domingo, 16 de fevereiro de 2014

O FAVAS , por Arinda Andrés


URROS
De cigarro colado à passividade do tempo e dos dias, e casaco de pana, trazido à socapa de Espanha pelo Roco, esperto como um furão e leve como o vento, eram assim os almocreves, o Alberto era um sujeito seco e magro, sustentado numas pernas altas e em grossas botas de pneu, feitas em dias de chuva no Ti João Quim. Do alto da cabeça, as frases saíam curtas e bem ajustadas ao tempo e às situações. O boné, sempre de lado, ardilosamente colocado, assim em jeito de marotice, meticulosamente, inclinava-se sempre para a esquerda, ensombrando uns olhos apertados na estreiteza de dias rotineiros e na exiguidade de escassos recursos. Sem papas na língua, estava sempre pronto a ajuizar, ironicamente, claro está, sobre a timidez ou a falta de destreza de alguém que se expusesse ao seu ar zombeteiro, mangador, como lá se dizia de alguém que fosse trocista, provocando a chacota; estava sempre bem-disposto e de cabeça aliviada de canseiras ou preocupações; uma cara seca, magra, numa expressão escondida num rosto comprido e nariz afiado, imiscuía-se,  religiosamente,  num halo de mistério, do qual faziam parte  o boné e  o  cigarro colado , dependurado dos lábios e enrolado ,em tardes soalheiras , gozando o prazer do tempo de o fazer e de o saborear, sentindo o gosto dos dias calmos e tranquilos que a lavoura entrega, em troca de  sacríficios árduos e pesados do dia a dia; até o assobio era parte integrante do corpo, pensamentos e sentimentos; maquinalmente, aquele corpo estreito e ágil inclinava-se sobre os molhos de palha, húmida, a cheirar ao amadurecimento da vida do campo, passava-a, como num golpe de magia entre os dedos, mesmo aquele sobreposto, sempre em cima do outro,  e, rapidamente, das suas mãos saía um laço! Um laço bem feito, um laço de palha com enormes pontas a que se dava o nome de” binceilho”. Servia o dito cujo para atar os molhos de trigo, cevada ou centeio. E com aquele dedo sobreposto, como consequência de um acidente de trabalho, sem direito a qualquer tipo de compensação por tal situação funesta, o Favas, de nariz afiado, em sublime harmonia com as coisas, olhando de lado, perscrutando, aplainava a madeira, burilava-a, limava-a de excessos e de imperfeições ,e das suas mãos a matéria redescobria novas formas; e assim, aquela figura seca, magra e ágil , lentamente, ia crescendo na minha curiosidade infantil. Teria trinta, quarenta ou cinquenta anos; não sei. Tinha a idade do tempo das coisas que fazia e dizia. Para mim não tinha idade; e no trabalho, não tinha peso nos pés nem novelos debaixo dos braços. Galhofeiro por natureza, ninguém ficava impune à sua crítica acusatória e afiada. 

