Sinal de que a terra já naquele tempo era muito movimentada e de vocação turística, foi este pedido feito em Cortes pelos procuradores de Moncorvo:
- Outrossim, Senhor, este lugar é muito movimentado e em que aportam muitos estrangeiros e requerem muitos mantimentos, assim de pão como cevada (…) vos pedimos por mercê (…) que lhes dês licença e ligar que o dito concelho possa fazer uma estalagem para pousar qualquer pessoa que vier.
Respondeu o rei D. Afonso V da seguinte forma:
- Praz-nos que o concelho faça quantas estalagens quiser e haja os proveitos. E assim outras quaisquer pessoas que as fazer quiserem e lhes sejam dados privilégios, em forma costumada.
Ignoramos se o concelho construiu a estalagem pedida. Mas sabemos que para um viajante que chegasse a Torre de Moncorvo, pelos anos de 1550, o melhor que havia para “pousar” era a estalagem de Isabel Lopes, uma mulher de origem hebreia.
E a fazer jus à estirpe da estalajadeira, diremos que ela funcionava um pouco como uma central de informações e práticas marranas. E até como um centro de cultura entre a comunidade cristã-nova. Foi ali que ouvimos, pela primeira vez em Trás-os-Montes, falar do massacre dos judeus de Lisboa em 1506, ou do corte de relações entre o rei de Inglaterra e o papa de Roma. Também ali ouvimos palavras estranhas como “tani” e “canarim” e várias histórias com sabor a lendas messiânicas que então povoavam o universo cultural dos cristãos-novos perseguidos pela Inquisição. Mas antes de falarmos destas coisas, vamos apresentar os donos da estalagem.
Isabel Lopes, a estalajadeira, nasceu em Torre de Moncorvo, por 1516. Seus pais foram judeus e tornaram-se cristãos em 1497, por força da lei promulgada pelo rei D. Manuel que apenas autorizava a permanência em Portugal aos judeus que recebessem o baptismo. Para além de Isabel, tiveram mais 2 filhas, ambas casadas numa aldeia do termo de Bragança e 3 filhos, que todos andariam por terras da Índia, sem deles haver notícias desde há anos.
Isabel casou por 1532, com Pêro Lopes e dele teve vários filhos e uma filha – Leonor Lopes – a qual casou com Gabriel Rodrigues, também cristão-novo, originário da Galiza.
Ficou viúva ao fim de 18 anos, voltando a casar, por 1552, com um tal João Rodrigues Trindade. Este veio de Miranda do Douro e era também viúvo. Sua primeira mulher chamou-se Isabel Gonçalves e deu-lhe 2 filhas e 4 filhos. Um deles, nascido por 1535, chamava-se Francisco Rodrigues Trindade.
À época em que fomos hospedar-nos na estalagem de Isabel Lopes, que foi pela Páscoa de 1553, Francisco era estudante em Coimbra e veio passar uma temporada (45 ou 50 dias) com o pai e a madrasta. E as relações entre ele e a madrasta foram de “muita amizade” – segundo ele – ou de “grandes pelejas” – na versão de Isabel.
O certo é que Francisco Trindade rumou depois a Lisboa e ali se fez “criado” de um dr. Monção que era padre, cura da igreja da Madalena. Supomos que este padre era também de origem hebreia e com ligações familiares a Miranda do Douro e a Carvajales, uma terra castelhana das proximidades. Acaso também o Francisco se queria fazer padre e andava aprendendo com o dr. Monção.
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_Por sua própria iniciativa ou aconselhado por seu amo, no dia 3 de Janeiro de 1555, Francisco apresentou-se na Inquisição de Lisboa a denunciar como judeus a sua madrasta – Isabel – e o genro desta – Gabriel – os quais foram mandados prender, dando entrada nas masmorras do mesmo tribunal em 2 de Abril de 1556.
