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PREFÁCIO
OS GAITEIROS DO PLANALTO MIRANDÊS
Mário Correia, de modo
adequado, engloba numa única unidade cultural e histórica os gaiteiros do
Planalto Mirandês, pois a cultura dos três concelhos que o compreendem (Miranda
do Douro, Mogadouro e Vimioso) não tem apenas laços estreitos entre si, mas é
uma mesma cultura forjada ao longo de séculos, já desde a medieval Terra de
Miranda e, estou certo, já de muito antes, pese embora o campo da língua comum
se ter vindo a estreitar desde então. A nova divisão administrativa, a vigorar
desde há vários séculos e em especial desde a primeira metade do século XIX,
não conseguiu alterar esta realidade e o enquistamento que tem sido
desenvolvido mais recentemente em torno de cada um dos concelhos, como se de
unidades independentes se tratasse, também não alterou esse estado de coisas.
Talvez ainda devesse ter ido mais longe, abarcando as franjas do sudeste do
concelho de Bragança pertencentes ao antigo concelho de Outeiro (de Miranda) e
à parte nordeste do concelho de Freixo de Espada à Cinta, em especial Fornos e
Lagoaça.
Estava a faltar uma obra de
fôlego que permitisse um conhecimento dos gaiteiros e a sua história,
resgatando-os do esquecimento, e desse a conhecer a sua importância no âmbito
da cultura das comunidades a que estiveram mais ligados e à cultura e à música
mirandesa em geral. À falta de documentos escritos para a quase totalidade dos
gaiteiros, o autor socorreu-se sobretudo do testemunho dos que os conheceram e
com eles conviveram, procurando reconstituir a sua vida e actuação, com
incursões mais ou menos aprofundadas, conforme os materiais disponíveis,
relativas à técnica, ao repertório, à zona de influência, à aprendizagem e à
origem do instrumento. Ao longo de anos, Mário Correia foi pacientemente
recolhendo a escassa documentação existente, ouvindo, registando, relacionando
e aqui está o resultado. Ao mesmo tempo, Mário Correia faz o ponto da situação
do que foi sendo escrito ou testemunhado por outros mirandeses, com particular
destaque para jovens gaiteiros em plena actividade, como Paulo Preto, Abílio
Topa, Célio Pires e Henrique Fernandes que, de modo activo e juntamente com
outros, têm sido decisivos para o resgate deste património cultural
inestimável.
Atendendo às fontes possíveis
de que se serviu, as histórias escritas por Mário Correia abarcam pouco mais
que um século, iniciando-se no fim do século XIX, pois mais longe não chega a
memória oral, mesmo através de testemunhos indirectos. Não fora a documentação
recentemente descoberta e relativa ao tiu
Pepe de Freixenosa e o universo seria ainda bem menor. Sabemos que o toque da
gaita no planalto mirandês é muito antigo, pois já em 1609 Severim de Faria se
lhe refere a propósito da forma como foi recebido em Vila d’Ala, facto que
mostra bem o lugar que o gaiteiro ocupava na hierarquia do gosto musical das
pessoas, pois os habitantes dessa comunidade terão apresentado o que de melhor
tinham para distrair e agradar ao ilustre visitante, deão da Sé de Évora em
viagem de cumprimentos ao novo arcebispo da cidade alentejana, dignidade a que
havia sido elevado o então bispo de Miranda.
Há alguma documentação
histórica ainda não publicada e outra não estudada que faz referências, ainda
que pontuais, aos gaiteiros, às comunidades de que são originários e às festas
em que deviam participar, nomeadamente por indicação da Câmara Municipal, em
especial a de Miranda do Douro. Nesses documentos devem incluir-se os emanados
do bispado de Miranda e das visitações às paróquias ordenadas pelos bispos, que
estabelecem proibições de os gaiteiros actuarem nas igrejas ou em certas
cerimónias religiosas, pois nos permitem conhecer alguns hábitos, a importância
dos gaiteiros na vida da comunidade e, de modo indirecto, algum do seu
repertório, que teria necessariamente uma componente religiosa muito
substancial.Embora desses documentos pouco mais constem que referências
genéricas, é importante o seu conhecimento e estudo para melhor avaliar das
práticas e das competências musicais existentes nas aldeias do Planalto mirandês,
mas também da capacidade de resistência das práticas musicais e outras
tradições populares.
Este é um capítulo da cultura
mirandesa e, em especial, da história da sua música e não um mero documento
etnográfico, orientação com que estes temas têm sido tratados na maior parte
das vezes entre nós. Pode parecer questão de somenos, mas a perspectiva de
abordagem é essencial para uma adequada compreensão, conhecimento e valorização
da nossa história cultural, em particular no domínio da música. O tratamento
etnográfico deve continuar a ser tido em conta, mas torna-se necessário ir mais
longe, sob pena de apenas apreendermos uma parte da realidade. Seria vantajoso
que surgissem novas e mais específicas monografias, quer relativas ao
repertório musical, quer às técnicas de execução ou ainda às práticas sociais,
em particular festivas, de execução musical, aqui incluído o uso dos vários
tipos de instrumentos musicais, a sua combinação ou a utilização preferencial
para esta ou aquela actividade.
