quinta-feira, 10 de outubro de 2013

MÁRIO CORREIA,a Âncora e a Traga-Mundos em Vila Real

VER:http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2012/07/toques-de-sinos-na-terra-de-miranda-de.html
          http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2013/09/madrid-pairavam-abutres-nas-arribas.html
       http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2013/08/centro-de-musica-tradicional-sons-da.html

PREFÁCIO
OS GAITEIROS DO PLANALTO MIRANDÊS
 1. O livro que agora Mário Correia nos apresenta, apesar de ser uma obra na aparência singela, está em minha opinião chamada a ter um grande impacto cultural. O autor reincide na sua escrita sobre os gaiteiros do Planalto Mirandês, pois já em 2002 nos tinha dado uma primeira abordagem global ao tema com BiBenir la Gaita (Instituto de Desenvolvimento Social, Lisboa), e volta agora com este Histórias de Vida dos Gaiteiros do Planalto Mirandês. Ainda bem que o fez, pois o tema merece e este novo livro apresenta-nos uma investigação mais aprofundada e alargada a novos gaiteiros, sistematiza obras entretanto por ele publicadas sobre os do planalto mirandês, de que se dá conta na bibliografia da referida obra. Algumas dessas obras monográficas vieram resgatar do esquecimento nomes muito importantes da cultura mirandesa, como o tiu Pepe de Freixenosa que, em 1898, acompanhou os Pauliteiros de Constantim às comemorações do IV Centenário da Descoberta da Índia, organizadas em Lisboa pela Sociedade de Geografia.


Mário Correia, de modo adequado, engloba numa única unidade cultural e histórica os gaiteiros do Planalto Mirandês, pois a cultura dos três concelhos que o compreendem (Miranda do Douro, Mogadouro e Vimioso) não tem apenas laços estreitos entre si, mas é uma mesma cultura forjada ao longo de séculos, já desde a medieval Terra de Miranda e, estou certo, já de muito antes, pese embora o campo da língua comum se ter vindo a estreitar desde então. A nova divisão administrativa, a vigorar desde há vários séculos e em especial desde a primeira metade do século XIX, não conseguiu alterar esta realidade e o enquistamento que tem sido desenvolvido mais recentemente em torno de cada um dos concelhos, como se de unidades independentes se tratasse, também não alterou esse estado de coisas. Talvez ainda devesse ter ido mais longe, abarcando as franjas do sudeste do concelho de Bragança pertencentes ao antigo concelho de Outeiro (de Miranda) e à parte nordeste do concelho de Freixo de Espada à Cinta, em especial Fornos e Lagoaça.
Estava a faltar uma obra de fôlego que permitisse um conhecimento dos gaiteiros e a sua história, resgatando-os do esquecimento, e desse a conhecer a sua importância no âmbito da cultura das comunidades a que estiveram mais ligados e à cultura e à música mirandesa em geral. À falta de documentos escritos para a quase totalidade dos gaiteiros, o autor socorreu-se sobretudo do testemunho dos que os conheceram e com eles conviveram, procurando reconstituir a sua vida e actuação, com incursões mais ou menos aprofundadas, conforme os materiais disponíveis, relativas à técnica, ao repertório, à zona de influência, à aprendizagem e à origem do instrumento. Ao longo de anos, Mário Correia foi pacientemente recolhendo a escassa documentação existente, ouvindo, registando, relacionando e aqui está o resultado. Ao mesmo tempo, Mário Correia faz o ponto da situação do que foi sendo escrito ou testemunhado por outros mirandeses, com particular destaque para jovens gaiteiros em plena actividade, como Paulo Preto, Abílio Topa, Célio Pires e Henrique Fernandes que, de modo activo e juntamente com outros, têm sido decisivos para o resgate deste património cultural inestimável.
Atendendo às fontes possíveis de que se serviu, as histórias escritas por Mário Correia abarcam pouco mais que um século, iniciando-se no fim do século XIX, pois mais longe não chega a memória oral, mesmo através de testemunhos indirectos. Não fora a documentação recentemente descoberta e relativa ao tiu Pepe de Freixenosa e o universo seria ainda bem menor. Sabemos que o toque da gaita no planalto mirandês é muito antigo, pois já em 1609 Severim de Faria se lhe refere a propósito da forma como foi recebido em Vila d’Ala, facto que mostra bem o lugar que o gaiteiro ocupava na hierarquia do gosto musical das pessoas, pois os habitantes dessa comunidade terão apresentado o que de melhor tinham para distrair e agradar ao ilustre visitante, deão da Sé de Évora em viagem de cumprimentos ao novo arcebispo da cidade alentejana, dignidade a que havia sido elevado o então bispo de Miranda.
Há alguma documentação histórica ainda não publicada e outra não estudada que faz referências, ainda que pontuais, aos gaiteiros, às comunidades de que são originários e às festas em que deviam participar, nomeadamente por indicação da Câmara Municipal, em especial a de Miranda do Douro. Nesses documentos devem incluir-se os emanados do bispado de Miranda e das visitações às paróquias ordenadas pelos bispos, que estabelecem proibições de os gaiteiros actuarem nas igrejas ou em certas cerimónias religiosas, pois nos permitem conhecer alguns hábitos, a importância dos gaiteiros na vida da comunidade e, de modo indirecto, algum do seu repertório, que teria necessariamente uma componente religiosa muito substancial.Embora desses documentos pouco mais constem que referências genéricas, é importante o seu conhecimento e estudo para melhor avaliar das práticas e das competências musicais existentes nas aldeias do Planalto mirandês, mas também da capacidade de resistência das práticas musicais e outras tradições populares.
Este é um capítulo da cultura mirandesa e, em especial, da história da sua música e não um mero documento etnográfico, orientação com que estes temas têm sido tratados na maior parte das vezes entre nós. Pode parecer questão de somenos, mas a perspectiva de abordagem é essencial para uma adequada compreensão, conhecimento e valorização da nossa história cultural, em particular no domínio da música. O tratamento etnográfico deve continuar a ser tido em conta, mas torna-se necessário ir mais longe, sob pena de apenas apreendermos uma parte da realidade. Seria vantajoso que surgissem novas e mais específicas monografias, quer relativas ao repertório musical, quer às técnicas de execução ou ainda às práticas sociais, em particular festivas, de execução musical, aqui incluído o uso dos vários tipos de instrumentos musicais, a sua combinação ou a utilização preferencial para esta ou aquela actividade.

