Paisagem de Urros (1947).Prof. Dr.Santos Júnior |
A Tia Maria da Natividade, de cantarinha de
barro empoleirada no alto da cabeça, ou enfiada no braço, não era muito alta, mas a sua figura de mulher ágil,
a cara miudinha, numa cabeça apertada
num piruco, emoldurada em meigo e claro olhar, a boca de lábios finos,
aberta em palavras de generosidade e
alegria, faziam dela uma grande pessoa,
diferente das outras, daí imaginá-la, sempre, como alta e grande mulher!
Ocupava-se
das ovelhas, do queijo e do leite, os
mais apreciados entre todos os da aldeia,
enchendo de brios de trabalho e fartura as tábuas de coalhadas
brancas enluaradas, a secar em casca de
manteiga apimentada e as francelas a escorrer de soro e de tenros requeijões,
numa terra de rebanhos e de pastores. Estava casada com o João Borregão, um
homem sem pressas, sempre com um sorriso arreganhado no rosto redondo de
bondade e de satisfação; nascido e criado entre as ovelhas, e a liberdade dos
montes, e recebido, da sua companhia, a
paz e a bondade dos borregos, era um incansável protector e apaziguador em
quezílias de pastores, para dividir alguma leira ou pedaço de lameiro, pago a
bom preço; era sempre tido e achado em tempo de tomar decisões acertadas e
pacificadoras; para ele estava tudo
bem, e para as suas ovelhas, qualquer nesga de carvalha,
ou folhareca de rebentação, tenra e viçosa, chegavam; tinha que aturar os que assim não pensavam,
mas tido como respeitado e respeitador, não lhe era difícil acalmar ânimos de
pequenas rixas.
Viviam assim uma vida simples, sem
grandes canseiras e cuidados, ocupando-se apenas do pequeno rebanho e dos
animais, em plena serra, numa casinha simples e modesta, onde o galo cantava e
a terra florescia em fartas sementeiras e abençoadas colheitas.
A esse
tempo, um rico comerciante, levado pela ganância, e para conseguir bons lucros,
mandou comprar e cercar os
melhores pastos da sua terra e das redondezas, limitando ao poder e à
ostentação as suas ovelhas e pastores. Toda a gente, surpreendida por tanta
ambição, ficou pasmada perante o acto, de tão desmedido que era, mas ninguém
disse nada, de susto e de receios! Entretanto, a Tia Maria da
Natividade e o João Borregão viviam o seu dia-a-dia, felizes e contentes, longe
do povoado, na serra, vendo correr a águas nos ribeiros e ouvindo o cantar dos
passarinhos, contentando-se com o que Deus lhe deu.
Uma cantarinha de barro, oferecida por seu pai, o velho oleiro, era um
dos preciosos bens da Tia Maria da
Natividade; passou-lhe naquele utensílio rude e vulgar, tão perfeito na forma
como no fim a que se destinava, todo o
amor à terra e às coisas que dela naturalmente brotavam; e a tia Maria
da Natividade sempre pensou que tinha, com aquela dádiva, recebido a obrigação
de lhe dar uso e proveito, e fosse para onde fosse, tinha que se fazer
acompanhar daquela cantarinha; já as outras mulheres andavam cansadas e
estafadas de tanta água acarretar, e ela, calmamente, ao passar por esta ou por aquela fonte, trazia, de imediato, aquilo
que precisava, mas também, se se deparava com alguém, em tempos de calor
abrasivo, de imediato se prontificava a dar de beber a quem tinha sede,
aproveitando, também, para trocar alguma palavra amiga, sem as gastar desnecessariamente,
nunca se esquecendo de dar uso ao precioso presente e do que para ela
significava. E os garotos que lhe andavam por perto, diziam, e da boca das
crianças é que sai a verdade, e diziam todos eles, que a água da cantarinha da
Ti Maria, era muito boa, sabia muito bem!
«A água da Ti Maria é que é boa! Até cura as maleitas dos raparigos! É!
Porque vai- a buscar a Sant´Oplinairo!Anda
que nem uma barboreta! E tudo o que
faz, pode-se ver
Era uma manhã
bonita e serena! O céu estava azul e os passarinhos, em alegres chilreios,
cruzavam os ares em esfusiante algaraviada, a derramar-se em trinados de
alegria e contemplação, e a tia Maria da Natividade, qual Primavera florida, de
blusa enfeitada e chapéu na cabeça, apertado de baixo do queixo, vinha
para casa, a cavalo em seu manso e
humilde burriquito ali na aldeia, onde o queijeiro se desfazia em apuros de
palavreado para levar os rendimentos dos rebanhos, ao melhor preço que lhe
conviesse, e as mulheres, de mãos debaixo dos braços, afastaram-se de imediato,
cochichando de curiosidade ou para tomar o pulso à questão; é que, vendo chegar
a tia Maria da Natividade, recearam pelo seu afamado perfeccionismo.