 Mas esta bazófia sumia-se quando se dirigia, carinhosamente e quase respeitosamente à mulher; e numa tarde em que apareceu lá em casa, um pouco mais tarde do que lhe era habitual, a minha avó olhou-o de alto a baixo, como à espera de resposta, embora o silêncio, seja, por vezes, mais rico do que as palavras. Estava encostado à ombreira da porta e, arrastando -se de mãos nos bolsos, até ao escano, que em tempos bem distantes foi árvore, castanheiro, depois tronco e, finalmente ramos de seiva ,manipulada, vergada e dobrada à força do carpinteiro, à plaina, cega e firme,  que lhe conferiu outras formas, outros destinos, o Favas baixou os olhos até ao chão da cozinha, «A Lucinda não está boa. Até os rapazes, ninguém dormiu esta noite. Amanhã vamos a ver …» Quanta ternura ao falar da sua Lucinda, a patroa, como ele gostava de esclarecer. Eu, na pequenez da minha infância, ficava enternecida, mas tranquila. Afinal, a mulher do Alberto, do Favas, como, amistosamente, era conhecido na aldeia, merecia toda a consideração; era uma santa, como a minha avó dizia e depois, ela também era diferente; sabia cozinhar, quase tão bem como a minha avó. E não havia matança ou cegadas em que a Lucinda se afastasse dos tachos e das panelas, deixando escorrer o suor pelo rosto, a pingar amor e trabalho, numa expressão de bondade e de tranquilidade, como uma vida de paz e de verdade, pinta os dias dos justos e dos trabalhadores, em tempos de felicidade fácil e conformista.   Viviam numa casa simples, não muito grande, mas que eu tanto desejava! E os meus olhos olhavam aquela casa tão demoradamente, que ainda hoje me lembro da toalha, aos quadrados, verdes, vermelhos e brancos, de estopa, feita no tear, que cobria uma mesinha, à entrada da porta; das pequenas escadas de xisto, que subiam até ao balcão, ladeado por uma varandinha de madeira, e,« Aquela sim! aquela varandinha de madeira, avó, é tão bonita! Foi o Favas que a fez?» Claro, tinha que ser, só ele, que era diferente de tantos outros; só ele é que era assim amigo da Lucinda, e tinha dois filhos; um deles o Acúrcio, que  fazia gaitas do caule do trigo, ainda verde, e assobiava  com um assobio feito de um pedaço de telha.
E depois de tudo isto, ainda tinha uma cunhada, a Maria José, alta, muito magra e com uma grande saia rodada, até aos pés; que estava sempre a proteger-me de tudo e que eu achava que, por ser tão boa, tinha que ser, também, irmã do Alberto, e da Lucinda, claro!
Mas o tempo passou e com ele a aldeia também desapareceu. Onde estão as varandas , os balcões, os poiais da minha infância, objectos de tantos desejos, que ainda hoje , guardo, carinhosamente no meu coração: de bolas de sertã e de azeite a fervilhar, aquecendo o frio de mau ano e de ruins colheitas, numa sertã grande como a alma das searas de trigo, e cheia de sonhos e de esperança, de salas de amêndoas, almudes de azeite e lagares de uvas; de trabalhos do campo: lavrar, arar, cavar, semear; de arroz doce e aletria, de coscorões e de burzigada, como só nesse tempo se faziam. Tempo cheio de gente, de trabalhos e de esperança.  Tempo que ficou para trás, sob a forma de passado, escondido pela cumplicidade do futuro.
E quando o Alberto dizia orgulhosamente que os seus filhos tinham partido para Lisboa, para serem alguém na vida; que estavam muito bem; que eram grandes patrões, eu sentia uma enorme tristeza e não compreendia como tudo tinha que ser assim.
Onde estão aquelas pessoas, aquelas pedras, aqueles muros, aquelas ruas cheias de gente?
Hoje é o nada das coisas.
Tininha de Urros
Publicado em 16/02/12

17 comentários:

  1. Olá meus amigos!
    As palavras, mal passam para o papel, pertencem a outro domínio, que não o da realidade.
    Este texto é, apenas, uma pequenina homenagem a um mundo que teima em desaparecer, é pena!Há aqui muito carinho, muita amizade às pessoas que nele gravitam. O Favas é apenas um de muitos desses nossos vizinhos e amigos de quem guardamos a memoria.Obrigada.

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  2. Nota-se,Tininha, o seu carinho por todas as figuras que descreve nos seus textos.Este Favas está "desenhado " na perfeição.A minuciosa descrição do seu amigo revela,da sua parte,mestria neste domínio.Também bela homenagem a esse seu mundo desaparecido.Parabéns!

    Uma moncorvense

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  3. Olá minha querida e boa amiga!
    O que eu noto e gosto muito, é a sua generosidade e, acima de tudo, a sua amizade! E, SOBRETUDO essa, é que eu prezo e me sabe muito bem!
    Muitos beijinhos, com amizade, Tininha

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  4. Ola meus amigos!
    É verdade, não havia nada, nem matança nem segada, onde a gente de Urros, não se desfizesse em vontades e canseiras de farta e generosa mesa, para vizinhos, amigos e parentes! E que saudades todos nós guardamos desses tempos!Tempos difíceis, muito duros, é certo, mas de muita amizade e partilha!
    Em nom desse tempo, um abraço, muito amigo, para todos vós!
    Tininha, de Urros

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  5. Olá, Tininha.

    Chego tarde como o tempo... Terei desculpa? Braço e mão esquerdos não operacionais ; na mão direita, só o mindinho tem sensibilidade...
    Mas lamentar não adianta e o mindinho vai fazendo alguma coisa.

    Gostei muito do Favas.É uma figura bem caracterizada e muito bem marcada. Vá escrevendo textos destes. Fazem-nos bem a todos.

