quarta-feira, 16 de julho de 2014

VIAJANDO EM VIANA COM GUERRA JUNQUEIRO, por António Pimenta de Castro


 Guerra Junqueiro fez sempre parte do meu imaginário infantil. É daquelas personagens/fantasma que povoam a nossa imaginação de criança e nos deixam o seu cunho impresso na nossa memória. Parece que viveram desde sempre connosco. Na verdade, bem menino ainda, habituei-me a ouvir falar do grande poeta: em casa, a meu avô, seu incondicional admirador e a minha mãe, ouvindo-a recitar alguns poemas seus; na rua, aos amigos do meu avô e ainda a muitas outras pessoas de Viana do Castelo, terra onde viveu e deixou memória.
             Com que saudades me recordo de ir pela mão de meu padrinho e avô materno, não andava sequer na escola primária, para o Café Bar (actual Caravela), na Praça da República, onde meu avô se encontrava ritualmente com a sua habitual tertúlia de amigos, quase todos, como ele, reformados e aí assistir às suas longas e interessantes conversas! Chupando um rebuçado ou trincando um chocolate, brincava eu por entre as mesas do café sem, no entanto, perder uma única palavra do que meu avô e seus amigos diziam.
            Meu avô pertencia àquela velha e saudosa geração de professores primários que, pelo seu saber, verticalidade, dedicação e empenho profissionais, inspiravam o respeito e a consideração de todos. A sua geração venerava Guerra Junqueiro. E, como ele o admirava!...Guerra Junqueiro era para ele uma figura intocável, por quem tinha um verdadeiro culto, uma veneração quase sagrada. Não raras vezes, pegava-me pela mão e levava-me, como numa viagem iniciática, aos locais por onde costumava deambular o Poeta de Freixo de Espada à Cinta: - «- Vês? aqui, na Praça da República costumava o “nosso” Junqueiro passear e compor os seus versos». Depois, continuava: - «-Ali, na Casa Valença, era onde costumava conversar com os seus amigos e, no andar de cima ficava o atelier do seu alfaiate preferido, o Leão»: - «-Acolá, ficava a tabacaria Havaneza, onde o insigne Poeta comprava os seus charutos e passava a limpo os seus versos». - «Além, ficava o quiosque do Esteves, onde comprava o rapé». Da Praça da República levava-me pelas ruas da velha Viana e o nosso passeio terminava quase sempre, na estrada que vai para a Areosa. Aí, parava e dizia-me: - «- Olha, aqui compôs ele a “moleirinha”». E eu fitava a figura do meu avô, muito hirto, absorto nos seus pensamentos, como que sonâmbulo a imaginar o Poeta a passear na velha estrada da Areosa. Acordado desse breve, mas profundo sonho, pegava novamente na minha mão e iniciávamos a viagem de regresso a casa, passando pelo palácio do jardim D. Fernando, palácio que o Poeta vendeu ao Estado para aí ser instalada uma escola industrial. Era uma autêntica romagem de saudade à qual ele me levava, procurando, na sua doce ânsia de avô, transmitir-me o que tinha de mais precioso: as suas recordações, a sua memória, os seus valores...Com que carinho me desvendava esses locais, verdadeiramente sagrados para ele!
Em casa mostrava-me os livros do Poeta e detinha-se sempre, por breves instantes, a contemplar uma fotografia do autor de “A Morte de D. João”. Era uma fotografia de Guerra Junqueiro com as suas famosas barbas hebraicas, que lhe davam aquele aspecto de um venerável rabi. Nariz adunco e um olhar muito vivo, mas meigo, numa expressão quase de santo. Então, na minha imaginação de criança, “via” o Poeta na Praça da República a conversar com os seus amigos, a compor poemas pelas ruas da cidade, na estrada da Areosa, ou ainda com as suas venerandas barbas hebreias ao vento, a cogitar junto ao mar...É uma imagem que ficou gravada para sempre na minha memória, não sabendo eu, na altura, que nos tempos em que o egrégio Poeta viveu na velha Viana da Foz do Lima, não usava ainda aquelas venerandas barbas patriarcais, só mais tarde (1898) as deixou crescer, quando apanhou o paludismo na sua Quinta da Batoca, em Barca de Alva. Quando Guerra Junqueiro veio para Viana, era então um elegante jovem, amante de tertúlias, de farto bigode, todo janota, poeta já famoso e com uma promissora vida literária à sua frente. Tive o privilégio de viver em Viana do Castelo, na mesma rua em que o insigne Poeta viveu, na rua da Bandeira (viveu na casa brasonada dos Bottos e Calheiros).     
Foram tempos felizes, aqueles que Guerra Junqueiro viveu na Princesa do Lima. Em Viana do Castelo, teve o que sempre pediu à Vida: «casa com um berço, terra com água, verdura com pássaros, tudo a Vida generosamente me ofereceu.»[1]. Aí encontrou o grande amor da sua vida, Filomena Augusta da Silva Neves, a sua «Meninha», aí se casou, aí lhe nasceram as suas duas filhas e aí escreveu grande parte da sua obra. Foi em Viana do Castelo, com o meigo clima da capital do Alto Minho, onde se recompôs dos achaques do corpo e da alma. Junto do Lima, do feiticeiro Lethes, o rio do esquecimento da mitologia, inspirado pelas suas musas, esqueceu os tempos maus e o seu estro encontrou o clima psicológico e mesmo físico, propício à criação literária. Aqui, o egrégio Poeta sentiu-se feliz e despreocupado, sendo, em Viana do Castelo, que nasceu a sua paixão pelas antiguidades e pelo bricabraque, dando início à sua famosa e monumental, colecção de obras de arte.
            Para escrever este trabalho amparei-me no bordão da saudade e percorri os caminhos míticos do passado.
A Viana do Castelo, ficará sempre ligado pela saudade dos tempos felizes que aqui viveu. O Minho «delicado, doce e meigo», como ele escreveu, calará sempre bem fundo no seu coração de sonhador e no momento em que deixou este sofrido mundo, os “olhos da alma” do Poeta, viraram-se, mais uma vez, tenho a certeza, para a amena e verdejante paisagem do «Éden do Lima». Na Praça da Rainha, ainda ecoam os passos do Poeta, num contínuo «vai-e-vem» de marcha, compondo mais um poema. A sua alma ainda vagueia pelas ruas da velha Viana, ou junto à margem do Lima, do Lethes, em noites de luar. Na estrada da Areosa, ainda se ouvem os ecos do jumentinho da “moleirinha”:

“Pela estrada plana, toque, toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque,
A velhinha atrás, o jumentito adiante!...[2]

Fecho os olhos e “ouço” esta saudosa melodia, que a minha mãe tantas vezes me cantou na minha querida Viana do Castelo, quando eu era menino, junto da minha cama, antes de adormecer…
           
                                                                                        António Pimenta de Castro


[1] Luís de Oliveira Guimarães, Junqueiro e o Bric-à-Brac, página 9, Lisboa, 1942. 
[2] - Guerra Junqueiro, Poema “A Moleirinha”, do Livro “Os Simples”, Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora, Rua Augusta –  44 a 54, 9ª Edição, Lisboa, 1924.   

1 comentário:

  1. Caro Colega:
    Obrigada pela partilha quer das suas memórias, com todo o afecto a elas ligado, quer da informação colhida em várias fontes.

    Um abraço amigo
    Júlia Ribeiro

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