sexta-feira, 1 de junho de 2012

ANO ZERO NA ALDEIA DOS ESTEVAIS (1974)

 Em terras de Moncorvo, nascida não se sabe bem porquê nos granitos de uma fragada sobranceira ao vale da Vilariça, a aldeia dos Estevais está praticamente no ano zero. Eis o «largo» da igreja, onde as lajes salientes não dão passagem a automóveis.


ESTEVAIS, ANO ZERO
Chega-se Estevais por entrada de macadame vinda cá do fundo da Portela, depois de muito subir com o carro em segunda. Nós ao pé da aldeia e quase a não vemos ainda: está escondida, parece que desde tempos recuados, talvez por um movimento estratégico da população numa era que poderá ter sido a das razias árabes.
Entra-se em Estevais a pé, de burro ou de macho: o automóvel não passa da estrada e não passa da periferia aldeia. Em Estevais têm-se lembrado de tanta coisa, até viver, mas nunca ninguém se lembrou de exigir ruas transitáveis. Que vemos? Um velho montado num jerico. Uma praça cortada em rocha, onde todo o cuidado é pouco para não se cair de borco. Raparigas ao fundo e outro velho, e uma velha, encostada esta gente de ambos os lados da porta do «soto» (loja). Meia dúzia de galinhas debicando, um peru entre elas.
Entrei a pé, direito ao «soto» do sr. António Augusto Vilela. O homem não se encontrava lá: sim a mulher e uma filha (uma das raparigas), que me fizeram boa recepção
Nas prateleiras do «soto» topavam-se refrigerantes, amendoim, açúcar, bicarbonato, baterias para rádios transistorizados, chouriço e petróleo, além de tabaco.
Perguntei a dona da casa quanto tinha vendido nesse dia. Encolheu os ombros:
«Pouco. A bem dizer quase nada. Umas coisas pequenas, não sei…»
O «soto» é também o posto local do correio, telefone. Reparei que as listas de vários anos se amontoavam numa mesinha.
O meu cicerone, compadre do sr. Vilela, quis saber do filho solteiro da casa.
«Ah, esse» - fez a mãe – acabou a tropa não sabe para onde há-de ir.
A velha que apanhava o sol meteu-se na conversa:
«Aqui não se faz nada. Há vinte anos havia por aí muita gente, era o tempo do minério. Agora é só para se estar.»
A própria agricultura, de subsistência, é cada vez mais «para se estar» - em pobre e em abandono.
Quando ao dono do «soto» o sr. Vilela, foi e é uma pessoa importante (leia-se o adjectivo com reservas). Anos atrás comprou uma malhadeira, pô-la a trabalhar, ganhou dinheiro. Mas a malhadeira exige mão-de-obra, coisa que desandou, e entretanto vieram as ceifeiras, ou seja o grau seguinte de mecanização… Adeus fortuna que te não vejo. Restam o «soto» e a posição social.
«Nessas fragas» - explicou a mulher do sr. Vilela - «lavravam-se uns campinhos de centeio com uns machos, hoje ninguém lavra. Só há carrascos e giestas.»
Numa volta pela fragada pude ver algum centeio em trechos exíguos de terra. Não, nem para o pão dá. A velha que apanhava sol terminante:
«Não coze ninguém. O pão vem de Moncorvo.»
Todos os presentes fizeram que sim com a cabeça:
«Moncorvo.»
 BATATAS, FEIJÕES E GRELOS