2. O uso de instrumentos musicais no Planalto Mirandês não se limitava à gaita-de-foles e aos instrumentos de percussão que em regra a acompanhavam, a caixa e o bombo. Talvez o instrumento mais popular fosse a flauta de três buracos (fraita) essencial na arte do tamborileiro, que muitas vezes substituía a gaita-de-foles. Normalmente era pela flauta que os pastores começavam a sua aprendizagem, pois esse era um instrumento mais rudimentar na sua feitura e por isso mais facilmente ao alcance de quem o desejasse. Eram frequentes, e muito populares, o acordeão/concertina (harmónico) e o rigaleijo (conhecida como gaita ou harmónica de beiços), mais raramente a rabeca e a sanfona, esta em tempos mais recuados. Além das castanholas e da pandeireta, era o pandeiro o mais importante instrumento de percussão, usado para acompanhar danças várias e modas populares, três instrumentos de percussão objecto de culto e por vezes de grande virtuosismo dos seus executantes. Mas vários outros instrumentos eram utilizados, muitas vezes rudimentares e de uso muito ocasional, em particular vários instrumentos de percussão ou usados como tal, como a zabumba, as carracas, o cântaro de barro e, por vezes, materiais de trabalho ou domésticos. Saliente-se aqui o trabalho de recuperação/construção instrumental que tem vindo a ser prosseguido por Paulo Meirinhos, também ele um grande músico, primeiro do pandeiro e depois da rabeca.
De todos os instrumentos referidos, podemos dizer que a gaita-de-foles ocupava o topo superior da escala, sendo o único capaz de suportar integral e satisfatoriamente a animação tradicional das festas do Planalto Mirandês, incluindo do ponto de vista religioso. O único que dele se aproximava era a fraita, porém com menos versatilidade, menos capacidade melódica, menor sonoridade e, possivelmente, também de maior dificuldade de execução, instrumento também muito ligado à “dança” (pauliteiros). O acordeão e o rigaleijo não só apareceram mais recentemente como eram apenas adequados às festas profanas de baile e, pelo menos o rigaleijo, a grupos mais pequenos de bailes de rua, que muitas vezes se formavam espontaneamente aos domingos e dias de descanso, dada a facilidade de transporte e uso do instrumento além de ser relativamente barato.
Pelas razões apontadas, nenhum dos referidos instrumentos deu origem e suportou uma figura social, musical e cultural como a do gaiteiro, elemento fundamental da paisagem sonora mirandesa e da sua cultura musical. O seu relevo era tal que no período mais intenso das festas populares o gaiteiro assumia praticamente foros de profissão a tempo inteiro, sendo fonte de rendimento que dela permitia viver, nalguns casos razoavelmente. Porém, acabado o ciclo das festas, o gaiteiro voltava à sua actividade de agricultor ou de pastor, substituído nessas lides pela mulher ou pelos filhos enquanto duravam as festas. Embora o ciclo das festas pudesse ocorrer em períodos de menor intensidade de trabalho agrícola – o que nem sempre acontecia, pois até há alguns anos as grandes festas de Santa Bárbara ocorriam quase sempre no mês de Maio, propício a trovoadas devastadoras para as culturas nascentes –, estamos em regra perante agricultores ou pastores pobres que mais facilmente podiam largar sem grave prejuízo as suas actividades ou nelas ser substituídos. Na maioria dos casos, esses profissionais eram conhecidos pelo nome de ‘tiu gaiteiro’ e várias famílias ganharam a nomeada de ‘gaiteiro’, que perdura até aos nossos dias.
A gaita era o único instrumento que, até certa altura, entrava nas igrejas das aldeias para acompanhar as cerimónias religiosas, pois o órgão era raro e exclusivo das ricas igrejas e das catedrais, e que acompanhava as procissões, o que também atesta como era nobre e socialmente considerado. Lembre-se que até ao Concílio Vaticano II, em meados dos anos 60 do século XX, a missa era em latim e praticamente com nula participação popular, sendo importante o acompanhamento instrumental para amenizar ou enfatizar o silêncio litúrgico. São conhecidos vários toques adequados a partes da missa, como “ao elevar da hóstia” e outro repertório que desconhecemos ou talvez se tenha perdido após a proibição de esse instrumentoentrar na igreja, o que aconteceu de forma reiterada nos últimos 200 anos e ainda em meados do século XX, com o bispo D. Abílio Augusto Vaz das Neves. Está ainda por fazer a história integral dessas proibições e das suas razões, mas a elas não será alheia a imagem do gaiteiro perante a Igreja e o facto de a gaita ser um instrumento que servia sobretudo para animar bailes, muitas vezes considerados licenciosos e pecaminosos pela Igreja, o que não acontecia com o órgão e instrumentos similares. Também me parece ter-se dado aqui um choque frontal de culturas, entre a das elites da Igreja e a popular, que acabaram por se colocar nos antípodas. Com efeito a Igreja considerava o gaiteiro e o seu instrumento como menos digno de Deus e do espaço sagrado da igreja e da solenidade da missa, entendida como sacramento, e mais propício à folia desbragada das festas populares, que a Igreja sempre tolerou e nunca aceitou por as considerar como sobrevivências do paganismo, mas também como a abertura de uma porta à acção diabólica e ao pecado por ele fomentado.
O acompanhamento das procissões nunca deixou de se fazer pois, apesar da relutância da Igreja, foi sendo tolerado até ser progressivamente substituído pelas filarmónicas, ao longo do século XX. A tolerância era devida ao facto de a procissão decorrer fora da igreja e ter sido uma manifestação que nunca conseguiu controlar totalmente, objecto de práticas muito arreigadas, que exigiam que ela ocorresse com grandiosidade e as mais diversas manifestações exteriores de uma religiosidade vista com maus olhos, desde os andores enfeitados com fitas e notas de banco, inúmeros pendões de diverso tipo a acompanhar, a incorporação de grande quantidade de animais em vários tipos de festas, etc.
Mais recentemente, a gaita tem vindo a pouco e pouco a entrar de novo na igreja, o que é demonstrativo não apenas da abertura da Igreja, mas também de uma nova imagem do gaiteiro e da gaita-de-foles, não raro associados a um repertório específico considerado mais clássico e menos popular e a competências musicais formais socialmente valorizadas. Também não se pode deixar de considerar que esses são frutos de muito trabalho de informação e investigação que tem vindo a ser realizado, de que esta obra de Mário Correia faz parte integrante. Espero que este caminho possa continuar a alargar-se, completando-se a ligação com a tradição mais antiga, ainda que em moldes necessariamente renovados.