Apenas
preocupada consigo e com os seus,
preparava-se para entrar em casa, onde a ordem e a limpeza varriam com
serenidade e alegria, todos os contratempos e desentendimentos, mas o cheiro e
a visão daquela angélica figura, com os seus queijos e requeijões a branquejar
pelos buraquinhos de alva toalha de linho, atraíram a curiosidade de tão
espertalhão negociante, que, também se preparou, de imediato para ver e
apreciar o trabalho daquela mulher, tão
simples e arredada do seu mundo de dinheiro e ganância.
Era um homem poderoso e exigiu, de imediato, que todos os queijos lhe
fossem confiscados, de tão apaixonado ficou por aquele precioso manjar; o povo
estava pasmado e nem queria acreditar, a Tia Maria da Natividade, regressou a
casa, triste e receosa pelo seu precioso trabalho; o tempo foi passando, e não
havia novidades; até que um dia, o sábio negociante, determinou, a custo de
muito dinheiro, que todo o queijo da Tia Maria lhe pertencesse, doravante!
Ficou
triste e apoquentado o Ti João! E, vendo
chegar a noite, desceu ao povoado, por entre as sombras das casas, pé aqui, pé
ali, apalpando e tacteando, a fim de repor a justiça sobre aquela questão. E
dirigiu-se a casa do rico comerciante, uma imponente construção, mas longe de
tudo e de todos, isolada do mundo e da
vida.
-
Senhor, porque sois egoísta e malfeitor, apoderando-vos do que é dos
outros? Os nossos queijos e as nossas
coisas, são o nosso retrato, por isso o que é nosso, tratamo-lo com amor! O
sabor dos nossos produtos deve-se à terra onde pastam, aos lameiros
verdejantes, à água que corre nos ribeiros, ao sol que nos guia e ao luar que
nos adormece! Nós e as nossas ovelhas, vivemos descansadamente, sem preocupações, apenas do
que Deus nos dá!
Então o
queijeiro, ganancioso, libertou as
ovelhas, para gozarem, livremente das riquezas naturais das nossas
terras! Ficando, deste modo, os rebanhos de Urros conhecidos por serem os
melhores e mais apreciados, graças aos bons pastos de que se apascentavam, nas nossas terras!
Arinda Andrés - Tininha
Olá Sr. Administrador!
ResponderEliminarEu ainda por aqui ando, vá lá que ainda fui a tempo de falar dos rebanhos, dos queijos e dos requeijões da minha terra. Urros! Terra de rebanhos! E de fartos amendoais, olivais e vinhas; de tudo o que é Trás-os-Montes!
Para todos, um abraço.
Tininha
Estes montes calcorreou-os meu Pai! e meus Avós.
ResponderEliminarUma vez, meu Pai, num ápice, voou de Urros a Moncorvo, "Mas num pode ser, ai, inda agôra aqui estava!" em busca de um medicamento para ajudar o Primo André. Uma pessoa fascinante, de quem, um dia, vos hei-de falar. Foi o André que curou, cresci a ouvir esta frase vezes sem conta.Gratuitamente, tratava todos os enfermos! Diziam que era um santo! E lá teriam as suas razões. E meu Pai contava: Estavamos no sóto do Ti ZÉ Barbeiro,.... e o André disse que só se salvava com um determinado medicamento; eu agarrei na bicicleta e fui buscá-lo, num instante, até gostei, ajudar quem precisa, é sempre um bem que se pratica. "," Conta meu Pai", tantas coisas que se passavam, num cantinho em que todos se conheciam e se ajudavam.
Olá,adorei o texto, parabéns!
ResponderEliminar-Permite-me que escreva umas letras em agradecimento e louvor também a quem "TÃO BEM" falou do meu tio e teu primo (por parte da tua mãe).
Noutros tempos URROS era uma Comunidade onde prevalecia a união!André Canijo era o meu tio, não tive o prazer de conhecer, gostaria de saber muito mais sobre ele...Viveu
em função dos que da sua ajuda necessitavam.Que a sua alma tenha encontrado a paz e a felicidade merecida na companhia dos pais e irmão(meu pai),que tem um lugar único no meu coração, assim como a minha mãe, a eles devo tudo que tenho e sou.O meu tio André salvou muita gente em momentos de aflição, era o enfermeiro da terra, gostaria de saber muito mais sobre ele. Um abraço Celeste Canijo
O amor à aldeia onde nasceu e se criou,o carinho pelas pessoas humildes,simples e trabalhadoras que conheceu,o orgulho nas riquezas naturais da sua terra - tudo neste belo texto
ResponderEliminarque a Tininha nos oferece.Agradecemos.