A pergunta do costume ( «quanta gente vive na terra?») provocou discussão. Hesitava-se entre sete, oito, nove dezenas de pessoas. Fogos habitados, talvez uns vinte.
«As casas, a gente vai a contá-las e não demora!»
O velho interessou-se pela comida de Lisboa: falta alguma coisa? O bacalhau, como nos Estevais? Ou o açúcar?
Ele bem sabia a explicação:
«O bacalhau, quanto o venderem, está podre. Armazenaram-no para ele subir…»
A velha (depois soube: a mulher do velho) inquietou-se com o açúcar:
«Diz que já o não fabricam!»
Nos Estevais, tirando os dias da alheira ou da galinha, que não são o dia-a-dia, come-se dieta de pobre.
«Batatas, feijão e grelos» - disse o velho.
«E a alheirita, e a alheirita» - contrapôs a dona do «soto».
«Grelos, mulher»
Era a voz do velho, a memória recente do velho, ambas irritadas.
A mulher do sr. Vilela contou ainda:
«Hoje ao almoço foi café, ao jantar por aí uns grelos e a alheirita. Quando apetece à gente ajeita-se um requito.»
A velha estava nitidamente um furo abaixo deste menu.
«Salada de azedas» - mastigou em seco. - «Ou batatas, catancho!»
Dos Estevais emigrou-se para o Brasil, para a Espanha, para a França, para a Alemanha. Mais para a França.
O velho, antigo soldado da guerra 14-18 em Moçambique («seja somos poucos, é um em cada freguesia, como os cucos»), não teve ganas, nem pernas, para tentar o «salto» deixa-se estar, quietinho, ao sol. Emigrantes são chusma de verão, e deles pelo Natal, sim senhor. Um até mandou uma fita gravada para um amigo: «olha, vai a minha sogra e dá-lhe um abraço; não, não lhe dês um abraço que ela só tem ossos, dá-lhe uma mãozada!»
Deixa-se estar porque os Estevais, não produzindo quase nada, sempre fazem crescer umas batatas, uns feijões e uns grelos. Na Vilariça? Na VIlariça é a riqueza.
«Mas a gente» -avisou ele - «vai à Vilariça e é dos outros. Ninguém de cá tem lá um barral.»
A sua fixação – a comida – levou-o a gemer:
«A galinha comemo-la só quando estamos a morrer».
Sempre sobre a emigração, confirmou que era «quem pôde ir».
 GALINHAS AO AR LIVRE
 Não há carreira para a fragada, isto é, quem quiser ir da Adeganha, ou da Cardanha, ou dos Estevais até à vila, distante no mínimo 10 quilómetros, tem de mandar vir um carro de praça ou pôr-se à espreita de uma boleia. O carro de praça leva 80$00 para o trajecto Estevais-Moncorvo, dos Estevais à Cardanha 20$00.
«As galinhas não ficam debaixo dos carros?» - perguntei.
«Não senhor» - riu-se a mulher do sr. Vilela -, «andam só por aqui pelas ruas.»
«Fogem para a panela» - casquinou uma rapariga.
«Nós quando vemos a Guarda» - continuou a dona do «soto» - «trazemo-las para dentro, senão multam-nos.»
Uma galinha apanhada à solta, ao ar livre numa «rua» dos Estevais, vale «oitenta e croa» de multa.
«Já multaram aí umas duas ou três pessoas» - informou um dos presentes.

Moncorvo, Zona Quente na Terra Fria ,  texto de Fernando Assis Pacheco,fotografias de Leonel Brito. Jornal República , Março de 1974
In TORRE DE MONCORVO , Março de 1974 a 2009. De Fernando Assis Pacheco ,Leonel Brito, Rogério Rodrigues. Edição da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo.
Ver:
http://www.dailymotion.com/video/xmh0aq_estevais-ano-zero-avi_lifestyle

2 comentários:

  1. Arminda Vilela escreveu:duas Candidas a Candida Russo e a tia Candida do tio Aderito e a Mario do Carmo a malhar feijoes

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    1. familiaperna@hotmail.com22 de junho de 2012 às 19:16

      São paulo Brasil 22 de junho de 2012

      Eu sou dos estevais e adoro essa terra,vim para o brasil com 12 anos e já estou aqui à 60 anos.Lembro-me de toda a gente.
      sou prima do leonardo esteves por parte ddo meu pai que se chama guilhermino perna e já tem 97 anos e por parte de mâe sou prima do Luciano Meireles.Lembro-me do Aderito que andava com as cabras,e a mãe delea tia Miguela era comadre da minha mãe que de chamava Margarida meireles que faleceu à 7 anos. Já estive ai 2 vezes e assim que poder eu volto. Gostaria de comunicar com alguem dai. Lucinda Perna

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