URROS |
De cigarro colado à passividade do
tempo e dos dias, e casaco de pana, trazido à socapa de Espanha pelo Roco, esperto
como um furão e leve como o vento, eram assim os almocreves, o Alberto era um
sujeito seco e magro, sustentado numas pernas altas e em grossas botas de pneu,
feitas em dias de chuva no Ti João Quim. Do alto da cabeça, as frases saíam
curtas e bem ajustadas ao tempo e às situações. O boné, sempre de lado, ardilosamente
colocado, assim em jeito de marotice, meticulosamente, inclinava-se sempre para
a esquerda, ensombrando uns olhos apertados na estreiteza de dias rotineiros e
na exiguidade de escassos recursos. Sem papas na língua, estava sempre pronto a
ajuizar, ironicamente, claro está, sobre a timidez ou a falta de destreza de
alguém que se expusesse ao seu ar zombeteiro, mangador, como lá se dizia de
alguém que fosse trocista, provocando a chacota; estava sempre bem-disposto e
de cabeça aliviada de canseiras ou preocupações; uma cara seca, magra, numa
expressão escondida num rosto comprido e nariz afiado, imiscuía-se, religiosamente, num halo de mistério, do qual faziam parte o boné e o cigarro
colado , dependurado dos lábios e enrolado ,em tardes soalheiras , gozando o prazer
do tempo de o fazer e de o saborear, sentindo o gosto dos dias calmos e
tranquilos que a lavoura entrega, em troca de sacríficios árduos e pesados do dia a dia; até
o assobio era parte integrante do corpo, pensamentos e sentimentos; maquinalmente,
aquele corpo estreito e ágil inclinava-se sobre os molhos de palha, húmida, a
cheirar ao amadurecimento da vida do campo, passava-a, como num golpe de magia
entre os dedos, mesmo aquele sobreposto, sempre em cima do outro, e, rapidamente, das suas mãos saía um laço! Um
laço bem feito, um laço de palha com enormes pontas a que se dava o nome de” binceilho”. Servia o dito cujo para atar
os molhos de trigo, cevada ou centeio. E com aquele dedo sobreposto, como
consequência de um acidente de trabalho, sem direito a qualquer tipo de
compensação por tal situação funesta, o Favas, de nariz afiado, em sublime
harmonia com as coisas, olhando de lado, perscrutando, aplainava a madeira,
burilava-a, limava-a de excessos e de imperfeições ,e das suas mãos a matéria
redescobria novas formas; e assim, aquela figura seca, magra e ágil ,
lentamente, ia crescendo na minha curiosidade infantil. Teria trinta, quarenta
ou cinquenta anos; não sei. Tinha a idade do tempo das coisas que fazia e
dizia. Para mim não tinha idade; e no trabalho, não tinha peso nos pés nem novelos
debaixo dos braços. Galhofeiro por natureza, ninguém ficava impune à sua
crítica acusatória e afiada.
Mas esta bazófia
sumia-se quando se dirigia, carinhosamente e quase respeitosamente à mulher; e
numa tarde em que apareceu lá em casa, um pouco mais tarde do que lhe era
habitual, a minha avó olhou-o de alto a baixo, como à espera de resposta,
embora o silêncio, seja, por vezes, mais rico do que as palavras. Estava
encostado à ombreira da porta e, arrastando -se de mãos nos bolsos, até ao
escano, que em tempos bem distantes foi árvore, castanheiro, depois tronco e,
finalmente ramos de seiva ,manipulada, vergada e dobrada à força do
carpinteiro, à plaina, cega e firme, que
lhe conferiu outras formas, outros destinos, o Favas baixou os olhos até ao
chão da cozinha, «A Lucinda não está boa. Até os rapazes, ninguém dormiu esta
noite. Amanhã vamos a ver …» Quanta ternura ao falar da sua Lucinda, a patroa,
como ele gostava de esclarecer. Eu, na pequenez da minha infância, ficava
enternecida, mas tranquila. Afinal, a mulher do Alberto, do Favas, como,
amistosamente, era conhecido na aldeia, merecia toda a consideração; era uma
santa, como a minha avó dizia e depois, ela também era diferente; sabia
cozinhar, quase tão bem como a minha avó. E não havia matança ou cegadas em que
a Lucinda se afastasse dos tachos e das panelas, deixando escorrer o suor pelo
rosto, a pingar amor e trabalho, numa expressão de bondade e de tranquilidade,
como uma vida de paz e de verdade, pinta os dias dos justos e dos
trabalhadores, em tempos de felicidade fácil e conformista. Viviam numa casa simples, não muito grande,
mas que eu tanto desejava! E os meus olhos olhavam aquela casa tão
demoradamente, que ainda hoje me lembro da toalha, aos quadrados, verdes,
vermelhos e brancos, de estopa, feita no tear, que cobria uma mesinha, à
entrada da porta; das pequenas escadas de xisto, que subiam até ao balcão,
ladeado por uma varandinha de madeira, e,« Aquela sim! aquela varandinha de
madeira, avó, é tão bonita! Foi o Favas que a fez?» Claro, tinha que ser, só
ele, que era diferente de tantos outros; só ele é que era assim amigo da
Lucinda, e tinha dois filhos; um deles o Acúrcio, que fazia gaitas do caule do trigo, ainda verde,
e assobiava com um assobio feito de um
pedaço de telha.