3. Um dos aspectos em que a investigação de Mário Correia é deveras interessante refere-se à aprendizagem da técnica e do repertório da gaita-de-foles. Nesse domínio refere a existência de duas situações fundamentais:a aprendizagem é feita na família, passando de pai para filho; a aprendizagem é feita de modo individual, sem qualquer apoio de um mestre, mas exclusivamente assente no talento do aprendiz e na tradição comunitária.
Há, no Planalto Mirandês, casos de verdadeiras “dinastias de gaiteiros”, em que o ofício se transmite ao longo de várias gerações, através da aprendizagem do repertório e da técnica de execução, bem como da transmissão do instrumento musical. Talvez o exemplo mais acabado tenha a ver com a família Fernandes (sempre conhecida pelo nome popular/alcunha de “gaiteiro”), nesta obra bem documentado nas suas passagens por diversas terras (Prado Gatão, Sendim, Urrós, Moçambique e Brasil), e de que o elo mais recente é o gaiteiro Henrique Fernandes. Mas outros exemplos poderiam referir-se, como os de Virgílio Cristal e seu filho Aureliano Ribeiro, ou o caso um pouco diferente de Célio Pires em relação a vários elementos familiares.
Porém, o mais frequente é o gaiteiro por si próprio a todos os níveis: aprende a tocar sozinho, domina o repertório fundamental e é capaz de fazer a sua própria gaita em todas as suas componentes, sem depender de ninguém. Este facto era devido à ciosa guarda dos “segredos” por parte dos gaiteiros mais velhos, em parte motivada pela necessidade de afastar a concorrência dos mais novos, mas também à enorme dificuldade em encontrar uma gaita adequada para tocar bem, nomeadamente a sua parte mais importante, o coração da gaita, a ponteira e respectivas palhetas. Não raro, o jovem gaiteiro tinha de enfrentar, se não a hostilidade, pelo menos a animosidade do gaiteiro mais velho e da sua família.
A concorrência era um problema real, pois os meios de transporte rudimentares, até há pouco tempo, não permitiam ao gaiteiro abarcar uma ampla área de influência no reduzido ciclo festivo e está também documentada a preferência dos povos pelos gaiteiros da própria aldeia, quando existiam, ou por gaiteiros de aldeias vizinhas, por serem melhores conhecedores dos respectivos gostos e tradições.
A predominância de uma aprendizagem sem mestre está talvez na origem de nunca ter havido uma verdadeira escola de gaita mirandesa, para além de certos aspectos que resultam de um repertório comum e de uma técnica exigida por certas execuções musicais mais estandardizadas, como é o caso da dança dos paulitos.
A aprendizagem da gaita exigia tempo e ninguém dele dispunha como os pastores e os vaqueiros. Acompanhando o gado, tinham muito tempo e as mãos livres para a gaita ou a fraita, o que não acontecia com o exercício das restantes actividades ligadas ao campo. Por isso, de entre aqueles ofícios saíram a maioria dos gaiteiros e tamborileiros. Ao não haver um verdadeiro ensino, na maioria dos casos, o que se impunha era a sensibilidade e a capacidade musical do aprendiz de gaiteiro, que por si só deveria superar as dificuldades. Estas duas situações tiveram várias consequências: por um lado, o ofício de gaiteiro era verdadeiramente popular e os gaiteiros, saindo das classes mais pobres, não dispunham de prestígio social que lhes adviesse dos bens materiais, mas apenas da sua actividade de músicos, uma actividade imaterial; por outro lado, a afirmação de cada novo gaiteiro permitia a afirmação de um estilo pessoal e, até certo ponto, um renovar da tradição, tanto maior quanto maior fosse o seu génio. Alguma crítica social que se fazia aos gaiteiros não deixava de atender à sua origem humilde, ao seu diferente estilo de vida, a contrastar com o normal da população, e à sua vida ligada à festa e à dança, nem sempre valorizadas socialmente, quer pela Igreja quer pelas pessoas no seu dia-a-dia, expressão de um modo de pensar que ficou bem cristalizado na fábula da cigarra e da formiga.