    Abração
    Júlia

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  6. Olá Tininha
    Que belo e justo tributo em jeito de homenagem estás a fazer ao Sr. Alberto "Favas", com as palavras apropriadas a retratar a personalidade e a época. As palavras sentidas que utilizas no texto, com uma carga de carinho e ternura pelos referenciados e suas tarefas, retratam tão bem esse tempo distante. A mulher de hoje continua com as suas imagens e coração de menina.
    Que a bondade e o amor que sentes pela tua terra e suas gentes, sejam distribuidos em doses suficientes para moldar os corações mais endurecidos.
    Um abraço
    Manuel Sengo

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  7. Olá Tininha!
    Chegaste e encantaste!Bonito muito bonito!
    O sr. Alberto "Favas" que ainda recordo.Vivia mesmo ao lado da sra. Filomena amiga da minha avó.Não tenho memória da sua" Lucinda"senhora referenciada no teu fantástico conto/homenagem.Lembro-me que casou em segundas núpcias com a sra. Céu que ,certamente,lhe guardou um cantinho lá no céu ,já que partiu na frente dele.
    Com um beijo de parabéns ,não só por este teu conto,mas por todos os que já li e nunca me canso de reler.Ireninha

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  8. Olá Tininha!
    Quero pedir desculpa por só hoje te falar mas o neto ...isto de ser avó é muito lindo mas tem os seus "QUêS"...
    Gostei muito da ternura do sr.Alberto pela sua Lucinda.
    Beijinhos
    Ireninha

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  9. Olá minha querida amiga, Julinha!
    Quisera ver apenas o lado positivo do seu comentário, que muito prezo, sempre!Todavia a saúde, por vezes, insiste em roubar-nos a fibra e energia do aço que a moldou (à minha querda amiga); portanto, minha querida Julinha, e porque essa preciosa fibra já nos vai escasseando, vamos lá, por favor, continuar a dar-nos, a todos, essa coragem e frontalidade que afasta todo e qualquer descuido da saúde!
    Até parece...eu a dizer isto! Comigo o Inverno também é muito cruel e o meu amigo computador, ainda que muito me distraia, também me castiga bastante!Do fundo do coração, espero que supere, o mais rápido possível, toda e qualquer maleita, por mais ousada que seja.

    As suas melhoras, minha boa amiga!

    Beijinhos,
    Tininha

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  10. Olá Ireninha!
    Obrigada pelo teu comentário e, sobretudo, pela tua memória!
    Sabes, é mais uma nesguinha desse tempo que permanece em jeito de grata recordação.
    Beijinhos,
    Tininha

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  11. Olá Manuel!
    Que os teus desejos se concretizem! Obrigada pelas vossas palavras, de generosidade e apreço.
    E os textos, Manuel?! Vamos lá, divulga, também, a tua escrita! Fico à espera.Pelo que me é dado observar, são de qualidade com certeza. Desculpa se estou a insistir.
    Abraços para todos os teus,
    TININHA

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  12. olá Tininha, os teus textos são fabulosos,retratam com muita clareza e ternura as personagens que outrora fizeram parte do nosso dia a dia.É bom recordar...Continua a presentear-nos com as tuas vivências de infância.Elas têm o poder de nos remeter para o passado que todos recordamos com saudades e teimamos em não esquecer.Bjis para ti e para todos que como nós têm Urros no coração.Letinha

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  13. Olá Letinha!
    Obrigada pelo teu comentário!
    Estou muito feliz por te encontrar por estes sítios.Bela surpresa!
    Quero sublinhar que o que mais me apraz é a tua presença!
    A Rua Grande vai dando ares da sua graça!E não importa a pretexto de
    quê.
    Obrigada meus amigos e vizinhos. Beijinhos,
    Tininha

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  14. Olá Létinha!

    Finalmente apareceu!Nós os de Urros embora longe temos sempre a nossa terra no coração...
    Beijinhos da sua vizinha
    Irenina

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  15. Olá Tininha!
    Desculpa o meu atrevimento mas fiquei muito feliz por ver (finalmente) um comentário da nossa querida Létinha.
    Beijinhos da tua amiga
    Ireninha

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  16. Olá minha querida!
    Hoje andamos todos muito ocupados, ainda bem que é assim!E depois, minha amiga, nesse campo, eu e tu estamos aqui mais próximas do nosso torrão, não é?

    Olha, fico à espera do teu texto!

    Beijinhos, com amizade, para todos!
    Tininha

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  17. Após ter descoberto as poesias e prosas de pessoas que me são tão queridas sempre que posso dou uma espreitadela...A vossa escrita tem a magia de fortalecer a alma aos transmontanos dos anos 60!Parabéns continuem!Comentei alguns dos vossos textos mas secalhar tardiamente... não tive feedback. Sou fã da vossa escrita. Parabéns e um xi coração a ambas!Saudações a todos os nossos amigos.Letinha

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