2. O uso de instrumentos
musicais no Planalto Mirandês não se limitava à gaita-de-foles e aos
instrumentos de percussão que em regra a acompanhavam, a caixa e o bombo.
Talvez o instrumento mais popular fosse a flauta de três buracos (fraita) essencial na arte do tamborileiro,
que muitas vezes substituía a gaita-de-foles. Normalmente era pela flauta que
os pastores começavam a sua aprendizagem, pois esse era um instrumento mais
rudimentar na sua feitura e por isso mais facilmente ao alcance de quem o
desejasse. Eram frequentes, e muito populares, o acordeão/concertina
(harmónico) e o rigaleijo (conhecida
como gaita ou harmónica de beiços), mais raramente a rabeca e a sanfona, esta
em tempos mais recuados. Além das castanholas e da pandeireta, era o pandeiro o
mais importante instrumento de percussão, usado para acompanhar danças várias e
modas populares, três instrumentos de percussão objecto de culto e por vezes de
grande virtuosismo dos seus executantes. Mas vários outros instrumentos eram
utilizados, muitas vezes rudimentares e de uso muito ocasional, em particular
vários instrumentos de percussão ou usados como tal, como a zabumba, as
carracas, o cântaro de barro e, por vezes, materiais de trabalho ou domésticos.
Saliente-se aqui o trabalho de recuperação/construção instrumental que tem
vindo a ser prosseguido por Paulo Meirinhos, também ele um grande músico,
primeiro do pandeiro e depois da rabeca.
De todos os instrumentos
referidos, podemos dizer que a gaita-de-foles ocupava o topo superior da
escala, sendo o único capaz de suportar integral e satisfatoriamente a animação
tradicional das festas do Planalto Mirandês, incluindo do ponto de vista
religioso. O único que dele se aproximava era a fraita, porém com menos versatilidade, menos capacidade melódica,
menor sonoridade e, possivelmente, também de maior dificuldade de execução,
instrumento também muito ligado à “dança” (pauliteiros). O acordeão e o rigaleijo não só apareceram mais
recentemente como eram apenas adequados às festas profanas de baile e, pelo
menos o rigaleijo, a grupos mais
pequenos de bailes de rua, que muitas vezes se formavam espontaneamente aos
domingos e dias de descanso, dada a facilidade de transporte e uso do
instrumento além de ser relativamente barato.
Pelas razões apontadas, nenhum
dos referidos instrumentos deu origem e suportou uma figura social, musical e
cultural como a do gaiteiro, elemento fundamental da paisagem sonora mirandesa
e da sua cultura musical. O seu relevo era tal que no período mais intenso das
festas populares o gaiteiro assumia praticamente foros de profissão a tempo
inteiro, sendo fonte de rendimento que dela permitia viver, nalguns casos
razoavelmente. Porém, acabado o ciclo das festas, o gaiteiro voltava à sua
actividade de agricultor ou de pastor, substituído nessas lides pela mulher ou
pelos filhos enquanto duravam as festas. Embora o ciclo das festas pudesse
ocorrer em períodos de menor intensidade de trabalho agrícola – o que nem
sempre acontecia, pois até há alguns anos as grandes festas de Santa Bárbara
ocorriam quase sempre no mês de Maio, propício a trovoadas devastadoras para as
culturas nascentes –, estamos em regra perante agricultores ou pastores pobres
que mais facilmente podiam largar sem grave prejuízo as suas actividades ou
nelas ser substituídos. Na maioria dos casos, esses profissionais eram
conhecidos pelo nome de ‘tiu
gaiteiro’ e várias famílias ganharam a nomeada de ‘gaiteiro’, que perdura até
aos nossos dias.
A gaita era o único instrumento
que, até certa altura, entrava nas igrejas das aldeias para acompanhar as
cerimónias religiosas, pois o órgão era raro e exclusivo das ricas igrejas e
das catedrais, e que acompanhava as procissões, o que também atesta como era
nobre e socialmente considerado. Lembre-se que até ao Concílio Vaticano II, em
meados dos anos 60 do século XX, a missa era em latim e praticamente com nula
participação popular, sendo importante o acompanhamento instrumental para
amenizar ou enfatizar o silêncio litúrgico. São conhecidos vários toques
adequados a partes da missa, como “ao elevar da hóstia” e outro repertório que
desconhecemos ou talvez se tenha perdido após a proibição de esse
instrumentoentrar na igreja, o que aconteceu de forma reiterada nos últimos 200
anos e ainda em meados do século XX, com o bispo D. Abílio Augusto Vaz das Neves.