4. Um quebra-cabeças para qualquer gaiteiro e, sobretudo, aspirante a gaiteiro, era o seu instrumento, em especial a ponteira e as respectivas palhetas. A ideia foi sempre a de que cada um devia fazer a sua gaita, porém a concretização dessa intenção nunca foi fácil para a maioria dos gaiteiros e, no essencial, era um mito. Todos tentavam e chegavam mesmo a fazer tornos rudimentares para o fabrico da gaita, mas os resultados nem sempre eram os desejados em termos harmónicos, pelo que todos buscavam adquirir o instrumento de algum velho gaiteiro, em especial a ponteira. E, nesta sua obra, Mário Correia procura seguir o percurso dos instrumentos de vários famosos gaiteiros, trazendo importantes novidades a essa história.
Durante muito tempo foi o que ficou conhecido como tiu Fuseiro de Genízio, apesar de não ser gaiteiro nem tocador de gaita, foi o principal fabricante de ponteiras para muitos tocadores de gaita do Planalto
Mirandês, ao longo da primeira metade do século XX. Algumas dessas ponteiras tornaram-se verdadeiramente proverbiais pela sonoridade e timbre, e vieram a servir mais tarde para ajudar na busca de uma sonoridade mirandesa para a gaita-de-foles, quando se pretendeu estandardizá-la e buscar uma sonoridade e uma afinação mais próximas das tradicionais. Apesar destes fabricantes locais de ponteiras e, em geral, de gaitas-de-foles, podemos verificar pelos relatos como foi intenso o uso de instrumentos das regiões zamoranas de Aliste e de Sanábria, chegando-se mesmo ao uso de gaitas galegas, o que mostra como também neste domínio a região mirandesa nunca foi totalmente fechada, mas sim aberta às mais inúmeras influências.
Apesar de todas essas influências, creio poder afirmar-se que o carácter artesanal da construção das gaitas-de-foles, usando tornos rudimentares e por vezes mesmo uma simples navalha para trabalhar a madeira, permite falar de uma gaita da região mirandesa devido à sua “afinação” predominante, ao seu timbre agreste e agressivo, ao som relativamente poderoso que emitia e lhe permitia actuar em festas ruidosas e, em geral, estar no centro das festas tradicionais. Os materiais usados eram tipicamente mirandeses, apesar de não exclusivos do Planalto, desde a madeira de freixo, de enguelgue e também de buxo, até às peles de cabrito curtidas artesanalmente para a confecção do fole.
As características da gaita mirandesa e o carácter único de cada instrumento, incapaz de suportar a companhia de outros devido à sua não estandardização, ajudaram a fazer de cada gaiteiro uma espécie de herói solitário, fazendo um só com o seu instrumento. Dava-se até o caso de em algumas festas tradicionais mais violentas, como acontecia no Encerramento do Corregedor em Duas Igrejas e das Scapadas em Sendim, o gaiteiro actuar com a ponteira firmemente atada por um fio ao braço que tocava e aparecia como um seu prolongamento, símbolo máximo da unidade entre o gaiteiro e o seu instrumento, assim protegendo a parte sagrada da gaita face à “barbárie” profana e violenta das lutas entre solteiros e casados.
A construção de gaitas-de-foles tem vindo a contar mais recentemente com artesãos de cada vez maior nível, com particular destaque para José Preto e Célio Pires, entre outros. Este último tem alargado a sua técnica à construção de fraitas de três buracos e às sanfonas, evoluindo cada vez mais na sua arte. No domínio de outros instrumentos, nomeadamente pandeiros e rabecas, já acima referimos o nome de Paulo Meirinhos.

