Ex.ma Senhora Vereadora da Cultura
da Câmara Municipal de Mogadouro, Eng.ª Tereza Sanches,
Minhas senhoras e meus senhores,
No princípio era a Palavra…
E é a Palavra de Amadeu Ferreira
que hoje nos traz aqui, a este prestigioso palco da vigésima quinta Feira do
Livro de Mogadouro.E é, para mim, um tremendo orgulho
pessoal poder estar neste palco, ao lado dele, para falar do seu “Tempo de
Fogo”. Quem é este autor que me incumbiu
de apresentar em terra de Trindade Coelho o seu primeiro romance?
I. O Autor
O nome Amadeu Ferreira remete-nos para um vasto universo da cultura
portuguesa da actualidade. É certo que a incansável promoção da Língua
Mirandesa lhe tem proporcionado com mais afinco a luz dos holofotes. Porém,
reduzi-lo a essa imensa dimensão
(reparem no aparente paradoxo), seria, apesar de tudo, muito penalizador.
Penalizador para o poeta, para o
ensaísta, para o historiador, para o investigador, para o linguista, para o
jurista, e, agora, para o romancista.
Muito gostava eu de o poder
apresentar em Língua Mirandesa! Mas o rudimentar conhecimento que possuo dela,
infelizmente não mo permite. Apesar de me encantar a sua sonoridade, desde que
há cerca de quarenta anos vivi em Bila Tchana, nunca me opus a estudá-la com
afinco. Daí que me tenha socorrido desta maravilhosa ferramenta que é a
internet e tenha conseguido aceder ao currículo on line de Amadeu, escrito por ele, em mirandês e de que passo a
citar pequenos excertos onde, propositadamente omiti as referências à sua vasta
obra, realçando outrossim a personalidade, a determinação e o carácter do
Homem:
Naci an Sendin (29 de Júlio de
1950) i stou a bibir an Lisboua zde 1981.
Deç pequeinho siempre tube la
manha de screbir, subretodo bersos.
Fago por poner an prática la
seguinte eideia que a mi mesmo m'ampus: nun
deixar passar un die sin FAZER algo pula lhéngua mirandesa.
Ende l más amportante ye
l'atitude que ancarna an pequeinhas cousas, cousas mesmo mui pequeinhas que hai
que fazer todos ls dies, an qualquiera sítio i delantre de qualesquiera pessonas.
Cousas tan pequeinhas cumo falar, registrar, oubir, nua atitude de star siempre
a daprender, a çcobrir. Cousas tan pequeinhas cumo trasmitir l que daprendimos.
Cousas tan pequeinhas cumo tener pacéncia para cumbencir de l que achamos que
stá cierto, sin tener que oufender.
Mais palavras para quê. Estamos na
presença de um homem com uma cultura invulgar, mas, também um homem com uma
personalidade igualmente fora de série. Pequenas provas disso já as tive em
pequena troca epistolar. Outros que com ele têm o privilégio de conviver no dia-a-dia
poderão aferi-lo melhor do que eu. Mas, vamos à “Palavra”. Vamos ao “Tempo de
Fogo”.
II A Obra:
“Tempo de Fogo”… “La Bouba de La
Tenerie”. Dois títulos. Uma obra. Duas Línguas, uma só “Palavra”. A “Palavra”
que Frei António da Santíssima Trindade usou para se aproximar de Laurinda, a tola da Teneria. A mesmíssima “Palavra” que o professor
João Gabriel há-de descobrir, alguns séculos depois, para nos transmitir as
suas angústias e as suas incertezas acerca da verdadeira pedagogia.
No “Tempo de Fogo”, Sendim é o
centro do Mundo. “Pelo meu povo, se vê o Mundo todo”, já diz o ditado popular.
E o autor faz dessa máxima o seu guião. Amadeu pega no quotidiano ronceiro de
uma pequena comunidade rural e preenche-o com personagens prenhes de
humanidade. Nem Hieronymus Bosch com a sua paleta magnífica, almejaria pintar
de forma tão convincente o quotidiano da época.
Uma época de fogo, como bem sugere
o título. Uma época de inquietação, onde se cruzam os terrores obscurantistas
da Santa Inquisição com os anseios de gente simples. Uma época de choque entre
as mentalidades tacanhas da pequena comunidade rural, asfixiada por uma Igreja
dominadora, e o cosmopolitismo de Frei António que estudou em Salamanca e de
António Tolês que viajou e conheceu uma boa parte da Europa.
