sexta-feira, 18 de julho de 2014

Trocas .por Tiago Patrício

Era Verão como agora, mas menos quente na minha lembrança de garoto. A terra dos meus avós, onde passava as férias grandes, era uma pequena aldeia de casas velhas de pedra escura e outras novas com azulejos azuis ou pintadas de verde.
Era  um  lugar  fundo,  gerado  no  ventre  de  muitos  povos,  muito  antes  dos  romanos construírem as calçadas até Espanha ou pendurarem os bandidos pelo pescoço no Cimo da Forca.
Num exercício de contemplação e alguma ainda se podiam delinear os limites do antigo castelo por cima da igreja e a recordação de vila medieval que permanecia serena em todos os personagens vivos dessa aldeia histórica.
Passávamos a tarde à sombra verde da latada vendo o calor roçar por cima de nós. Ao longe ouviam-se as ovelhas que regressavam às cortes, pássaros que se agitavam entre as árvores e à volta dos sobreiros, os pombos do Tio Marcelino voavam em círculos, reconhecidos pelo sol mais obquo. O silêncio dos ritos habituais era apenas entrecortado por algum avião que rasgava o céu ou pelo sapateado de uma carroça que regressava das devesas. Houve uma época que uma carrinha espanhola percorria quase todas as aldeias do nordeste, assaltando à luz do dia as arrecadações cheias de baús e coisas velhas. Começava por um burburinho  de  pessoas  aclarando  depois  no  trinado  das  vozes  roucas  dos  pregoeiros castelhanos.
O som crescente da buzina e do palavreado subia pela rua estreita até chegar aos nossos portões. "Troca, troca, troca, troca!" Repetiam numa azáfama contagiante pelas velhotas que faziam colchas de renda à porta de casa. Todos sabiam ao que vinham e depressa punham fora as tralhas sem valor comercial com medo que a carrinha passasse sem as ver.
Os dois homens, um de cada lado do veículo fechado por um toldo, faziam as transacções quase em andamento. Miravam por alto aquilo que apanhavam e o que lhes agradava juntavam no monte de tralha e de requias que crescia dentro da carrinha. De seguida devolviam um tacho de tamanho correspondente ou uma panela de esmalte cor-de-rosa que cozia mal as batatas e estalava com o calor.
Mas o entusiasmo não esmorecia e aquela loiça colorida a reluzir, fazia aparecer maicoisas e loisas no meio da rua, porcelanas e pratos antigos, tulhas de barro do tamanho de uma criança, ferros de passar a roupa alimentados a brasas, lampiões de latão, foles de madeira e pele, potes, candeias, lamparinas, talhas de guardar o azeite e até um velho gasómetro do Ferro-Minas.
O frenesim era tal que a Tia Germana chegou ao ponto de arrastar até ao portão o destilador de cobre do nosso bisavô.
Os  Espanhóis  estugaram  marcha  e  não  esconderam  o  espanto  de  tal  aparato,  o equipamento usado para fazer aguardente fez crescer água na boca, mas ao fim de meia dúzia de defeitos, acabou por valer apenas cinco panelas com tampa e uma jarra para flores. Fecharam o toldo, despediram-se num gesto rápido e rumaram para um novo saque noutra aldeia. Para trás deixaram algumas falsas alegrias e sensações de perda tão grandes quanto o espaço que sobrava agora no telheiro.
A Tia Germana depois de olhar bem para as panelas empilhadas acabou por descer até à adega e curar as mágoas com três cálices da aguardente do último Outono.
Tiago Patrício

5 comentários:

  1. O texto é excelente, o final é soberbo ! Parabéns.
    Lembro-me muito bem dos "troca, troca" e da sua ligeireza em pôr defeitos nas peças que mais depressa queriam arrebanhar.

    Abraço
    Júlia Ribeiro

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  2. Ana Diogo :
    Adorei este texto! Belo conto!

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  3. Eu troco o um tal Torga pelo nosso Tiago e ainda dou meio Campos Monteiro e algum Rentes.
    Sabrosa

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  4. Dá gosto ler textos desta qualidade.MAIS.

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  5. Este Tiago é o rapaz de Carviçais? Porra,estou a ficar velho.Escreve muito bem.
    João

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