5. O aparecimento de novos gaiteiros era algo aleatório, dependendo sobretudo do surgimento de pessoas com vontade, capacidade e sensibilidade musical que lhes permitissem singrar quase a partir do zero. Daí que, não raras vezes, os gaiteiros eram homens com uma cultura, uma sensibilidade e uma tenacidade acima da média dos homens do seu tempo, da sua aldeia e, por vezes, da região onde viviam, elos essenciais na transmissão da tradição e ao mesmo tempo na sua renovação. Muitos tinham alguma dificuldade em se inserir no normal dia-a-dia dos seus conterrâneos, com traços de comportamento por vezes extravagante, isto é, diferente, com o seu quê de sonhador, de filósofo, de poeta ou até de sacerdote. Gostavam de andar de terra em terra no ciclo das festas, sujeitando-se a certos comportamentos das populações que suportavam por amor à festa, o que muitasvezes era motivo de estranheza ou até de crítica. Dada a sua condição de andarilho, na época das festas, o gaiteiro contactava com pessoas com outros hábitos e ideias, trazia notícias e aprendizagens a que os seus conterrâneos não tinham acesso, pois raramente saíam da aldeia, presos ao campo e aos animais.
Tudo dependia da personalidade de cada gaiteiro mirandês, que talvez tenha tido os seus expoentes máximos em duas figuras cimeiras: por um lado, no fim do século XIX e primeiro quartel do século XX, no tiu Pepe de Freixenosa em termos de rigor, de ponderação e disciplina, de nível e amplitude cultural que ia muito além da gaita-de-foles e da festa, para se converter num verdadeiro agente cultural respeitado, e também em termos de criatividade; por outro lado, no tiu Manuel Sampedro de Travanca, que foi apelidado de gaiteiro filósofo, pois tinha ideias muito próprias a propósito da gaita e do papel do gaiteiro, e levava uma vida com aspectos que o demarcavam dos seus contemporâneos, como tocar a gaita em volta do lameiro onde as suas duas ou três vacas se apascentavam, dizendo que comiam melhor a erva. Era quase espontaneamente impelido para as Scapadas de Sendin onde, ano após ano, era objecto, e a sua gaita, das mais diversas tropelias, pois era o próprio gaiteiro e o seu instrumento que acabavam por servir de trofeu às partes em confronto, os solteiros e os casados, que defendia originais teorias a propósito da ligação entre a gaita, a música e o vinho.
Em ambos os casos era idêntica a dedicação e o amor à música e às festas, hai que fazer la fiesta!, era igual a admiração popular. Com efeito, se nem sempre o respeito pelo homem era o maior, devido ao que acima dissemos quanto a algumas das suas práticas, havia uma grande admiração e apreço pelo gaiteiro, esse que acompanhava as procissões com toda a solenidade, que tinha magia suficiente para chamar o sol da vida com a sua Alvorada, que tinha o condão de reunir donativos para o fim comum, que permitia a festa e em especial o baile que transportava as pessoas para além do seu pequeno mundo cheio de privações, de dureza e de demónios à solta, enfim, esse actor de circunstâncias centrais na vida da comunidade, como as festas solsticiais e as festas das colheitas em Setembro-Outubro, e acompanhante privilegiado de La Dança (Os Pauliteiros). A falta de gaiteiro era uma verdadeira infelicidade comunitária, a ponto de muitos deles terem sido quase obrigados a assumir a sua condição por pressão da população, o que nos dá bem conta de até que ponto o gaiteiro e a sua função eram essenciais na comunidade, e por aí percebemos também como este era um elo cultural que as comunidades não podiam deixar perder, pois estava colocado como um dos vários pilares em que assentava essa comunidade.
Em suma, pode parecer estranho afirmá-lo, mas não tenho dúvidas quanto ao acerto desta afirmação: o gaiteiro era uma necessidade comunitária, uma verdadeira instituição ainda que com características próprias, pois ia além dos limites geográficos da aldeia. Nada que nos espante se lembrarmos que estamos a falar de comunidades auto-suficientes também no domínio cultural, que não podiam contar com mais ninguém para lhes fornecer esse tipo de serviços. Para muitos míopes e ignorantes culturais, fique esta nota sobre a capacidade que o povo sempre foi tendo para se elevar acima das suas necessidades materiais mais imediatas e de uma dura vida de trabalho, para valorizar os aspectos culturais ao mais alto nível da sua própria sobrevivência enquanto comunidade.
Como agente cultural no seio da comunidade, o gaiteiro mirandês podia desempenhar outras funções ou conviver com outras pessoas com funções relevantes, como o ensaiador de peças de teatro tradicional (os quelóquios, sterlóquios ou quemédias), enquanto condutor de orações em certas ocasiões, sobretudo pelos mortos, o sacristão, o barbeiro/cerjano, o ensaiador da dança (pauliteiros), que muitas vezes era o próprio gaiteiro, o capador, etc. Por vezes, em circunstâncias excepcionais, e estou em crer que aconteciam raramente, por incompatibilidade entre a maneira de ser exigida por várias dessas funções, estas eram reunidas na mesma pessoa. Todas elas derivavam de dotes pessoais da própria e de uma aprendizagem muitas vezes transmitida por mais velhos, mas não raro aprendida com muito esforço ao longo de anos.