E depois
de tudo isto, ainda tinha uma cunhada, a Maria José, alta, muito magra e com
uma grande saia rodada, até aos pés; que estava sempre a proteger-me de tudo e
que eu achava que, por ser tão boa, tinha que ser, também, irmã do Alberto, e
da Lucinda, claro!
Mas
o tempo passou e com ele a aldeia também desapareceu. Onde estão as varandas ,
os balcões, os poiais da minha infância, objectos de tantos desejos, que ainda
hoje , guardo, carinhosamente no meu coração: de bolas de sertã e de azeite a
fervilhar, aquecendo o frio de mau ano e de ruins colheitas, numa sertã grande
como a alma das searas de trigo, e cheia de sonhos e de esperança, de salas de
amêndoas, almudes de azeite e lagares de uvas; de trabalhos do campo: lavrar, arar,
cavar, semear; de arroz doce e aletria, de coscorões e de burzigada, como só nesse tempo se faziam. Tempo cheio de gente, de
trabalhos e de esperança. Tempo que
ficou para trás, sob a forma de passado, escondido pela cumplicidade do futuro.
E quando o Alberto dizia orgulhosamente que os
seus filhos tinham partido para Lisboa, para serem alguém na vida; que estavam
muito bem; que eram grandes patrões, eu sentia uma enorme tristeza e não
compreendia como tudo tinha que ser assim.
Onde estão aquelas pessoas,
aquelas pedras, aqueles muros, aquelas ruas cheias de gente?
Hoje é o nada das coisas.
Tininha de Urros
Publicado em 16/02/12
Olá meus amigos!
ResponderEliminarAs palavras, mal passam para o papel, pertencem a outro domínio, que não o da realidade.
Este texto é, apenas, uma pequenina homenagem a um mundo que teima em desaparecer, é pena!Há aqui muito carinho, muita amizade às pessoas que nele gravitam. O Favas é apenas um de muitos desses nossos vizinhos e amigos de quem guardamos a memoria.Obrigada.
Nota-se,Tininha, o seu carinho por todas as figuras que descreve nos seus textos.Este Favas está "desenhado " na perfeição.A minuciosa descrição do seu amigo revela,da sua parte,mestria neste domínio.Também bela homenagem a esse seu mundo desaparecido.Parabéns!
ResponderEliminarUma moncorvense
Olá minha querida e boa amiga!
ResponderEliminarO que eu noto e gosto muito, é a sua generosidade e, acima de tudo, a sua amizade! E, SOBRETUDO essa, é que eu prezo e me sabe muito bem!
Muitos beijinhos, com amizade, Tininha
Ola meus amigos!
ResponderEliminarÉ verdade, não havia nada, nem matança nem segada, onde a gente de Urros, não se desfizesse em vontades e canseiras de farta e generosa mesa, para vizinhos, amigos e parentes! E que saudades todos nós guardamos desses tempos!Tempos difíceis, muito duros, é certo, mas de muita amizade e partilha!
Em nom desse tempo, um abraço, muito amigo, para todos vós!
Tininha, de Urros
Olá, Tininha.
ResponderEliminarChego tarde como o tempo... Terei desculpa? Braço e mão esquerdos não operacionais ; na mão direita, só o mindinho tem sensibilidade...
Mas lamentar não adianta e o mindinho vai fazendo alguma coisa.
Gostei muito do Favas.É uma figura bem caracterizada e muito bem marcada. Vá escrevendo textos destes. Fazem-nos bem a todos.
Abração
Júlia
Olá Tininha
ResponderEliminarQue belo e justo tributo em jeito de homenagem estás a fazer ao Sr. Alberto "Favas", com as palavras apropriadas a retratar a personalidade e a época. As palavras sentidas que utilizas no texto, com uma carga de carinho e ternura pelos referenciados e suas tarefas, retratam tão bem esse tempo distante. A mulher de hoje continua com as suas imagens e coração de menina.
