2001, um nosso amigo comum me ofereceu um escrito dele, para mim então inédito,intitulado : carta multada para a aldeia, publicado em 1966 numa edição do clube trasmontano, e que eu li à distancia de TMC para Lisboa, com o coração apertado, com melancolia, com...ternura.

    Adorei a descrição que ele aí fazia da nossa aldeia, o Felgar da sua juventude e adolescência.

    De vez em quando leio e torno a ler essa crónica e vejo o quanto actualizada ela está e o quanto era elevada a ternura do meu amigo Afonso Praça.

    Max

    ResponderEliminar
  3. Amigo Max,
    Envie s.f.f., para o blogue, essa carta do Afonso, para ser partilhada por todos.

    ResponderEliminar
  4. Um texto com corpo e alma! Todos estamos a ver "o pobre combóio ofegante ... "

    Júlia

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.