Está ainda por fazer a história integral dessas proibições e das suas razões,
mas a elas não será alheia a imagem do gaiteiro perante a Igreja e o facto de a
gaita ser um instrumento que servia sobretudo para animar bailes, muitas vezes
considerados licenciosos e pecaminosos pela Igreja, o que não acontecia com o
órgão e instrumentos similares. Também me parece ter-se dado aqui um choque
frontal de culturas, entre a das elites da Igreja e a popular, que acabaram por
se colocar nos antípodas. Com efeito a Igreja considerava o gaiteiro e o seu
instrumento como menos digno de Deus e do espaço sagrado da igreja e da
solenidade da missa, entendida como sacramento, e mais propício à folia
desbragada das festas populares, que a Igreja sempre tolerou e nunca aceitou
por as considerar como sobrevivências do paganismo, mas também como a abertura
de uma porta à acção diabólica e ao pecado por ele fomentado.
O acompanhamento das procissões
nunca deixou de se fazer pois, apesar da relutância da Igreja, foi sendo tolerado
até ser progressivamente substituído pelas filarmónicas, ao longo do século XX.
A tolerância era devida ao facto de a procissão decorrer fora da igreja e ter
sido uma manifestação que nunca conseguiu controlar totalmente, objecto de
práticas muito arreigadas, que exigiam que ela ocorresse com grandiosidade e as
mais diversas manifestações exteriores de uma religiosidade vista com maus
olhos, desde os andores enfeitados com fitas e notas de banco, inúmeros pendões
de diverso tipo a acompanhar, a incorporação de grande quantidade de animais em
vários tipos de festas, etc.
Mais recentemente, a gaita tem
vindo a pouco e pouco a entrar de novo na igreja, o que é demonstrativo não
apenas da abertura da Igreja, mas também de uma nova imagem do gaiteiro e da gaita-de-foles,
não raro associados a um repertório específico considerado mais clássico e
menos popular e a competências musicais formais socialmente valorizadas. Também
não se pode deixar de considerar que esses são frutos de muito trabalho de
informação e investigação que tem vindo a ser realizado, de que esta obra de
Mário Correia faz parte integrante. Espero que este caminho possa continuar a
alargar-se, completando-se a ligação com a tradição mais antiga, ainda que em
moldes necessariamente renovados.
3. Um dos aspectos em que a
investigação de Mário Correia é deveras interessante refere-se à aprendizagem
da técnica e do repertório da gaita-de-foles. Nesse domínio refere a existência
de duas situações fundamentais:a aprendizagem é feita na família, passando de
pai para filho; a aprendizagem é feita de modo individual, sem qualquer apoio
de um mestre, mas exclusivamente assente no talento do aprendiz e na tradição
comunitária.
Há, no Planalto Mirandês, casos
de verdadeiras “dinastias de gaiteiros”, em que o ofício se transmite ao longo
de várias gerações, através da aprendizagem do repertório e da técnica de
execução, bem como da transmissão do instrumento musical. Talvez o exemplo mais
acabado tenha a ver com a família Fernandes (sempre conhecida pelo nome
popular/alcunha de “gaiteiro”), nesta obra bem documentado nas suas passagens
por diversas terras (Prado Gatão, Sendim, Urrós, Moçambique e Brasil), e de que
o elo mais recente é o gaiteiro Henrique Fernandes. Mas outros exemplos
poderiam referir-se, como os de Virgílio Cristal e seu filho Aureliano Ribeiro,
ou o caso um pouco diferente de Célio Pires em relação a vários elementos
familiares.
Porém, o mais frequente é o
gaiteiro por si próprio a todos os níveis: aprende a tocar sozinho, domina o
repertório fundamental e é capaz de fazer a sua própria gaita em todas as suas
componentes, sem depender de ninguém. Este facto era devido à ciosa guarda dos
“segredos” por parte dos gaiteiros mais velhos, em parte motivada pela
necessidade de afastar a concorrência dos mais novos, mas também à enorme
dificuldade em encontrar uma gaita adequada para tocar bem, nomeadamente a sua
parte mais importante, o coração da gaita, a ponteira e respectivas palhetas.
Não raro, o jovem gaiteiro tinha de enfrentar, se não a hostilidade, pelo menos
a animosidade do gaiteiro mais velho e da sua família.
A concorrência era um problema
real, pois os meios de transporte rudimentares, até há pouco tempo, não
permitiam ao gaiteiro abarcar uma ampla área de influência no reduzido ciclo festivo
e está também documentada a preferência dos povos pelos gaiteiros da própria
aldeia, quando existiam, ou por gaiteiros de aldeias vizinhas, por serem
melhores conhecedores dos respectivos gostos e tradições.
A predominância de uma
aprendizagem sem mestre está talvez na origem de nunca ter havido uma
verdadeira escola de gaita mirandesa, para além de certos aspectos que resultam
de um repertório comum e de uma técnica exigida por certas execuções musicais
mais estandardizadas, como é o caso da dança dos paulitos.