Que a bondade e o amor que sentes pela tua terra e suas gentes, sejam distribuidos em doses suficientes para moldar os corações mais endurecidos.
Um abraço
Manuel Sengo
Olá Tininha!
ResponderEliminarChegaste e encantaste!Bonito muito bonito!
O sr. Alberto "Favas" que ainda recordo.Vivia mesmo ao lado da sra. Filomena amiga da minha avó.Não tenho memória da sua" Lucinda"senhora referenciada no teu fantástico conto/homenagem.Lembro-me que casou em segundas núpcias com a sra. Céu que ,certamente,lhe guardou um cantinho lá no céu ,já que partiu na frente dele.
Com um beijo de parabéns ,não só por este teu conto,mas por todos os que já li e nunca me canso de reler.Ireninha
Olá Tininha!
ResponderEliminarQuero pedir desculpa por só hoje te falar mas o neto ...isto de ser avó é muito lindo mas tem os seus "QUêS"...
Gostei muito da ternura do sr.Alberto pela sua Lucinda.
Beijinhos
Ireninha
Olá minha querida amiga, Julinha!
ResponderEliminarQuisera ver apenas o lado positivo do seu comentário, que muito prezo, sempre!Todavia a saúde, por vezes, insiste em roubar-nos a fibra e energia do aço que a moldou (à minha querda amiga); portanto, minha querida Julinha, e porque essa preciosa fibra já nos vai escasseando, vamos lá, por favor, continuar a dar-nos, a todos, essa coragem e frontalidade que afasta todo e qualquer descuido da saúde!
Até parece...eu a dizer isto! Comigo o Inverno também é muito cruel e o meu amigo computador, ainda que muito me distraia, também me castiga bastante!Do fundo do coração, espero que supere, o mais rápido possível, toda e qualquer maleita, por mais ousada que seja.
As suas melhoras, minha boa amiga!
Beijinhos,
Tininha
Olá Ireninha!
ResponderEliminarObrigada pelo teu comentário e, sobretudo, pela tua memória!
Sabes, é mais uma nesguinha desse tempo que permanece em jeito de grata recordação.
Beijinhos,
Tininha
Olá Manuel!
ResponderEliminarQue os teus desejos se concretizem! Obrigada pelas vossas palavras, de generosidade e apreço.
E os textos, Manuel?! Vamos lá, divulga, também, a tua escrita! Fico à espera.Pelo que me é dado observar, são de qualidade com certeza. Desculpa se estou a insistir.
Abraços para todos os teus,
TININHA
olá Tininha, os teus textos são fabulosos,retratam com muita clareza e ternura as personagens que outrora fizeram parte do nosso dia a dia.É bom recordar...Continua a presentear-nos com as tuas vivências de infância.Elas têm o poder de nos remeter para o passado que todos recordamos com saudades e teimamos em não esquecer.Bjis para ti e para todos que como nós têm Urros no coração.Letinha
ResponderEliminarOlá Letinha!
ResponderEliminarObrigada pelo teu comentário!
Estou muito feliz por te encontrar por estes sítios.Bela surpresa!
Quero sublinhar que o que mais me apraz é a tua presença!
A Rua Grande vai dando ares da sua graça!E não importa a pretexto de
quê.
Obrigada meus amigos e vizinhos. Beijinhos,
Tininha
Olá Létinha!
ResponderEliminarFinalmente apareceu!Nós os de Urros embora longe temos sempre a nossa terra no coração...
Beijinhos da sua vizinha
Irenina
Olá Tininha!
ResponderEliminarDesculpa o meu atrevimento mas fiquei muito feliz por ver (finalmente) um comentário da nossa querida Létinha.
Beijinhos da tua amiga
Ireninha
Olá minha querida!
ResponderEliminarHoje andamos todos muito ocupados, ainda bem que é assim!E depois, minha amiga, nesse campo, eu e tu estamos aqui mais próximas do nosso torrão, não é?
Olha, fico à espera do teu texto!
Beijinhos, com amizade, para todos!
Tininha
Após ter descoberto as poesias e prosas de pessoas que me são tão queridas sempre que posso dou uma espreitadela...A vossa escrita tem a magia de fortalecer a alma aos transmontanos dos anos 60!Parabéns continuem!Comentei alguns dos vossos textos mas secalhar tardiamente... não tive feedback. Sou fã da vossa escrita. Parabéns e um xi coração a ambas!Saudações a todos os nossos amigos.Letinha
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