6. O ciclo das festas do Planalto Mirandês era muito diversificado, variando conforme as aldeias, mas havia um padrão comum a todas: havia as festas solsticiais de Inverno, que se iniciavam por volta do dia 24 de Dezembro e se prolongavam até por volta dos Reis, em 6 de Janeiro, e tinham os seus pontos altos em dias diferentes conforme as terras; havia a festa do santo padroeiro, variando de aldeia, para a aldeia quer o santo quer a data da festa; havia as festas das colheitas, em regra por meados de Outubro; havia ainda várias outras festas de menor importância ao longo do ano, em número considerável.
Em todas essas festas era imprescindível a presença do gaiteiro, seu verdadeiro símbolo, como se documenta na conhecida canção mirandesa Mira me Miguel, que a certa altura diz: Bibenir la gaita / Al cimo de l lhugar, / Pouso la mie ruoca / I pongo-me a beilar. // Bibenir la gaita / I l Gaiteiro non, / Ai que pena tengo / Ne l miucoraçon! //. A partir do século XX, em particular depois dos anos 50, o gaiteiro começou a ser substituído por outros actores musicais, mas tal nunca aconteceu completamente. Deixo aqui algumasprimeiras notas sobre esse processo, irreversível e de profundas consequências culturais.
A festa de ano da aldeia, como mais solene festividade, desde muito cedo substituiu o gaiteiro pela banda filarmónica – lembre-se que as bandas filarmónicas modernas começam a surgir na segunda metade do século XIX, mas na nossa região são já da primeira metade do século XX –, passando esta a desempenhar todas as funções do gaiteiro: dava uma volta à aldeia mal chegava, como a substituir a alvorada do gaiteiro, e acompanhava os mordomos no peditório que era feito pelo povo; incorporava-se na procissão tocando; animava os bailes e o arraial noite fora. Os povos mais ricos chegavam a contratar duas bandas filarmónicas. Já durante os anos 60 são os altifalantes que passam discos, que entretanto se vão popularizando, a concorrer com as bandas filarmónicas durante os bailes e arraiais, mas sem delas se prescindir para as restantes funções. Se bem virmos, nada mais que uma evolução previsível, que tem a ver com a própria evolução das técnicas de execução e gravação musical e a sua massificação. Em qualquer caso, este e outros factores de índole mais geral começaram a ameaçar a secular função desempenhada pelo gaiteiro.
Este continuou a pontuar nas restantes festas, por ser mais barato, até meados dos anos 70, altura em que uma crise no próprio número de gaiteiros criou dificuldades, facto a que também não são alheias as profundas transformações sociais relacionadas com a guerra colonial, a emigração e o aumento do índice de escolaridade, com a consequente e cada vez mais intensa desertificação da região. As próprias características da grande festa anual da aldeia transformaram-se e mudaram mesmo de calendário, deslocando-se para o período de regresso dos emigrantes, passando a ser festas em que há mais dinheiro disponível, sobretudo devido aos donativos dos emigrantes e, em geral, a uma melhoria do nível de vida das populações, com as actividades pastoris e agrícolas a perder terreno. Porém, nas festas solsticiais e nas festas das colheitas nunca os gaiteiros foram substituídos, pelo que alguma crise chegou também a essas festas, mas ela foi passageira, sendo retomada a tradição já durante a década de 90 do século XX, embora certos aspectos se tenham perdido talvez de modo irremediável em algumas delas, a marcar o fim de um longo ciclo que vinha pelo menos desde a alta Idade Média com semelhante configuração.
Nos bailes que ao domingo se formavam pelas pracetas das aldeias era sobretudo usado o rigaleijo, pois desde bem cedo alguns rapazes aprendiam a tocar esse instrumento, barato e fácil de transportar no bolso, produzindo também o suficiente volume de som para um pequeno bailarico.Prescindia-se assim do trio de gaiteiro, caixa e bombo, menos à mão, mais caro e menos espontâneo.
Já nas chamadas rondas da mocidade, que eram efectuadas à volta da aldeia, sobretudo por altura das inspecções militares, anualmente, e do paga-vinho dos casamentos, o chamado patente – era mais usada a guitarra e o acordeão, cantando os rapazes à desgarrada ao mesmo tempo que iam desfilando pelas ruas, a que chamavam cantar o fado.
Nas serenatas que noite fora se faziam às raparigas, costume também perdido, era preferida a guitarra, de que sempre se encontrava alguém com um exemplar e pessoa capaz de um dedilhar muitas vezes desconchavado das cordas.