A aprendizagem da gaita exigia
tempo e ninguém dele dispunha como os pastores e os vaqueiros. Acompanhando o
gado, tinham muito tempo e as mãos livres para a gaita ou a fraita, o que não acontecia com o
exercício das restantes actividades ligadas ao campo. Por isso, de entre
aqueles ofícios saíram a maioria dos gaiteiros e tamborileiros. Ao não haver um
verdadeiro ensino, na maioria dos casos, o que se impunha era a sensibilidade e
a capacidade musical do aprendiz de gaiteiro, que por si só deveria superar as
dificuldades. Estas duas situações tiveram várias consequências: por um lado, o
ofício de gaiteiro era verdadeiramente popular e os gaiteiros, saindo das
classes mais pobres, não dispunham de prestígio social que lhes adviesse dos
bens materiais, mas apenas da sua actividade de músicos, uma actividade
imaterial; por outro lado, a afirmação de cada novo gaiteiro permitia a
afirmação de um estilo pessoal e, até certo ponto, um renovar da tradição,
tanto maior quanto maior fosse o seu génio. Alguma crítica social que se fazia
aos gaiteiros não deixava de atender à sua origem humilde, ao seu diferente
estilo de vida, a contrastar com o normal da população, e à sua vida ligada à
festa e à dança, nem sempre valorizadas socialmente, quer pela Igreja quer
pelas pessoas no seu dia-a-dia, expressão de um modo de pensar que ficou bem
cristalizado na fábula da cigarra e da formiga.
4. Um quebra-cabeças para
qualquer gaiteiro e, sobretudo, aspirante a gaiteiro, era o seu instrumento, em
especial a ponteira e as respectivas palhetas. A ideia foi sempre a de que cada
um devia fazer a sua gaita, porém a concretização dessa intenção nunca foi
fácil para a maioria dos gaiteiros e, no essencial, era um mito. Todos tentavam
e chegavam mesmo a fazer tornos rudimentares para o fabrico da gaita, mas os
resultados nem sempre eram os desejados em termos harmónicos, pelo que todos
buscavam adquirir o instrumento de algum velho gaiteiro, em especial a
ponteira. E, nesta sua obra, Mário Correia procura seguir o percurso dos
instrumentos de vários famosos gaiteiros, trazendo importantes novidades a essa
história.
Durante muito tempo foi o que
ficou conhecido como tiu Fuseiro de
Genízio, apesar de não ser gaiteiro nem tocador de gaita, foi o principal
fabricante de ponteiras para muitos tocadores de gaita do Planalto
Mirandês, ao longo da primeira
metade do século XX. Algumas dessas ponteiras tornaram-se verdadeiramente
proverbiais pela sonoridade e timbre, e vieram a servir mais tarde para ajudar
na busca de uma sonoridade mirandesa para a gaita-de-foles, quando se pretendeu
estandardizá-la e buscar uma sonoridade e uma afinação mais próximas das
tradicionais. Apesar destes fabricantes locais de ponteiras e, em geral, de
gaitas-de-foles, podemos verificar pelos relatos como foi intenso o uso de
instrumentos das regiões zamoranas de Aliste e de Sanábria, chegando-se mesmo
ao uso de gaitas galegas, o que mostra como também neste domínio a região
mirandesa nunca foi totalmente fechada, mas sim aberta às mais inúmeras
influências.
Apesar de todas essas
influências, creio poder afirmar-se que o carácter artesanal da construção das
gaitas-de-foles, usando tornos rudimentares e por vezes mesmo uma simples
navalha para trabalhar a madeira, permite falar de uma gaita da região mirandesa
devido à sua “afinação” predominante, ao seu timbre agreste e agressivo, ao som
relativamente poderoso que emitia e lhe permitia actuar em festas ruidosas e,
em geral, estar no centro das festas tradicionais. Os materiais usados eram
tipicamente mirandeses, apesar de não exclusivos do Planalto, desde a madeira
de freixo, de enguelgue e também de buxo, até às peles de cabrito curtidas
artesanalmente para a confecção do fole.
As características da gaita
mirandesa e o carácter único de cada instrumento, incapaz de suportar a
companhia de outros devido à sua não estandardização, ajudaram a fazer de cada
gaiteiro uma espécie de herói solitário, fazendo um só com o seu instrumento.
Dava-se até o caso de em algumas festas tradicionais mais violentas, como
acontecia no Encerramento do Corregedor
em Duas Igrejas e das Scapadas em
Sendim, o gaiteiro actuar com a ponteira firmemente atada por um fio ao braço
que tocava e aparecia como um seu prolongamento, símbolo máximo da unidade
entre o gaiteiro e o seu instrumento, assim protegendo a parte sagrada da gaita
face à “barbárie” profana e violenta das lutas entre solteiros e casados.
A construção de gaitas-de-foles
tem vindo a contar mais recentemente com artesãos de cada vez maior nível, com
particular destaque para José Preto e Célio Pires, entre outros. Este último
tem alargado a sua técnica à construção de fraitas
de três buracos e às sanfonas, evoluindo cada vez mais na sua arte. No domínio
de outros instrumentos, nomeadamente pandeiros e rabecas, já acima referimos o
nome de Paulo Meirinhos.