Como realça a investigadora da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Teresa Martins Marques, este é
um romance em trânsito, em que o autor aproveita para descrever superiormente a
paisagem rural e os usos e costumes da época: as pequenas peregrinações, as
romarias, as feiras, as levas de
presos a caminho dos cadafalsos da Inquisição.
Frei António faz a sua viagem
espiritual e revê a vida diante de si, enquanto caminha para o castigo pelos
pecados cometidos por amor. Sim, este também é um romance em que os amores
ganham o epicentro da meada. Amores proibidos, amores platónicos, amores
carnais.
António Tolês vai à Feira do Naso
vender plantas do renovo. Perseguido pelos fantasmas do sangue mau (“levava a impureza de sangue colada à pele,
como um destino”, refere o narrador a dado passo) e de sua avó queimada em
Toledo. Haverá de atravessar as vidas de Frei António e de Ludovina como um
furacão que deixa atrás de si um rasto perene. Viajou por Itália, França e pela
Flandres, mas é ali, em Sendim, que o destino o vai largar.
Amadeu aproveita as personagens
para colocar questões fulcrais ao leitor. O Tolês pergunta: “se existem, não deveriam os deuses matar-se
uns aos outros, em vez de porem as pessoas a morrer por eles?” e ainda, na
mesma linha de humor fino e extremamente cáustico, ataca o edifício religioso,
como se observa através desta soberba passagem: “os que são fanáticos da religião ficam doidos a ponto de serem capazes
de se entregar ao demónio e mergulhar nos Infernos, apenas com medo de que
Deus, por engano, os recebesse no céu com tantos pecados”. Mas a religião
não é apenas causticada. Ela também é encarada como o cimento da vida social,
como uma espécie de garante do cosmos por oposição ao caos: “por isso há muito criámos um deus que fosse
como um polícia sempre presente para nos vigiar em qualquer lugar onde
estivéssemos(…)”.
Mas, voltando às personagens que
enriquecem esta obra, falemos agora de Henrique Peres, de Manuel Miguel e de Maria Castra que têm
como único denominador comum a feira de Mogadouro. No entanto, os seus caminhos
haverão de entrecruzar-se numa malha superiormente tecida e ornamentada pela
pena do escritor, com desfechos inesperados. Não cabe aqui dizer-vos qual.
Cabe-me apenas abrir-vos o apetite. Ludovina e Baltasara, os frades
dominicanos, o Vigário Geral e outros que tais, completam um rico enredo que
nos transporta, como se de uma máquina do tempo se tratasse, para uma época
específica da nossa História, que ficou gravada nos anais com a marca do fogo.
Pelo meio, Amadeu vai-nos dando
algumas pinceladas entre o realista e o burlesco. Não há nada mais delicioso do
que a autocrítica jocosa. O autor fala dos sendineses como uma espécie de raça
maldita. Fazendo jus ao dito popular que afirma que é mais fácil encontrar um
melro branco do que um sendinês bom. “Alma
do diabo de sendinês malarês”, exclama Frei António.
Como se adivinha é incontornável a
relevância da Palavra em mirandês neste romance. A propósito desta estranha
língua, frei Agostinho adverte frei António: “tem cuidado, António, porque as línguas são uma coisa perigosa”.
Então, como agora, e como bem frisa o, professor primário João Gabriel, o
conhecimento é inimigo do Poder.
Parafraseando frei António: “as palavras atiram-se a mim como lobos e
vão-me comendo a alma em fatias. Novo castigo de Sísifo, porque a alma me volta
a crescer entre cada interrogatório” e “quando
me levarem à fogueira, hão-de encontrar-me já sem pinga de alma porque, tanto
quanto possa, hei-de espalhá-la por aqui, presa a palavras no laço azul da
tinta.”
Em jeito de conclusão e seguindo as
sábias palavras do já mencionado João Gabriel, apetece-me dizer: afinal de
contas, em cinco séculos, o que é que verdadeiramente mudou?
E mais não digo. Leiam o romance. É
uma viagem fantástica ao nosso passado comum. Particularmente para os que
conhecem as nossas terras do Planalto Mirandês, há nomes, topónimos e
descrições que nos enchem a alma. Mergulhem nele e deixem-se embrenhar pela luz
da Palavra que rasga as trevas do obscurantismo.Parabéns ao Amadeu. Que as mãos
nunca lhe doam. Que continue a enriquecer o espólio da literatura portuguesa.
Que continue a pugnar pela lhêngua. Que continue a levar o nome destas terras
esquecidas aos quatro cantos do mundo.
Muito obrigado.
Antero
Neto
Mogadouro,
aos dois dias de Junho de 2012
Ver: http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2012/05/tempo-de-fogo-por-amadeu-ferreira.html
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