Era Verão
como agora, mas menos quente
na minha lembrança de garoto.
A terra dos meus
avós, onde passava as férias grandes,
era uma pequena aldeia de casas velhas de pedra escura e outras novas com azulejos azuis
ou pintadas de verde.
Era
um
lugar fundo, gerado no ventre de
muitos povos, muito antes
dos
romanos construírem as calçadas até Espanha ou pendurarem os bandidos pelo pescoço no Cimo da
Forca.
Num exercício de contemplação e alguma fé ainda se podiam delinear os limites
do antigo castelo por cima da
igreja e a recordação de vila medieval que permanecia serena em
todos os personagens vivos dessa aldeia histórica.
Passávamos a
tarde à sombra verde da latada vendo
o calor roçar por cima de
nós. Ao longe ouviam-se as ovelhas que regressavam às cortes, pássaros que se agitavam entre as árvores
e à
volta dos sobreiros, os pombos do Tio Marcelino voavam
em círculos, reconhecidos
pelo sol mais oblíquo. O silêncio dos ritos habituais era apenas entrecortado por algum avião que rasgava o céu ou pelo sapateado de uma carroça
que regressava das devesas. Houve uma época que uma carrinha espanhola percorria quase todas as aldeias do nordeste, assaltando à luz do dia as arrecadações cheias de baús e coisas velhas. Começava por um burburinho
de
pessoas aclarando
depois no trinado das vozes roucas dos pregoeiros castelhanos.
O som
crescente da buzina e do
palavreado subia pela rua
estreita até chegar
aos nossos portões. "Troca, troca, troca, troca!" Repetiam numa azáfama contagiante pelas velhotas que
faziam colchas de renda à porta de casa.
Todos sabiam ao que vinham e depressa
punham cá fora as tralhas sem valor comercial com medo que a carrinha passasse sem as
ver.
Os dois homens, um de cada lado do veículo fechado por
um toldo, faziam as transacções quase em andamento. Miravam
por alto aquilo que
apanhavam e o que lhes agradava juntavam no monte de
tralha e de relíquias que crescia dentro da carrinha. De seguida
devolviam um tacho de tamanho correspondente ou uma panela de esmalte cor-de-rosa que cozia mal as batatas e estalava com o
calor.
Mas o entusiasmo não esmorecia e aquela loiça colorida a reluzir, fazia aparecer mais coisas e loisas no meio da
rua, porcelanas e pratos antigos, tulhas de
barro do tamanho de uma criança, ferros de
passar a roupa alimentados a brasas, lampiões de latão, foles de
madeira e pele, potes, candeias, lamparinas, talhas de guardar o azeite e até um velho
gasómetro do Ferro-Minas.
O frenesim era tal que a Tia Germana chegou ao ponto de arrastar até ao portão o destilador de cobre do nosso bisavô.
Os Espanhóis estugaram
a marcha e não esconderam o espanto de tal aparato,
o
equipamento usado para
fazer aguardente fez crescer água na boca, mas ao fim de meia
dúzia de defeitos, acabou por
valer apenas cinco panelas com tampa e uma jarra para flores. Fecharam o toldo, despediram-se num gesto rápido e
rumaram para um novo saque noutra
aldeia. Para trás deixaram algumas falsas alegrias e sensações
de perda tão grandes quanto o espaço que sobrava agora no telheiro.
A Tia Germana depois de olhar bem para as
panelas empilhadas acabou por descer até à adega
e curar as mágoas com três
cálices da aguardente do
último Outono.
Tiago Patrício
O texto é excelente, o final é soberbo ! Parabéns.
ResponderEliminarLembro-me muito bem dos "troca, troca" e da sua ligeireza em pôr defeitos nas peças que mais depressa queriam arrebanhar.
Abraço
Júlia Ribeiro
Ana Diogo :
ResponderEliminarAdorei este texto! Belo conto!
Eu troco o um tal Torga pelo nosso Tiago e ainda dou meio Campos Monteiro e algum Rentes.
ResponderEliminarSabrosa
Dá gosto ler textos desta qualidade.MAIS.
ResponderEliminarEste Tiago é o rapaz de Carviçais? Porra,estou a ficar velho.Escreve muito bem.
ResponderEliminarJoão