domingo, 9 de fevereiro de 2014

Da Malcata ao Reboredo - Matança do Porco

O Abade de Baçal relata que em Trás-os-Montes, o facto de não ter porco para matar era um bom indicador do estatuto social de “pobre”: «É corrente para indicar a precária condição de uma família o dizer-se: - “é tão pobre que nem matou!”, acrescentando que o porco é então a  “caixa económica” dos transmontanos.
Entre os finais do século XIX e o início dos anos sessenta, a festa da matança “tradicional” é uma pequena festa familiar ou uma refeição de trabalho festiva ou um cerimonial conjugando estes dois tipos de festa. Esta refeição é sobretudo constituída de partes do porco mais perecíveis que não serão salgadas nem fumadas (sangue, fígado e às vez pulmão) e carne de porco velha. Essa escassez é ironicamente referida pelo provérbio: “Ossos da suão, barba untada, barriga em vão”.
Foto:matança do porco em Algodres.Arquivo F.M.
Texto completo em:http://www.cm-mirandela.pt/index.php?oid=3576&id=

4 comentários:

  1. «Foi numa manhã fria de Dezembro que assisti à tradicional matança do porco na casa da minha avó Maria...
    Muito cedo chegou o meu tio Carlos e a minha tia Ana que iriam ajudar nas tarefas, que pelo que me disseram, seriam muitas. Chegou também o sr. Francisco com uma enorme faca debaixo do braço. Tinha fama de matar os porcos rapidamente e era ele que matava quase todos os porcos da aldeia. Por fim chegaram o tio Chico e dois vizinhos.
    Entraram e comeram figos, pão e azeitonas que acompanharam com um copo de aguardente para se aquecerem um pouco (como se não bastasse a enorme fogueira de lenha de carrasco que a minha avó já tinha acendido).
    Depois saíram, foram buscar o porco à loja encaminharam-no para a porta da curralada onde já estava um agrade e alguns feixes de palha.
    Nesse momento, chegou a minha mãe com uma bacia com um pouco de pão e vinagre espalhados no fundo. Explicaram-me que o tacho serviria para aparar o sangue e o pão e o vinagre para impedirem que o sangue tralhasse (coagulasse). Agarraram o porco e colocaram-no sobre o agrade. O senhor Francisco pôs em prática toda a sua habilidade e, de uma vez só, espetou a sua enorme faca no pescoço do porco provocando uma diminuição na força com que o infeliz se debatia e um grande arrepio em mim. A minha mãe aparava o sangue na bacia dando-lhe volta com um ritmo compassado à medida que ia acrescentando alguma água.
    Quando o porco parou de se debater, pegaram fogo à palha de centeio. Com calma, foram chamuscando o pelo do porco e depois a sua pele, esfregando-a com sabão e com cortiça e raspando-a com facas. Aqueceram as unhas e arrancaram-nas. Depois de bem lavado, viraram-no de barriga para cima e começaram a abri-lo.
    A minha tia Ana chegou para levar as asinhas do coração ("senão o fumeiro voava"), as pontas das costelas, o fígado e barbada que iria estufar.
    CONTINUA

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  2. Depois de retiradas as tripas a minha mãe tirou-lhes alguma gordura, enquanto estavam quentes, que seriam fervidas numa panela (rojões).

    Os homens penduraram o porco usando uma estaca com uma gancha, que fizeram passar pelo cu do porco e se prendia no queixo do mesmo. A estaca foi encostada a uma esquina, ficando o porco ao alto uma vez que não havia uma trave para o pendurar. Depois entravaram e comeram o estufado de carne e o sangue cozido (cortado em cubos com alho, azeite, vinagre e pimento doce), enquanto se preparava o almoço.

    O almoço consistiu num prato de arroz de couve branca, acompanhado com salpicão do ano anterior feito com a tripa do cu e ovo cortados às rodelas, ambos colocados por cima do arroz. Sopas feitas com pão migado e amolecidas com o caldo dos potes de ferro que fervem na lareira. Regadas com azeite a ferver que fazia um som característico ao cair sobre o pão já húmido (sopas do chize), com sangue cozido esfarelado por cima.

    Depois do almoço a minha mãe e a minha tia foram lavar as tripas para o ribeiro na Veiga. Utilizavam uma verga de olmo para virar a tripa (pau de virar tripas) permitindo a lavagem do interior. A água estava muito fria e o cheiro também não era nada agradável.

    Aproveitei o tempo e perguntei-lhes quais seriam as fases seguintes na conservação da carne do porco. As alheiras só se faziam depois de desmanchar (desfazer) o porco (normalmente no dia seguinte). Também eram separadas as carnes (para salpicões, bochas, linguiças e bulhos). A maior parte da carne seria conservada em maceiras com sal.

    Perguntei também qual seria o processo para fazer os salpicões que eu tanto gostava de comer na casa da minha avó. Primeiro preparava-se um alguidar com suça (água, sal, alho, louro, casca de laranja, um copo de vinho (ou mais)). As carnes ficavam na suça um dia ou dois. No acto de encher as tripas juntava-se algum pimento às carnes.

    Cheguei à conclusão de que o dia da matança do porco era um dia cheio de trabalho, mas também um dia cheio de alegria e alguma festa. Percebi que todas as fases se desenvolviam com calma como num ritual. Percebi também que o porco, nas diferentes formas em que é conservado, ocupa um lugar muito importante na alimentação ao longo de todo o ano».
    http://www.cm-mirandela.pt/index.php?oid=3576&id=

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  3. “... E o fumeiro que se fazia! Que rico e que saboroso! Ainda me lembro dos salpicões, chouriças, alheiras, tabafeiras, sanguinhas, farinheiras de sangue, morcelas, salpicões de ossos, bochas, linguiças, chamiços pretos... Ai eu gostava muito das farinheiras de sangue e mel. Algumas vezes até ia pró pé da minha avó a vê-las fazer... Sabiam tão bem!”
    (Joaquim Rebelo; Matança do Porco, In: A Terra Transmontana e Alto Duriense (Notas Etnográficas), Ed. C.M. de Torre de Moncorvo e Associação Cultural de Torre de Moncorvo, 1995)

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  4. Do porco não se perdia nadinha. Tudo tinha o seu sabor bem diferenciado, tudo tinha a sua finalidade muito específica e cada peça - maior ou menor - tinha o seu devido nome. E até havia o dia próprio para comer o palaio: o Domingo Gordo.

    Júlia

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