7. Uma festa com gaiteiro, se deixarmos de lado os casos especiais das festas solsticiais, incluía normalmente as seguintes funções: a alvorada, que era tocada ainda antes de o Sol nascer e, normalmente, com o gaiteiro em arruada pela aldeia ou apenas num local fixo; o peditório à volta da aldeia para pagar a festa e a favor do santo em honra de quem a festa era celebrada, em que o gaiteiro deveria estar preparado para executar as melodias solicitadas pelas pessoas que davam esmola, o que exigia um grande domínio do repertório tradicional; o acompanhamento da procissão desde que esta saía da igreja e a ela regressava, incorporando-se o gaiteiro na procissão imediatamente atrás do padre, executando canções religiosas e alguns lhaços; o baile, pela tarde, e o arraial, à noite.
Sempre o gaiteiro aparecia a comandar integrado num trio de tocadores que incluía também a caixa e o bombo. Sobretudo nas festas das colheitas, aparecia acompanhado pelos Dançadores (pauliteiros), e aqui muitas vezes o seu papel era ocupado pelo tamborileiro, que executava as melodias na fraita com uma das mãos e com a outra executava o acompanhamento em tamboril. Desconhecemos desde quando aquela organização se regista, mas o acompanhamento da melodia com a percussão deve ser muito antigo.
Em algumas festas solsticiais, como as Scapadas de Sendim, o gaiteiro aparecia sozinho sem o acompanhamento de qualquer instrumento de percussão. O mesmo acontecia à volta da fogueira de Natal, no dia 24 de Dezembro, em que o toque da gaita era sublinhado pelos gritos constantes de Ui la Gaita!, a que outros respondiam Ui!!! Esta era a prática de Sendim, e aqui aproveito para sublinhar que este texto é também escrito com base na minha vivênciapessoal nesta terra, sobretudo ao longo dos anos 50 e 60 do século XX.

8. Não quero terminar este já longo prefácio sem uma nota completamente diferente e que tem a ver com os dedos dos gaiteiros, por aí pretendendo apresentar todo o exotismo e toda a especificidade de ser gaiteiro em terra de agricultores, pastores e vaqueiros. Os seus dedos são essenciais ao toque da gaita-de-foles, pelo dedilhar da ponteira, exigindo destreza e sensibilidade para a execução de, por vezes, retorcidos floreados e repenicados. Quem já se deu ao trabalho de observar os dedos da gente que trabalha a terra pode verificar como, em regra, são grossos, com muitos calos e desde muito cedo cheios de artroses. Eram esses os dedos da maioria dos gaiteiros mirandeses, dedos que faziam o milagre da música, dedos por onde trepavam os floreados com que cada gaiteiro fazia a sua assinatura musical. E, com a música, esses dedos voavam pelo ar, elevando-se acima da terra que os queria comer, assim se aproximando de outros mundos que já nada tinham a ver com a terra e que faziam dos gaiteiros pessoas diferentes, por um lado respeitados pelo mistério da sua arte, por outro criticados porque eram diferentes e estavam muito além desse ofício de terra que quase não deixa espaço nem vontade para mais nada, mas que os gaiteiros eram capazes de ultrapassar, fazendo a festa, trazendo o riso e a alegria com eles, chamando a dança para lugares onde parecia não haver espaço para nascer mais nada.
Numa terra onde tudo se derretia na dura luta pela sobrevivência, os gaiteiros eram os mágicos do Invento civilizacional mais extraordinário, a música. Nunca saberemos quanto devemos a esses calejados dedos de terra, que acima da terra foram capazes de se elevar, ainda que parecesse impossível, com eles nos fazendo voar, sem que fosse necessário chamar qualquer deus para ajudar.
Hoje, muitos desprezam essa magia, mas ela é também responsável por continuarmos a ser humanos e a olhar além de nós mesmos e das duras e sanguinárias leis da barriga faminta. Quanto respeito lhe tenhamos, será sempre pouco.
Mário Correia deixa-nos aqui um excelente trabalho que será seguramente um marco cultural e pode ser a saída para outros. Há que aprofundar estas histórias e descobrir novas, se possível. O gaiteiro é um dos grandes monumentos da Terra de Miranda e da sua cultura, o que com este livro fica ainda mais claro. Porém, ainda não exteriorizamos esse monumento de forma condigna, e já vai sendo tempo. Estes são alguns dos grandes vultos da cultura mirandesa, cujo reconhecimento é necessário que perdure através do monumento ao gaiteiro e, em muitos casos, através da sua consagração toponímica. Que este livro também nos ajude a mudar, e que possaincentivar tantos jovens gaiteiros e gaiteiras que hoje lhes procuram seguir o caminho, para que conheçam bem as nossas tradições, o nosso repertório musical, e a têmpera verdadeiramente extraordinária dos gaiteiros mirandeses. Estou certo que assim acontecerá, porque a festa é uma necessidade da vida e a música um caminho seguro para cavalgarmos os horizontes infinitos do Planalto Mirandês.

