sábado, 5 de julho de 2014

Cacetada na mula ruça,por Ferreira Fernandes

FERREIRA FERNANDES
UM PONTO É TUDO

Cacetada na mula ruça

por FERREIRA FERNANDESHoje16 comentários
O jornalista Afonso Praça, que morreu em 2001, gostaria de o saber. Trabalhei com ele no semanário O Jornal e na revista Visão, e ele que foi diretor de O Jornal da Educação e de O Bisnau, jornal humorístico, tudo a ver, praticava uma língua tersa que soa melhor quando vem carregada de pronúncia transmontana. Usava também os colarinhos da camisa abertos e uns olhos sorridentes, próprio de quem não se leva a sério, sinal de quem sabe muito bem o que vale, e valia muito. Seria doutorado ou licenciado, o Praça? Pois não sei. De algumas conversas, com os seus amigos de mais conversa, o Rogério Rodrigues e o Assis Pacheco, presumi que tenha passado por seminários e pela Faculdade de Letras de Lisboa. Eu sabia e sabíamos todos na redação é que o seu português escrito era exato - era a ele que recorríamos nas dúvidas, quando ainda não havia Ciberdúvidas. Doutor, o Praça? Nem simples Dr.? Pois não sei. Era o Praça, o sábio. Ele, que era de Torre de Moncorvo, gostaria de saber que os da assembleia municipal da sua terra decidiram esta semana, e por unanimidade, ser iguais. Acabou o "o senhor doutor se me permite" e o " senhor engenheiro que me perdoe". Todos são nome de cidadão, e só, ou são o que os traz ali, deputados municipais. Um concelho com freguesias com nomes limpos, Adeganha e Cardanha, Horta da Vilariça e Castedo, Urros e Peredo dos Castelhanos, merece que os seus eleitos tirem a gravata da língua
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4009864&seccao=Ferreira%20Fernandes&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco

2 comentários:

  1. Um texto formidável ! Bom seguidor do Praça, o cronista Ferreira Fernandes.

    Júlia Ribeiro

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  2. A nacional "titulocracia"
    Publicado às 00.17


    2 0 0
    Veio nas notícias que o município de Torre de Moncorvo deliberou por unanimidade abolir o título académico do tratamento entre os eleitos locais. Diz José Mário Leite (que, se o Google não me enganou, é um engenheiro) que "mais importante é ser deputado" e que os tratamentos de doutor "ali não fazem sentido" e podem até "trazer alguma característica de diferenciação". O presidente da Assembleia Municipal transmontana não é o primeiro a tentar acabar, por decreto, com a veneração patética que Portugal tem por títulos académicos.

    Há uns anos, não muitos, tivemos um ministro que só queria ser tratado por Álvaro. Santos Pereira explicou que a informalidade lhe veio dos tempos em que estudou em Inglaterra, onde, em vez de se tratar um professor catedrático pelo título, se usava apenas o nome próprio. Simple as that. O Reino Unido é, aliás, exemplar em matéria de tratamentos. Doutor é o médico. Os outros são senhores. Em Espanha, trata-se tendencialmente por tu, e "dom" é apenas uma cordial reverência. No Brasil, quem tem dinheiro é doutor. Estranho é não termos importado esta mania do país irmão juntamente com as telenovelas. Afinal, Portugal é em muitos aspetos uma espécie de Sul da América da Europa e a apetência por doutores e engenheiros é mais do que muita. Seja por direito, por cunha ou por estudo ao fim de semana. O meio é apenas um detalhe. Importa é sê-lo. Para depois parecê-lo. E, a partir daí, exercer a autoridade perante os outros por via da "titulocracia". O passo seguinte para o aspirante a "titulocrata" é andar de BMW ou Mercedes e ocupar dois lugares no parque de estacionamento com o seu bólide.

    Acontece que quem nega um título pode enfermar do mesmo tique presunçoso de quem o assume compulsivamente. Ambos poderão ser "empobrecedores das relações sociais", como muito bem definiu no JN o sociólogo Albertino Gonçalves.

    Certo é que a referência ao título fora do círculo onde ele efetivamente importa não é só ridículo. É também profundamente pacóvio. E é-o sobretudo se recordarmos que, neste país onde todos querem ser (ou tratados como tal) doutores e engenheiros, a percentagem de cidadãos entre os 30 e os 34 anos licenciados era menos de 30% no ano passado. Um valor muito distante da média europeia, que se situa bem acima (36,8%) da nossa performance. Os números não são agradáveis e arriscam-se a comprometer os objetivos traçados pelo Governo até 2020 e que apontavam para um valor de licenciados naquela faixa etária a rondar os 40%.

    Com a baixa da expectativa de empregabilidade e com a adequação que as universidades estão a fazer tendo em vista este novo ambiente socioeconómico, o mais certo é continuarmos na cauda da Europa em termos de atribuição de canudos. Mas isso não interessa nada. Em matéria de tratamento, somos os maiores e continuaremos a deter as mais altas percentagens de doutores e engenheiros.

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