Uma moncorvense
Olá Tininha!
ResponderEliminarExcelente homenagem aos pastores da nossa terra!Torga não o teria feito
melhor.Este texto,pleno de ternura ,reflete bem a sensibilidade que te vai na alma e invade o coração.Das pessoas referenciadas não tenho memória,mas como sabes,apesar de não ir à nossa terra,mantenho com ela contacto permanente.Ora deixa-me dizer-te se é assim:
A Sra.Maria e o Sr. João não eram os pais da Sra. Lucinda Canastra?
Ela,a Sra. Maria ,que tinha uma cantarinha de barro,o seu bem mais precioso,oferecida pelo seu Pai,oleiro do Felgar...
Ele, o Sr.João de Almendra...Viviam,de facto,na serra numa casa modesta
de haveres,mas repleta de paz e amor.
Continua a escrever,as gentes de Urros ,onde eu estou incluída,agradecem.
Com um beijo de amizade da tua amiga de sempre.
Ireninha
Olá Tininha!
ResponderEliminarO "sóto"do "Ti" Zé Barbeiro,não é do nosso tempo,mas agora sei,que o dono era o Pai do SR.Professor.Era "quase" uma botica ,onde as gentes desses tempos iam tratar as "maleitas"e arrancar dentes à força de alicate...
São histórias de outros tempos,que o meu Pai,lamentálvelmente e por partir antes de tempo,não teve tempo de me contar.
Fazem-no outros por ele...E assim se faz História.
Com um beijo de amizade e gratidão por tão belas recordações.
Ireninha
OLÁ MINHA GENTE!
ResponderEliminarEra uma expressão que a minha Avó usava tantas vezes!"Olá minha gente!", dizia ela com um sorriso certo de sabedoria e experiência.
Vamos lá pedir, ouvir e escutar os nossos velhos, os mais venerados,informações sobre a nossa terra, lugares e hábitos; vamos lá saber mais sobre a gente que nó fomos.Neste caso, estou a referir-me, particularmente, ao primo direito da minha Avó, filho da estimada tia Benedita;o André, aquele que, gratuitamente, porque era bom! e tinha recursos,tratava e ajudava quem precisasse, sobtretudo os que eram " filhos de um Deus menor" e podia fazê-lo, pois dedicava-se ao estudo e ao trabalho inteiramente, mas nunca apoiado, ao contrário do que possa pensar-se, em panaceias de lendas e crendices.Mas uma outra figura de que mais tarde vos falarei.
Com amizade,
Tininha
Olá minha querida Ireninha!
ResponderEliminarOs teus comentários, fruto de uma memória privilegiada e dos laços que nos prendem à nossa terra, trazem-me sempre outras recordações...Obrigada.
Com muita amizade, beijinhos.
Tininha
Bem, eu ontem escrevi aqui uns comentários, mas.... Será que este"ar da minha serra", já sucumbiu?...
ResponderEliminarPelo sim, pelo não, venho agradecer a todos os que comentaram ou que leram os meus textos. Bem haja a todos vós!
Gostei de aqui estar e de vos conhecer
Até sempre!
Tininha
Tininha.
ResponderEliminarMais uma folha de palavras rendilhadas, que retratam tão bem as vivências da nossa Aldeia, em tempos não muito distantes, mas que a memória não apaga.
Hoje, até parece, que nada assim acontecia.
A verdade no entanto, é a descrita na tua renda literária, com a utilização de palavras, que originam imagens lindas, que fazem lembrar as figuras e desenhos utilisados nas rendas feitas á mão, das colchas e tapetes, feitos nos teares, pelas mulheres da nossa Aldeia.
Essas imagens mágicas e únicas,inventadas pela arte e paciência das mulheres de Urros, que, com trabalho e engenho vendiam para todo o país, era muitas vezes o sustento dos seus filhos.
Assim, a memória da cantarinha de barro utilizada pela Tia Maria da Natividade, para dar de beber a quem lhe pedia, também as tuas palavras refrescam a memória de todos os leitores dos Farrapos de Memórias.
Sem o Blog, não seria possível a leitura deste e outros textos , que nos fazem regressar á origem das nossas raízes.
A mensagem de justiça transmitida pelo João Borregão, ilustra bem o sentido de responsabilidade e a preocupação social que as pessoas de Urros tinham nessa época.
A solidariedade era geral e esse espírito solidário, sempre foi transmitido pelas mulheres e homens bons da nossa terra.
A tua escrita também embebeda, pela maneira como nos faz viajar no tempo e viver de novo tantas recordações de felicidade.
Obrigado pelas viagens gratuitas para encontros com tantos amigos e amigas que viajaram e a tua escrita me faz recordar.