5. O aparecimento de novos
gaiteiros era algo aleatório, dependendo sobretudo do surgimento de pessoas com
vontade, capacidade e sensibilidade musical que lhes permitissem singrar quase
a partir do zero. Daí que, não raras vezes, os gaiteiros eram homens com uma
cultura, uma sensibilidade e uma tenacidade acima da média dos homens do seu
tempo, da sua aldeia e, por vezes, da região onde viviam, elos essenciais na
transmissão da tradição e ao mesmo tempo na sua renovação. Muitos tinham alguma
dificuldade em se inserir no normal dia-a-dia dos seus conterrâneos, com traços
de comportamento por vezes extravagante, isto é, diferente, com o seu quê de
sonhador, de filósofo, de poeta ou até de sacerdote. Gostavam de andar de terra
em terra no ciclo das festas, sujeitando-se a certos comportamentos das
populações que suportavam por amor à festa, o que muitasvezes era motivo de
estranheza ou até de crítica. Dada a sua condição de andarilho, na época das
festas, o gaiteiro contactava com pessoas com outros hábitos e ideias, trazia
notícias e aprendizagens a que os seus conterrâneos não tinham acesso, pois
raramente saíam da aldeia, presos ao campo e aos animais.
Tudo dependia da personalidade
de cada gaiteiro mirandês, que talvez tenha tido os seus expoentes máximos em
duas figuras cimeiras: por um lado, no fim do século XIX e primeiro quartel do
século XX, no tiu Pepe de Freixenosa
em termos de rigor, de ponderação e disciplina, de nível e amplitude cultural
que ia muito além da gaita-de-foles e da festa, para se converter num
verdadeiro agente cultural respeitado, e também em termos de criatividade; por
outro lado, no tiu Manuel Sampedro de
Travanca, que foi apelidado de gaiteiro filósofo, pois tinha ideias muito
próprias a propósito da gaita e do papel do gaiteiro, e levava uma vida com
aspectos que o demarcavam dos seus contemporâneos, como tocar a gaita em volta
do lameiro onde as suas duas ou três vacas se apascentavam, dizendo que comiam
melhor a erva. Era quase espontaneamente impelido para as Scapadas de Sendin onde, ano após ano, era objecto, e a sua gaita,
das mais diversas tropelias, pois era o próprio gaiteiro e o seu instrumento
que acabavam por servir de trofeu às partes em confronto, os solteiros e os
casados, que defendia originais teorias a propósito da ligação entre a gaita, a
música e o vinho.
Em ambos os casos era idêntica
a dedicação e o amor à música e às festas, hai
que fazer la fiesta!, era igual a admiração popular. Com efeito, se nem
sempre o respeito pelo homem era o maior, devido ao que acima dissemos quanto a
algumas das suas práticas, havia uma grande admiração e apreço pelo gaiteiro,
esse que acompanhava as procissões com toda a solenidade, que tinha magia
suficiente para chamar o sol da vida com a sua Alvorada, que tinha o condão de reunir donativos para o fim comum,
que permitia a festa e em especial o baile que transportava as pessoas para
além do seu pequeno mundo cheio de privações, de dureza e de demónios à solta,
enfim, esse actor de circunstâncias centrais na vida da comunidade, como as
festas solsticiais e as festas das colheitas em Setembro-Outubro, e
acompanhante privilegiado de La Dança
(Os Pauliteiros). A falta de gaiteiro era uma verdadeira infelicidade
comunitária, a ponto de muitos deles terem sido quase obrigados a assumir a sua
condição por pressão da população, o que nos dá bem conta de até que ponto o
gaiteiro e a sua função eram essenciais na comunidade, e por aí percebemos
também como este era um elo cultural que as comunidades não podiam deixar perder,
pois estava colocado como um dos vários pilares em que assentava essa
comunidade.
Em suma, pode parecer estranho
afirmá-lo, mas não tenho dúvidas quanto ao acerto desta afirmação: o gaiteiro
era uma necessidade comunitária, uma verdadeira instituição ainda que com
características próprias, pois ia além dos limites geográficos da aldeia. Nada
que nos espante se lembrarmos que estamos a falar de comunidades
auto-suficientes também no domínio cultural, que não podiam contar com mais
ninguém para lhes fornecer esse tipo de serviços. Para muitos míopes e
ignorantes culturais, fique esta nota sobre a capacidade que o povo sempre foi
tendo para se elevar acima das suas necessidades materiais mais imediatas e de
uma dura vida de trabalho, para valorizar os aspectos culturais ao mais alto
nível da sua própria sobrevivência enquanto comunidade.
Como agente cultural no seio da
comunidade, o gaiteiro mirandês podia desempenhar outras funções ou conviver
com outras pessoas com funções relevantes, como o ensaiador de peças de teatro
tradicional (os quelóquios, sterlóquios ou quemédias), enquanto condutor de orações em certas ocasiões,
sobretudo pelos mortos, o sacristão, o barbeiro/cerjano, o ensaiador da dança
(pauliteiros), que muitas vezes era o próprio gaiteiro, o capador, etc. Por
vezes, em circunstâncias excepcionais, e estou em crer que aconteciam
raramente, por incompatibilidade entre a maneira de ser exigida por várias
dessas funções, estas eram reunidas na mesma pessoa. Todas elas derivavam de
dotes pessoais da própria e de uma aprendizagem muitas vezes transmitida por
mais velhos, mas não raro aprendida com muito esforço ao longo de anos.
