segunda-feira, 13 de abril de 2015

A exaltação da língua mirandesa, com furor e mistério

Capa do livro
O apóstolo iluminado que andou anos a incendiar a opinião pública com a língua mirandesa foi Amadeu Ferreira, recentemente falecido. Quem quiser conhecer esta figura prodigiosa tem agora ao seu dispor "O Fio das Lembranças, Biografia de Amadeu Ferreira", por Teresa Martins Marques, Âncora Editora, 2015. Agora que o apóstolo partiu, a homenagem que se lhe pode fazer é divulgar o seu verbo incendiário, escreveu com encanto, fervor, tinha a vontade de um caminheiro indómito, conhecia os limites da peregrinação, como escreveu: "A semente cai à terra, nasce uma nova árvore, que dá flores e frutos, que um dia vai morrer e tornará a nascer. Hoje sou matéria viva, amanhã sou pó, terra, vento, que vai alimentar uma planta, que vai alimentar uma flor. Só a metamorfose é imortal. É essa a nossa forma de eternidade. Cada manhã em que acordo é um milagre da vida".
Recomendo a todos o seu manifesto
"Língua Mirandesa", também publicado pela Âncora Editora, um texto glorioso sobre a nossa fala madre, de que não devemos abdicar, há que a prezar com unhas e dentes, e ele adverte:
"Quando uma língua não se escreve, dizem que a história ainda não começou, porque não há como contar com essa história. Apenas pode ser contada pela língua dos outros. Uma língua sem história não pode durar para sempre.
Há palavras que, quando as dizemos, nos deixam com pele de galinha, mas apenas nós nos apercebemos; há sons que nos envolvem como uma onda de calor, mas apenas nós sentimos o gelo que por vezes trazemos dentro de nós a derreter; há trejeitos da língua dentro da boca, falando, que nos fazem cócegas que ninguém mais sente; há ditos que não têm outra maneira de se dizer e ninguém se apercebe quando não conseguimos traduzi-los; há coisas que, quando usamos outra língua para as dizer, soam como estranhas e, no fim, ficamos com a ideia de que não fomos capazes de as dizer.
Imagem do arquivo do blogue.
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Os mirandeses apenas podem gabar-se de uma coisa: a sua língua. Correi o mundo inteiro e não encontrareis nada igual.
Há mil anos, dizem, já se falava mirandês. Talvez fosse um pouco diferente, mas era mirandês. Uma língua que teimou a permanecer numa pequena ilha, cercada pelo mar que é o português e o castelhano. Se morrer, com ele morrerão de novo todas as pessoas que nestes mais de mil anos a falaram. Então, ficamos com um enorme problema: nem em toda a Terra de Miranda há espaço para enterrar tanta gente. Por isso, como almas penadas, ficaremos condenados a chocar constantemente com os esqueletos da língua que morreu.
No passado, há muitos anos, obrigaram-nos a falar português. Disseram-nos que o mirandês não era uma língua de gente ou, então, era uma língua de gente estúpida, atrasada. Os reis obrigavam as pessoas a fazer os documentos oficiais em português. Os enviados do rei vinham a Miranda e falavam português. O português era a língua dos ricos e do poder e, com o tempo, o mirandês foi-se identificando como fala dos pobres, como fala do campo.

Passou a andar por aí a lavrar, a ceifar, a cavar, a vindimar, a regar, a apanhar rosmaninho para estrume, a apanhar lenha, a caminhos, a apascentar as mulas ou as vacas. Foi língua de raiva, mas também de embalar; língua deste inferno de mete pé saca pé e língua de sonhar com vidas melhores; língua de ralhar e língua de torna-jeira ou torna o burro; língua de chorar e língua de festas e de dançar; língua de morrer e língua de nascer.
Que destino queremos para o mirandês? Nos últimos trinta anos, a Terra de Miranda encheu-se de doutores, de jornais, de rádios, de televisões. Mas não há doutores em mirandês. Um mirandês é pobre e não terá dinheiro para televisões.
Nos últimos trinta anos, muitas coisas que falavam mirandês foram desaparecendo, mortas ou escondidas onde ninguém as veja: arados, relhas, charruas, carros de mulas e carros de bois, albardas, molhelhas, jugos, caniças para a palha, forquilhas de madeira e de ferro, trilhos, foices, picotas, foices de cabo comprido, cestos vindimadeiros, cestos estrumeiros, cilhas, cargas e arrochos, cabeçadas, malhos, molhos de colmo, forjas, fornos, eiras e tantas, tantas coisas.
Nos últimos trinta anos, a língua foi sendo expulsa das casas: os contos já não sobem pelas chaminés, já não come à mesa, já não dorme na cama. Na rua, quando ela passa, já há quem a olhe de lado. A continuar assim, sem eira nem beira, há de morrer de frio, numa noite de Inverno, debaixo de algum telheiro onde, por caridade, lhe permitiram dormir".
Exaltação mais bonita, de amor e vísceras, de furor contido, de homenagem à terra e aos seres humanos, não se conhece ou, vamos lá para não pecar por excesso, não se encontra todos os dias. E que nos deixa uma amarga saudade deste mirandês excelso que se chamará sempre Amadeu Ferreira.

Autor: Beja Santos

Fonte: http://www.imprensaregional.com.pt/jornaldemonchique/pagina/edicao/2/84/noticia/4431
Notícia referenciada na página do Facebook  de Teresa Martins Marques

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