Guerra
Junqueiro fez sempre parte do meu imaginário infantil. É daquelas
personagens/fantasma que povoam a nossa imaginação de criança e nos deixam o
seu cunho impresso na nossa memória. Parece que viveram desde sempre
connosco. Na verdade, bem menino ainda, habituei-me a ouvir falar do grande
poeta: em casa, a meu avô, seu incondicional admirador e a minha mãe, ouvindo-a
recitar alguns poemas seus; na rua, aos amigos do meu avô e ainda a muitas
outras pessoas de Viana do Castelo,
terra onde viveu e deixou memória.
Com que saudades me recordo de ir pela mão de
meu padrinho e avô materno, não andava sequer na escola primária, para o Café
Bar (actual Caravela), na Praça da
República, onde meu avô se encontrava ritualmente com a sua habitual tertúlia
de amigos, quase todos, como ele, reformados e aí assistir às suas longas e interessantes
conversas! Chupando um rebuçado ou trincando um chocolate, brincava eu por
entre as mesas do café sem, no entanto, perder uma única palavra do que meu avô
e seus amigos diziam.
Meu
avô pertencia àquela velha e saudosa geração de professores primários que, pelo
seu saber, verticalidade, dedicação e empenho profissionais, inspiravam o
respeito e a consideração de todos. A sua geração venerava Guerra Junqueiro. E,
como ele o admirava!...Guerra Junqueiro era para ele uma figura intocável, por
quem tinha um verdadeiro culto, uma veneração quase sagrada. Não raras vezes,
pegava-me pela mão e levava-me, como numa viagem iniciática, aos locais por
onde costumava deambular o Poeta de Freixo de Espada à Cinta: - «- Vês? aqui,
na Praça da República costumava o
“nosso” Junqueiro passear e compor os seus versos». Depois, continuava: - «-Ali,
na Casa Valença, era onde costumava
conversar com os seus amigos e, no andar de cima ficava o atelier do seu
alfaiate preferido, o Leão»: - «-Acolá, ficava a tabacaria Havaneza, onde o insigne Poeta comprava os seus charutos
e passava a limpo os seus versos». - «Além, ficava o quiosque do Esteves, onde comprava o rapé». Da Praça da República
levava-me pelas ruas da velha Viana
e o nosso passeio terminava quase sempre, na estrada que vai para a Areosa. Aí, parava e dizia-me: - «- Olha,
aqui compôs ele a “moleirinha”». E eu fitava a figura do meu avô, muito hirto,
absorto nos seus pensamentos, como que sonâmbulo a imaginar o Poeta a passear
na velha estrada da Areosa. Acordado desse breve, mas profundo sonho, pegava
novamente na minha mão e iniciávamos a viagem de regresso a casa, passando pelo
palácio do jardim D. Fernando, palácio que o Poeta vendeu ao Estado para aí ser
instalada uma escola industrial. Era uma autêntica romagem de saudade à qual
ele me levava, procurando, na sua doce ânsia de avô, transmitir-me o que tinha
de mais precioso: as suas recordações, a sua memória, os seus valores...Com que
carinho me desvendava esses locais, verdadeiramente sagrados para ele!
Em casa mostrava-me os livros do Poeta e detinha-se
sempre, por breves instantes, a contemplar uma fotografia do autor de “A
Morte de D. João”. Era uma fotografia de Guerra Junqueiro com as suas
famosas barbas hebraicas, que lhe davam aquele aspecto de um venerável rabi.
Nariz adunco e um olhar muito vivo, mas meigo, numa expressão quase de santo.
Então, na minha imaginação de criança, “via” o Poeta na Praça da República a
conversar com os seus amigos, a compor poemas pelas ruas da cidade, na estrada
da Areosa, ou ainda com as suas venerandas barbas hebreias ao vento, a cogitar
junto ao mar...É uma imagem que ficou gravada para sempre na minha memória, não
sabendo eu, na altura, que nos tempos em que o egrégio Poeta viveu na velha
Viana da Foz do Lima, não usava ainda aquelas venerandas barbas patriarcais, só
mais tarde (1898) as deixou crescer, quando apanhou o paludismo na sua Quinta
da Batoca, em Barca de Alva. Quando Guerra Junqueiro veio para Viana, era então
um elegante jovem, amante de tertúlias, de farto bigode, todo janota, poeta já
famoso e com uma promissora vida literária à sua frente. Tive o privilégio de
viver em Viana do Castelo, na mesma rua em que o insigne Poeta viveu, na rua da
Bandeira (viveu na casa brasonada dos Bottos e Calheiros).
Foram tempos felizes, aqueles
que Guerra Junqueiro viveu na Princesa do Lima. Em Viana do Castelo, teve o que
sempre pediu à Vida: «casa com um berço, terra com água, verdura com
pássaros, tudo a Vida generosamente me ofereceu.»[1].
Aí encontrou o grande amor da sua vida, Filomena Augusta da Silva Neves, a sua
«Meninha», aí se casou, aí lhe nasceram as suas duas filhas e aí escreveu
grande parte da sua obra. Foi em Viana do Castelo, com o meigo clima da capital
do Alto Minho, onde se recompôs dos achaques do corpo e da alma. Junto do Lima,
do feiticeiro Lethes, o rio do esquecimento da mitologia, inspirado pelas suas
musas, esqueceu os tempos maus e o seu estro encontrou o clima psicológico e
mesmo físico, propício à criação literária. Aqui, o egrégio Poeta sentiu-se
feliz e despreocupado, sendo, em Viana do Castelo, que nasceu a sua paixão
pelas antiguidades e pelo bricabraque, dando início à sua famosa e monumental,
colecção de obras de arte.
Para
escrever este trabalho amparei-me no bordão da saudade e percorri os caminhos
míticos do passado.
A
Viana do Castelo, ficará sempre ligado pela saudade dos tempos felizes que aqui
viveu. O Minho «delicado, doce e meigo», como ele escreveu, calará sempre bem
fundo no seu coração de sonhador e no momento em que deixou este sofrido mundo,
os “olhos da alma” do Poeta, viraram-se, mais uma vez, tenho a certeza, para a
amena e verdejante paisagem do «Éden do Lima». Na Praça da Rainha, ainda ecoam
os passos do Poeta, num contínuo «vai-e-vem» de marcha, compondo mais um poema.
A sua alma ainda vagueia pelas ruas da velha Viana, ou junto à margem do Lima,
do Lethes, em noites de luar. Na estrada da Areosa, ainda se ouvem os ecos do
jumentinho da “moleirinha”:
“Pela estrada plana, toque,
toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha
errante.
Como vão ligeiros, ambos a
reboque,
Antes que anoiteça, toque,
toque, toque,
A velhinha atrás, o jumentito
adiante!...[2]”
Fecho
os olhos e “ouço” esta saudosa melodia, que a minha mãe tantas vezes me cantou na
minha querida Viana do Castelo, quando eu era menino, junto da minha cama,
antes de adormecer…
António Pimenta de Castro
Caro Colega:
ResponderEliminarObrigada pela partilha quer das suas memórias, com todo o afecto a elas ligado, quer da informação colhida em várias fontes.
Um abraço amigo
Júlia Ribeiro