Não vamos seguir os trâmites de seus processos, mas tão só olhar alguns pontos que mos ajudem a compreender o ambiente que se vivia na estalagem e a esperança na vinda do Messias que animava Isabel Lopes e, certamente, os outros marranos de Torre de Moncorvo. Vejamos então uma denúncia feita por Francisco Rodrigues Trindade, contando que, no decurso de uma conversa, Gabriel Rodrigues lhe disse:
- Que tudo o que o Papa fazia era burla, porque tudo fazia por dinheiro, e trouxe por exemplo o do rei de Inglaterra e a rainha Maria, os quais não podendo casar sem dispensa, mandaram ao papa por ela, que lha não quis conceder, sem muita cópia de dinheiro; e depois mandara o dito rei, sem se nomear mais do que o seu próprio nome e o de Maria, e que o papa concedeu logo, por pouco dinheiro, e que então dissera o rei ao povo que tudo era engano, que se não fazia nada em Roma senão por dinheiro.
Estranhar-se-á que em uma ignota estalagem de uma remota localidade trasmontana, um alfaiate produzisse comentários sobre os comportamentos de Henrique VII, rei de Inglaterra que então abandonava a religião católica e fundava a Igreja Anglicana?
Os inquisidores quiseram ter a certeza e por isso convocaram o denunciante para confirmar a denúncia, o que ele fez, “na casa do despacho”, em 6.6.1556, “estando presente o réu Gabriel Rodrigues”. Gabriel negou a acusação e disse que tudo era invenção e fruto do ódio, já que por diversas vezes “ele pelejou e andou às cutiladas” com o pai e o irmão de Francisco Rodrigues Trindade e de uma vez até ficou ferido num dedo e foi metido na prisão de Moncorvo.
Deixemos Gabriel e vejamos agora uma das confidências que Isabel terá feito ao seu enteado e este contou aos inquisidores:
- A dita Isabel sua madrasta disse que Cristo não era filho de Deus, senão que sendo casada Nossa Senhora com José, tinha um ferreiro seu vizinho; e sendo José fora de casa, o dito ferreiro o tinha em espia; e como o viu fora de casa, entrara dentro e tivera com ela acesso carnal. E vindo José de fora de casa, achara feito aquele mau pecado; e que Nossa Senhora lhe dissera então a verdade, como fizera aquele pecado e dormira o ferreiro com ela. E José lhe dissera que não houvesse medo, que ele não havia de a infamar, dizendo a dita madrasta que naquele tempo as mulheres que faziam adultério eram apedrejadas.
Era, sem dúvida a negação da virgindade de Maria e da natureza divina de Jesus, pedra basilar do Cristianismo. Mas vejamos uma outra denúncia feita pelo mesmo:
- Em outro dia, estando ambos sós, a dita sua madrasta lhe disse que a razão por que Jesus Cristo se chamava Rei dos Judeus era porque, vivendo Jesus com um profeta, uma noite o profeta tinha uma bacia grande cheia de água e tinha uma candeia acesa na bacia, ou pegada na bacia, e que o profeta se deitara a dormir e lhe disse que quando a candeia chegasse a certo sinal que o acordasse; e quando o lume da candeia chegou ao sinal, chegara-se Jesus à janela e vira os céus abertos e ouviu uma voz que lhe disse: - Pede o que quiseres. – E que Jesus Cristo dissera: - Senhor, não vos peço mais, senão que me faças rei de toda esta gente. – E sentindo isto, o profeta acordou e se levantou e que dali Jesus Cristo ficara Rei.
Os cristãos-novos portugueses e espanhóis, depois dos decretos de expulsão de ambos os países, sentiam-se como vivendo em cativeiro, o terceiro da sua história, em tudo igual ao do Egipto e ao da babilónia. Mas havia uma fé muito grande em que o fim deste cativeiro estava próximo e que o Messias estava a chegar e viria como um grande Rei, formaria um exército poderoso que derrotaria mouros e cristãos e fundaria o Reino Universal dos Judeus.