6. O ciclo das festas do
Planalto Mirandês era muito diversificado, variando conforme as aldeias, mas
havia um padrão comum a todas: havia as festas solsticiais de Inverno, que se
iniciavam por volta do dia 24 de Dezembro e se prolongavam até por volta dos
Reis, em 6 de Janeiro, e tinham os seus pontos altos em dias diferentes
conforme as terras; havia a festa do santo padroeiro, variando de aldeia, para
a aldeia quer o santo quer a data da festa; havia as festas das colheitas, em
regra por meados de Outubro; havia ainda várias outras festas de menor
importância ao longo do ano, em número considerável.
Em todas essas festas era
imprescindível a presença do gaiteiro, seu verdadeiro símbolo, como se
documenta na conhecida canção mirandesa Mira me Miguel, que a certa altura diz:
Bibenir la gaita / Al cimo de l lhugar, /
Pouso la mie ruoca / I pongo-me a beilar. // Bibenir la gaita / I l Gaiteiro
non, / Ai que pena tengo / Ne l miucoraçon! //. A partir do século XX, em
particular depois dos anos 50, o gaiteiro começou a ser substituído por outros
actores musicais, mas tal nunca aconteceu completamente. Deixo aqui
algumasprimeiras notas sobre esse processo, irreversível e de profundas
consequências culturais.
A festa de ano da aldeia, como
mais solene festividade, desde muito cedo substituiu o gaiteiro pela banda
filarmónica – lembre-se que as bandas filarmónicas modernas começam a surgir na
segunda metade do século XIX, mas na nossa região são já da primeira metade do
século XX –, passando esta a desempenhar todas as funções do gaiteiro: dava uma
volta à aldeia mal chegava, como a substituir a alvorada do gaiteiro, e
acompanhava os mordomos no peditório que era feito pelo povo; incorporava-se na
procissão tocando; animava os bailes e o arraial noite fora. Os povos mais
ricos chegavam a contratar duas bandas filarmónicas. Já durante os anos 60 são
os altifalantes que passam discos, que entretanto se vão popularizando, a
concorrer com as bandas filarmónicas durante os bailes e arraiais, mas sem
delas se prescindir para as restantes funções. Se bem virmos, nada mais que uma
evolução previsível, que tem a ver com a própria evolução das técnicas de
execução e gravação musical e a sua massificação. Em qualquer caso, este e
outros factores de índole mais geral começaram a ameaçar a secular função
desempenhada pelo gaiteiro.
Este continuou a pontuar nas
restantes festas, por ser mais barato, até meados dos anos 70, altura em que
uma crise no próprio número de gaiteiros criou dificuldades, facto a que também
não são alheias as profundas transformações sociais relacionadas com a guerra
colonial, a emigração e o aumento do índice de escolaridade, com a consequente
e cada vez mais intensa desertificação da região. As próprias características
da grande festa anual da aldeia transformaram-se e mudaram mesmo de calendário,
deslocando-se para o período de regresso dos emigrantes, passando a ser festas
em que há mais dinheiro disponível, sobretudo devido aos donativos dos emigrantes
e, em geral, a uma melhoria do nível de vida das populações, com as actividades
pastoris e agrícolas a perder terreno. Porém, nas festas solsticiais e nas
festas das colheitas nunca os gaiteiros foram substituídos, pelo que alguma
crise chegou também a essas festas, mas ela foi passageira, sendo retomada a
tradição já durante a década de 90 do século XX, embora certos aspectos se
tenham perdido talvez de modo irremediável em algumas delas, a marcar o fim de
um longo ciclo que vinha pelo menos desde a alta Idade Média com semelhante
configuração.
Nos bailes que ao domingo se
formavam pelas pracetas das aldeias era sobretudo usado o rigaleijo, pois desde bem cedo alguns rapazes aprendiam a tocar
esse instrumento, barato e fácil de transportar no bolso, produzindo também o
suficiente volume de som para um pequeno bailarico.Prescindia-se assim do trio
de gaiteiro, caixa e bombo, menos à mão, mais caro e menos espontâneo.
Já nas chamadas rondas da
mocidade, que eram efectuadas à volta da aldeia, sobretudo por altura das
inspecções militares, anualmente, e do paga-vinho dos casamentos, o chamado
patente – era mais usada a guitarra e o acordeão, cantando os rapazes à
desgarrada ao mesmo tempo que iam desfilando pelas ruas, a que chamavam cantar
o fado.
Nas serenatas que noite fora se
faziam às raparigas, costume também perdido, era preferida a guitarra, de que
sempre se encontrava alguém com um exemplar e pessoa capaz de um dedilhar
muitas vezes desconchavado das cordas.
7. Uma festa com gaiteiro, se
deixarmos de lado os casos especiais das festas solsticiais, incluía
normalmente as seguintes funções: a alvorada, que era tocada ainda antes de o
Sol nascer e, normalmente, com o gaiteiro em arruada pela aldeia ou apenas num
local fixo; o peditório à volta da aldeia para pagar a festa e a favor do santo
em honra de quem a festa era celebrada, em que o gaiteiro deveria estar
preparado para executar as melodias solicitadas pelas pessoas que davam esmola,
o que exigia um grande domínio do repertório tradicional; o acompanhamento da
procissão desde que esta saía da igreja e a ela regressava, incorporando-se o
gaiteiro na procissão imediatamente atrás do padre, executando canções
religiosas e alguns lhaços; o baile,
pela tarde, e o arraial, à noite.