9. Deixo uma última nota sobre as transformações havidas e os caminhos que se perfilam para o futuro. Parece-me uma reflexão de grande importância pois estou convencido que um ciclo se fechou e outro se está a abrir, sendo necessário que este evolua com a devida consistência e tendo consciência do que mudou e de algumas exigências que se colocam. Esse caminho terá de ser encontrado pelos próprios gaiteiros e outros agentes culturais, não sendo esta nota mais que uma síntese de reflexão preocupada de quem acompanha empenhadamente estas realidades da cultura.
O ambiente onde nasceu e que suportou a sobrevivência do gaiteiro mirandês deixou de existir para sempre, acompanhando a sorte das comunidades rurais hoje mais urbanizadas, despovoadas e com quase infinitos outros meios de diversão musical à sua disposição. Subsistem ainda elementos, mas eles não devem iludir-nos ou fazer esquecer aquela realidade. Mudou a ligação umbilical entre o gaiteiro e a maioria das festas do Planalto Mirandês; mudaram as condições de nascimento e reprodução dos gaiteiros e a sua aprendizagem, agora com o surgimento de escolas de gaiteiros e de mulheres gaiteiras, aspecto que não deve ser negligenciado quanto à sua capacidade transformadora a prazo; mudou a forma de disponibilizar os instrumentos musicais, a partir do momento em que se tornou relativamente fácil obter uma gaita-de-foles mirandesa, agora padronizada e portanto permitindo a execução em conjunto mais ou menos alargados; mudaram as exigências em relação à capacidade técnica do gaiteiro, hoje possível de comparar com outros exemplos mesmo internacionais, passando cada vez o nível a ser aferido por grupos como os GalandunGalundaina ou gaiteiros como Célio Pires, Abílio Topa e Henrique Fernandes; seguramente se fará sentir uma pressão cada vez maior para uma renovação do repertório, embora na linha da tradição, processo que sempre aconteceu naturalmente, mas estava paralisado, que tem vindo a renascer sobretudo com o impulso de Célio Pires a afirmar-se como um grande compositor popular. E poderia continuar, numa análise que deve ser cada vez mais aprofundada.
Estou certo de que esta obra será também um contributo para essa reflexão, para a qual deixo estas modestas notas, de um leigo na matéria mas profundamente empenhado em tudo quando respeita à cultura do Planalto Mirandês. E também estou certo que os gaiteiros mirandeses continuarão a dar a resposta adequada aos desafios que se colocam.

Lisboa, 8 de Julho de 2012
Amadeu Ferreira


Toques de Sinos na Terra de Miranda


PREFÁCIO

É com profunda alegria que aceito prefaciar a segunda edição deste livro e CD Toques de Sinos na Terra de Miranda. Mário Correia solicitou-me esta apresentação na Igreja Concatedral da Diocese de Bragança-Miranda, no dia da solenidade da Epifania do Senhore festa do Menino Jesus da Cartolinha, quando, em dia frio no planalto mirandês, os sinos exalavam o jubiloso calor da sua melodia.
A arte de construir instrumentos de metal (ferro ou bronze) para assinalar, com o seu som, o ritmo de uma comunidade é muitoantiga. É, com efeito, costume antigo convocar o povo cristão e adverti-lo dos principais acontecimentos da comunidade local por meio de sinais e de sons. O toque dos sinos exprime, de algum modo, os sentimentos do povo de Deus, quando exulta ou chora, quando dá graças ou suplica, quando se reúne e manifesta o mistério da sua unidade em Cristo. Esta mútua cumplicidade faz deles como que uma referência comunitária, e propiciou, na cultura de cada localidade, o desenvolvimento de uma verdadeira expressão artística, transmitida de geração em geração.
De facto, o toque dos sinos, como documenta esta interessantepublicação, está de certo modo intimamente relacionado com a vida do povo de Deus para uma parcela da Igreja (cidade, vila ou aldeia) ou para alguns dos seus fiéis, como nos seminários, mosteiros ou conventos:
• assinala os tempos de oração (Avé-Marias, contra as trovoadas);
• reúne o povo para as celebrações litúrgicas;
• adverte os fiéis quando se dá um acontecimento importante que é motivo de alegria (repiques festivos) ou de tristeza (funerais, culto dos mortos);
• marca as horas do tempo quotidiano, sendo em alguns lugares o relógio comunitário.
Em virtude da íntima relação que os sinos têm com a vida do povo cristão, foi-se impondo o costume, que felizmente se conserva,de os benzer antes de serem colocados no campanário. Uma das orações de bênção reza assim: «fazei que, ao ouvirem o chamamento dos sinos, os vossos fiéis acorram à igreja com prontidão e alegria e, perseverando no ensino dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fracção do pão e nas orações, sejam um só coração e uma só alma, para louvor da vossa glória».
Quando ouvimos os sinos, sentimos a vastidão. Quando eles oscilam, na torre da Concatedral ou das igrejas de Miranda, podemos exclamar: «como é grande o mundo» dizem os sinos, «assimpleno de saudade… Deus chama… só Nele está a paz» (R. Guardini).
Que os sinos das terras de Miranda continuem a participar das alegrias e das tristezas das suas gentes, para que quantos os tocam e os ouvem sintam a presença de Cristo, nossa única esperança.

José Manuel Garcia Cordeiro
44.º Bispo de Bragança-Miranda 

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