Com amizade
Manuel Sengo
Olá Manuel:
ResponderEliminarAs tuas palavras soam a tempos bem distantes.Porém, estão bem próximos de todos nós.
A Tia Maria, o João Borregão, iam e vinham em todas as ruas da nossa infância. Oxalá eu saiba retratá-los com o respeito que todos eles me merecem.Eram outros tempos, sem dúvida, mas em que a amizade, a justiça, o espírito de partilha eram práticas conhecidas de toda a gente.Desconhecia-se a palavra nova, estranha, (sustentabilidade, inclusão, solidariedade) mas " respeito" era familiar e aplicava-se a tudo e a todos.Também havia "coisas menos boas", claro.Como em tudo. Mas, felizmente que assim é, apenas recordo as melhores! Ainda bem que a amizade, o amor e o carinho, nos fizeram esquecer as pequenas "coisas " do passado; No mundo, tão pequeno, do nosso cantinho, os problemas eram à nossa medida. Resolviam-se, tinham solução. O mundo evoluiu, hoje não há tempo para rendilhados, tapetes, ou outros lavores, que manifestavam, retratavam um tempo feito de paciência, disponibilidade e entrega.
Obrigada pelas vossas palavras.
Com muita amizade,
Tininha
Olá Senhora Moncorvense!
ResponderEliminarMuito obrigada pela simpatia e carinho das suas palavras.
Afinal ainda estamos todos por aqui!
Beijinho,
Tininha
Olá minha querida Letinha!
ResponderEliminarMuito obrigada pelo teu comentário.
Também eu gostaria de te falar do teu tio André, o "nosso André", como diziam os meus Avós, mas talvez os mais idosos, em Urros, nos possam trazer mais alguma luz sobre o assunto. A SEU TEMPO, falarei deste amigo e de tantos outros.
Beijinhos,
Tininha
Depois deste texto, destes comentários, Trás-os-Montes, afinal, segundo a foto do blogue, é, também, um grande e imenso Oceano!, De fé, de vontades, de tenacidade, de coragem e de esperança!
ResponderEliminarA literatura não permite navegar, mas permite pensar.
ResponderEliminarOs grandes oceanos permitiram a inspiração para a maior obra literária lusa.
Saramago navegou num grande e imenso oceano, até que um dia o prémio Nobel lhe bateu à porta.
Um mar de gente afirmava que não sabia escrever, mesmo sem ler o que ele escrevia.
A escrita é única, permite que a mente construa o mais lindo romance.
A ironia quando utilizada indevidamente permite destruir a mais bela obra literária.
Apenas os mais afortunados estão aptos a utilizar e compreeender a ironia.
Neste grande e imenso oceano transmontano, navegam certamente muitos homens e mulheres, que pensam a partir do que se escreve.
A originalidade por vezes agride e a inveja nasce.
A escrita dá a liberdade de escrever as palavras e afirmar o orgulho de ser transmontano.
O pior momento é quando o escritor se cala e não quando o mandam calar.
Esperança para todos.
Manuel Sengo
Olá Manuel!
ResponderEliminarObrigada pelas tuas sábias palavras, onde, cada um, vê nelas aquilo que quiser.
É assim a vida.
Também os meus textos, são aquilo que os vossos olhos qiserem e gostarem de ver.
A cheia, para uns é espectáculo; para outros, tristeza.
A todos, obrigada pela generosidade dos vossos comentários, pela disponibilidade de lerdes a vontade de viver uma terra esquecida, mas onde a seiva ainda pulula de esperança!
Parece que este blogue vai acabar e eu, mais uma vez, quero salientar
a importância de olharmos as nossas aldeias. Falei da minha, porque é o que eu sou.É preso à aldeia, aos cheiros, aos sabores, aos usos e costumes, que nós, citadinos, acorrentados a um cantinho da urbe, vivemos! Quando isso acabar, também uma parte de nós(....) morre.
Este blogue contribuiu para dar vida a esses laços que nos unem e seria muito importante que se fosse mais além! E que as 50 ou 60 pessoas idosas que lá vivem, vissem algum indício de alerta, de continuidade.
Obrigada Manuel pelo teu texto, tão assertivo, tão bem exposto e argumentado.É, também, por tudo isto, que é preciso fazermos alguma coisa. Os meus textos, são, acima de tudo,uma pontinha desse grande amor que eu sinto por um tempo e um lugar em que, e muito especialmente, havia família, amizade, vizinhos: O Ti Júlio, a chegar à tardinha, de sorriso de orelha a orelha(eu acho que até as orelhas se lhe riam), e um cinturão de coelhos, lebres e perdizes!!! Nessa altura, é verdade, em que se respeitava a natureza e se caçava.(...)
Lembro-me de tudo isso e de tantas outras coisas.
Mais uma vez, obrigada.
Saudades,
Tininha