Sempre o gaiteiro aparecia a
comandar integrado num trio de tocadores que incluía também a caixa e o bombo.
Sobretudo nas festas das colheitas, aparecia acompanhado pelos Dançadores (pauliteiros), e aqui muitas
vezes o seu papel era ocupado pelo tamborileiro, que executava as melodias na fraita com uma das mãos e com a outra
executava o acompanhamento em tamboril. Desconhecemos desde quando aquela
organização se regista, mas o acompanhamento da melodia com a percussão deve
ser muito antigo.
Em algumas festas solsticiais,
como as Scapadas de Sendim, o
gaiteiro aparecia sozinho sem o acompanhamento de qualquer instrumento de
percussão. O mesmo acontecia à volta da fogueira de Natal, no dia 24 de
Dezembro, em que o toque da gaita era sublinhado pelos gritos constantes de Ui la Gaita!, a que outros respondiam Ui!!! Esta era a prática de Sendim, e
aqui aproveito para sublinhar que este texto é também escrito com base na minha
vivênciapessoal nesta terra, sobretudo ao longo dos anos 50 e 60 do século XX.
8. Não quero terminar este já
longo prefácio sem uma nota completamente diferente e que tem a ver com os
dedos dos gaiteiros, por aí pretendendo apresentar todo o exotismo e toda a
especificidade de ser gaiteiro em terra de agricultores, pastores e vaqueiros.
Os seus dedos são essenciais ao toque da gaita-de-foles, pelo dedilhar da
ponteira, exigindo destreza e sensibilidade para a execução de, por vezes,
retorcidos floreados e repenicados. Quem já se deu ao trabalho de observar os
dedos da gente que trabalha a terra pode verificar como, em regra, são grossos,
com muitos calos e desde muito cedo cheios de artroses. Eram esses os dedos da
maioria dos gaiteiros mirandeses, dedos que faziam o milagre da música, dedos
por onde trepavam os floreados com que cada gaiteiro fazia a sua assinatura musical.
E, com a música, esses dedos voavam pelo ar, elevando-se acima da terra que os
queria comer, assim se aproximando de outros mundos que já nada tinham a ver
com a terra e que faziam dos gaiteiros pessoas diferentes, por um lado
respeitados pelo mistério da sua arte, por outro criticados porque eram
diferentes e estavam muito além desse ofício de terra que quase não deixa
espaço nem vontade para mais nada, mas que os gaiteiros eram capazes de
ultrapassar, fazendo a festa, trazendo o riso e a alegria com eles, chamando a
dança para lugares onde parecia não haver espaço para nascer mais nada.
Numa terra onde tudo se
derretia na dura luta pela sobrevivência, os gaiteiros eram os mágicos do
Invento civilizacional mais extraordinário, a música. Nunca saberemos quanto
devemos a esses calejados dedos de terra, que acima da terra foram capazes de
se elevar, ainda que parecesse impossível, com eles nos fazendo voar, sem que
fosse necessário chamar qualquer deus para ajudar.
Hoje, muitos desprezam essa
magia, mas ela é também responsável por continuarmos a ser humanos e a olhar
além de nós mesmos e das duras e sanguinárias leis da barriga faminta. Quanto
respeito lhe tenhamos, será sempre pouco.
Mário Correia deixa-nos aqui um
excelente trabalho que será seguramente um marco cultural e pode ser a saída
para outros. Há que aprofundar estas histórias e descobrir novas, se possível.
O gaiteiro é um dos grandes monumentos da Terra de Miranda e da sua cultura, o
que com este livro fica ainda mais claro. Porém, ainda não exteriorizamos esse
monumento de forma condigna, e já vai sendo tempo. Estes são alguns dos grandes
vultos da cultura mirandesa, cujo reconhecimento é necessário que perdure
através do monumento ao gaiteiro e, em muitos casos, através da sua consagração
toponímica. Que este livro também nos ajude a mudar, e que possaincentivar
tantos jovens gaiteiros e gaiteiras que hoje lhes procuram seguir o caminho,
para que conheçam bem as nossas tradições, o nosso repertório musical, e a
têmpera verdadeiramente extraordinária dos gaiteiros mirandeses. Estou certo
que assim acontecerá, porque a festa é uma necessidade da vida e a música um
caminho seguro para cavalgarmos os horizontes infinitos do Planalto Mirandês.
9. Deixo uma última nota sobre
as transformações havidas e os caminhos que se perfilam para o futuro.
Parece-me uma reflexão de grande importância pois estou convencido que um ciclo
se fechou e outro se está a abrir, sendo necessário que este evolua com a
devida consistência e tendo consciência do que mudou e de algumas exigências
que se colocam. Esse caminho terá de ser encontrado pelos próprios gaiteiros e
outros agentes culturais, não sendo esta nota mais que uma síntese de reflexão
preocupada de quem acompanha empenhadamente estas realidades da cultura.