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Esta onda de messianismo era sobremodo intensa em terras do interior beirão e trasmontano, com especial incidência em Miranda do Douro e Trancoso. E entre as muitas crenças surgidas, divulgou-se mesmo a ideia de que o Messias era já nascido mas que estava prisioneiro em Roma. Vejam como a história foi colocada na boca da estalajadeira de Moncorvo pelo seu enteado:
- Estando ambos sós, lhe disse ela que estava uma casa em Roma, cerrada e que todos os papas que vinham lhe mandavam lançar uma fechadura e que dentro estava um homem (…) que era o Messias e que tinha um grilhão nos pés; e que estava um menino com uma serra serrando-lho; e que pronto os ferros fossem acabados de serrar, haviam os cristãos-novos de ser livres, e que se haviam de ir para a terra de onde primeiro vieram, que era Jerusalém e que lá haviam de ser grandes Senhores e que haviam de levar de cá por cavalos aos cristãos-velhos.
Claro que Francisco disse tê-la repreendido e que ela não aceitou a repreensão e ainda retorquiu: - Coitado de vós que haveis de ficar cá porque sois canarim - por chamar aos cristãos-velhos canarins.
Francisco também disse aos inquisidores que, quando se foi confessar ao dr. Monção lhe contou a cena “o qual lhe disse que isso era heresia” e devia denunciar Isabel no Santo Ofício. Ressalta ainda do testemunho de Francisco o facto de se apresentar, a ele e ao pai, como cristãos-velhos – o que não correspondia à verdade. Referiu também que a madrasta lhe quisera ensinar a fazer o “tani” (jejum dos judeus) e que falava “outras palavras em hebraico que ele não entendia e ela se espantava de ele não saber hebraico”, pois andava a estudar em Coimbra.
Voltando à casa de Roma e ao Messias agrilhoado, a história seria ainda composta por Isabel Lopes, em outra confidência, assim descrita por Francisco Trindade aos inquisidores:
- A dita sua madrasta lhe disse, estando ambos a sós, que um papa mandara abrir aquela casa onde estava o Messias e que mandara meter dentro um cristão e logo morrera; e que mandara meter um mouro e logo morrera; e que depois mandara meter um judeu para ver o que lá ia e que este vivera; e que o Messias que estava ali assentado lhe disse que entrasse e que lhe deitasse fora aquelas peçonhas, dizendo isto pelo mouro e pelo cristão; e que o judeu falara com o Messias e depois lhe disse que saísse para fora e tornasse a fechar as portas como estavam; e que o judeu dissera cá fora que faltava pouco para o menino acabar de serrar os ferros, dizendo ainda ela (a madrasta) que esperava de ver isto em seus dias e que assim contava.
Mais uma vez Francisco disse que não acreditava e que a madrasta lhe respondera “que ele era o maior canarim de todos e que o inferno estava cheio de parvos”, retorquindo ele: - Com os parvos eu quero ir.
Naturalmente que tudo isto foi negado por Isabel que, em sua defesa, invocou o testemunho de muita gente da Torre de Moncorvo, gente importante e cristã-velha. E contou muitas cenas de pancada que levou do marido, sempre por causa dos filhos deste e “que ela os botou pela porta fora muitas vezes e lhos não quis consentir em casa; e um dia teve tantas brigas sobre botar fora o dito licenciado seu enteado, que este Francisco Rodrigues deu uma grande bofetada nela e a ré tomou uma espada para o matar e remeteu a ele e o matava se ele não fugira pela porta fora; e ele licenciado fugiu e nunca mais tornou a casa e ficou inimigo capital dela (…) pelo que lhe não deve dar crédito ao tal licenciado Francisco Rodrigues”.
Em quem haviam de acreditar os inquisidores? Deviam mantê-la presa, submetê-la a tormento, obrigá-la a confessar-se culpada e a denunciar mais pessoas e pedir perdão de suas culpas? Nesta época os processos do Santo ofício não seriam ainda tão refinados e os instrumentos tão oleados como depois viria a acontecer. E Isabel Lopes foi libertada, depois de abjurar “de vehementi”, por suspeita de heresia.
FONTES – IANTT, Inquisição de Lisboa, processos 3123, de Isabel Lopes e 16035, de Gabriel Rodrigues.
António Júlio Andrade
Nota do Editor: Reedição dos posts públicados no blog :
http://marranosemtrasosmontes.blogspot.pt/
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