O ambiente onde nasceu e que
suportou a sobrevivência do gaiteiro mirandês deixou de existir para sempre,
acompanhando a sorte das comunidades rurais hoje mais urbanizadas, despovoadas
e com quase infinitos outros meios de diversão musical à sua disposição. Subsistem
ainda elementos, mas eles não devem iludir-nos ou fazer esquecer aquela
realidade. Mudou a ligação umbilical entre o gaiteiro e a maioria das festas do
Planalto Mirandês; mudaram as condições de nascimento e reprodução dos
gaiteiros e a sua aprendizagem, agora com o surgimento de escolas de gaiteiros
e de mulheres gaiteiras, aspecto que não deve ser negligenciado quanto à sua
capacidade transformadora a prazo; mudou a forma de disponibilizar os
instrumentos musicais, a partir do momento em que se tornou relativamente fácil
obter uma gaita-de-foles mirandesa, agora padronizada e portanto permitindo a
execução em conjunto mais ou menos alargados; mudaram as exigências em relação
à capacidade técnica do gaiteiro, hoje possível de comparar com outros exemplos
mesmo internacionais, passando cada vez o nível a ser aferido por grupos como
os GalandunGalundaina ou gaiteiros como Célio Pires, Abílio Topa e Henrique
Fernandes; seguramente se fará sentir uma pressão cada vez maior para uma
renovação do repertório, embora na linha da tradição, processo que sempre
aconteceu naturalmente, mas estava paralisado, que tem vindo a renascer
sobretudo com o impulso de Célio Pires a afirmar-se como um grande compositor
popular. E poderia continuar, numa análise que deve ser cada vez mais
aprofundada.
Estou certo de que esta obra
será também um contributo para essa reflexão, para a qual deixo estas modestas
notas, de um leigo na matéria mas profundamente empenhado em tudo quando
respeita à cultura do Planalto Mirandês. E também estou certo que os gaiteiros
mirandeses continuarão a dar a resposta adequada aos desafios que se colocam.
Amadeu Ferreira
Toques de Sinos na Terra de Miranda
PREFÁCIO
É com profunda alegria que
aceito prefaciar a segunda edição deste livro e CD Toques de Sinos na Terra de Miranda. Mário Correia solicitou-me
esta apresentação na Igreja Concatedral da Diocese de Bragança-Miranda, no dia
da solenidade da Epifania do Senhore festa do Menino Jesus da Cartolinha,
quando, em dia frio no planalto mirandês, os sinos exalavam o jubiloso calor da
sua melodia.
A arte de construir
instrumentos de metal (ferro ou bronze) para assinalar, com o seu som, o ritmo
de uma comunidade é muitoantiga. É, com efeito, costume antigo convocar o povo
cristão e adverti-lo dos principais acontecimentos da comunidade local por meio
de sinais e de sons. O toque dos sinos exprime, de algum modo, os sentimentos
do povo de Deus, quando exulta ou chora, quando dá graças ou suplica, quando se
reúne e manifesta o mistério da sua unidade em Cristo. Esta mútua cumplicidade
faz deles como que uma referência comunitária, e propiciou, na cultura de cada
localidade, o desenvolvimento de uma verdadeira expressão artística,
transmitida de geração em geração.
De facto, o toque dos sinos,
como documenta esta interessantepublicação, está de certo modo intimamente
relacionado com a vida do povo de Deus para uma parcela da Igreja (cidade, vila
ou aldeia) ou para alguns dos seus fiéis, como nos seminários, mosteiros ou
conventos:
• assinala os tempos de oração
(Avé-Marias, contra as trovoadas);
• reúne o povo para as
celebrações litúrgicas;
• adverte os fiéis quando se dá
um acontecimento importante que é motivo de alegria (repiques festivos) ou de
tristeza (funerais, culto dos mortos);
• marca as horas do tempo
quotidiano, sendo em alguns lugares o relógio comunitário.
Em virtude da íntima relação
que os sinos têm com a vida do povo cristão, foi-se impondo o costume, que
felizmente se conserva,de os benzer antes de serem colocados no campanário. Uma
das orações de bênção reza assim: «fazei que, ao ouvirem o chamamento dos
sinos, os vossos fiéis acorram à igreja com prontidão e alegria e, perseverando
no ensino dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fracção do pão e nas orações,
sejam um só coração e uma só alma, para louvor da vossa glória».
Quando ouvimos os sinos,
sentimos a vastidão. Quando eles oscilam, na torre da Concatedral ou das
igrejas de Miranda, podemos exclamar: «como é grande o mundo» dizem os sinos,
«assimpleno de saudade… Deus chama… só Nele está a paz» (R. Guardini).
Que os sinos das terras de
Miranda continuem a participar das alegrias e das tristezas das suas gentes,
para que quantos os tocam e os ouvem sintam a presença de Cristo, nossa única
esperança.
José Manuel Garcia Cordeiro
44.º Bispo de Bragança-Miranda
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